Este trabalho é parte do Projeto Integrado de Pesquisa Manifestações discursivas da transitividade verbal: uma abordagem funcionalista (CNPq 551282), que tem como centro de interesse a gramática da cláusula, mais especificamente a natureza da relação da transitividade – a gramática do verbo e seus argumentos. Como parte desse projeto maior, esta pesquisa tem como objeto de estudo os verbos tradicionalmente classificados como transitivos diretos, buscando demonstrar a aplicabilidade do aparato teórico funcionalista em termos do ensino de gramática, num esforço de responder ao desafio de disponibilizar alternativas mais adequadas de descrição do português que usamos no dia-a-dia. Para tanto, investiga as manifestações discursivas da estrutura argumental desses verbos, em textos produzidos em situações reais de comunicação. A fonte dos dados é o Corpus Discurso & Gramática – a língua falada e escrita na cidade do Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998). A análise se baseia nos pressupostos teóricos da Lingüística Funcional norte-americana e nas contribuições da Lingüística Cognitiva. Diferentemente da Gramática Tradicional, que concebe a transitividade como uma propriedade lexical dos verbos, a postura aqui adotada defende que a configuração argumental dos verbos é motivada por aspectos formais, discursivos e cognitivos.
O termo 'transitividade' (do latim transitivus = que vai além, que se transmite), em seu sentido original, denota a transferência de uma atividade de um agente para um paciente. Para a Gramática Tradicional, a transitividade é uma propriedade do verbo, e não da cláusula: são transitivos aqueles verbos cujo processo se transmite a outros elementos, que lhes completam o sentido. Por oposição, nos verbos intransitivos "a ação não vai além do verbo" (CUNHA & CINTRA 1985, p.132). Ou seja, a classificação de um verbo como transitivo ou intransitivo se apóia na presença/ausência de um Sintagma Nominal objeto (critério sintático) exigido pelo significado do verbo (critério semântico). Na visão tradicional, portanto, os três elementos da transitividade (sujeito, ação, objeto) co-ocorrem.
Apesar da distinção formal rígida entre verbos transitivos e intransitivos, as gramáticas são unânimes em salientar o fato de que "a linha de demarcação entre verbos transitivos e intransitivos nem sempre pode ser rigorosa. Alguns verbos transitivos podem ser empregados intransitivamente", como comer e beber em: comer carne, beber vinho, o doente não come nem bebe (SAID ALI 1971, p.165). Cunha & Cintra (1985, p.134) fazem referência ao papel do contexto lingüístico na interpretação/aferição da transitividade do verbo: "a análise da transitividade verbal é feita de acordo com o texto e não isoladamente. O mesmo verbo pode estar empregado ora intransitivamente, ora transitivamente". Conclui-se, então, que a transitividade não é uma propriedade intrínseca do verbo enquanto item lexical, mas está sujeita a fatores que ultrapassam o âmbito do Sintagma Verbal.
O fenômeno da transitividade apresenta um componente semântico e um componente sintático. Uma cláusula transitiva descreve um evento que potencialmente envolve pelo menos dois participantes, um que é responsável pela ação, codificado sintaticamente como sujeito, e outro que é afetado por essa ação, codificado sintaticamente como objeto direto. Do ponto de vista semântico, o evento transitivo prototípico é definido pelas propriedades do agente, do paciente e do verbo envolvidos na cláusula que codifica esse evento. Em princípio, a delimitação das propriedades desses três elementos é uma questão de grau. Do ponto de vista sintático, todas as cláusulas - e verbos - que têm um objeto direto são transitivas; as que não o têm são intransitivas. Desse modo, se uma cláusula codifica um evento semanticamente transitivo, o agente do evento é o sujeito da cláusula e o paciente do evento é o objeto direto da cláusula. Contudo, a manifestação discursiva de um verbo potencialmente transitivo depende de fatores pragmáticos, como a perspectiva a partir da qual o falante interpreta o evento narrado.
Um levantamento preliminar de verbos que, pelo seu próprio significado lexical, se referem à transferência da atividade de um agente para um paciente, ou seja, os verbos que, em princípio, seriam prototipicamente transitivos, demonstrou que esses verbos podem ocorrer com dois ou com apenas um argumento. Com os verbos que apresentam dois argumentos, o sujeito pode ou não desempenhar o papel semântico de agente, e o objeto direto pode ou não ser o paciente semântico. Aquelas cláusulas que codificam sujeito-agente e objeto-paciente afetado pela ação verbal representam a transitividade prototípica. O trecho a seguir exemplifica duas possibilidades de codificação:
(1) ... aí quando meu pai viu que o carro ia virar ... aí ... virar não ... que ia bater ... aí ... segurou a barriga da minha mãe ... e empurrou o banco da frente que minha tia estava ... o empurrão foi tão grande que ela entrou pra dentro das ferragens do carro ... aí eu sei que ... e ela ficou dentro do ... das ferragens do carro ... fratu/fraturou a perna ... sabe? Foi uma luta pra tirar ela de dentro do carro ... o motorista ... primo da minha mãe quebrou ... o ... a cara toda ... o rosto ... sabe? ficou só os pedaços ... (Corpus D&G, p. 222)
Enquanto as duas primeiras cláusulas em negrito apresentam sujeito-agente (meu pai) e objeto-paciente afetado (a barriga da minha mãe e o banco da frente), nas duas últimas o sujeito é não-agentivo; na verdade, tanto a tia do falante quanto o primo da sua mãe sofrem os efeitos da ação verbal em uma parte do seu corpo.
A observação dos dados indica que verbos semanticamente transitivos com dois participantes são raros no discurso espontâneo. A tendência, na conversação, é eliminar o paciente-objeto da ação verbal, ou por que ele é recuperável do contexto precedente, ou porque sua exata identidade é irrelevante para o que se quer comunicar. Isso nos leva ao segundo tipo de configuração argumental. Pertencem a este grupo dois tipos de cláusulas sintaticamente intransitivas: aquelas em que o objeto-paciente é irrelevante/predizível e aquelas em que o objeto-paciente é recuperável do contexto anterior. Alguns verbos que semanticamente "pedem" dois argumentos podem ocorrer sem o argumento objeto, por razões pragmáticas. O objeto desses verbos é suprimido por ser altamente predizível e, portanto, sua identificação não é importante no discurso. O trecho a seguir registra a seguinte ocorrência:
(2) ... um dia desse eu tava me lembrando ... ontem mesmo ... eu tinha vergonha de comer na frente de Alexandre ... às vezes a gente ia lanchar ... e eu ficava entalada ... era ... e com ele não ... o Tarcísio ... sabe? nem sinto vergonha ... pelo contrário ... como ... aí como mais ainda ... (Corpus D&G, p. 227)
Em (2) a supressão do objeto se dá pelo fato de sua identidade ser irrelevante para os propósitos da comunicação. O paciente do verbo comer é genérico, não-referencial. Não importa, nesses casos, o tipo de comida ingerida: a saliência comunicativa recai sobre a própria ação verbal (comer qualquer comida).
O exemplo seguinte ilustra o segundo tipo de cláusula com verbo transitivo sem objeto explícito:
(3) ... as pessoas geralmente passam assim por experiências né na vida pessoal e essas experiências ficam assim guardadas é ... na nossa vida e a gente gosta de contar ...né? (Corpus D&G, p. 175)
Nesse caso, o objeto direto do verbo contar, semanticamente um predicado de três argumentos, é diretamente recuperável no contexto anterior: essas experiências. Por razões de economia discursiva, ele não é explicitado. Trata-se de um objeto anafórico não- referencial.
Estou postulando que essas possibilidades de codificação dos verbos transitivos são motivadas por fatores de ordem pragmático-discursiva. Nesse sentido, não existiriam estruturas verbais "rígidas", mas modelos ou generalizações que emergem das muitas repetições nas interações comunicativas diárias. A categorização de um verbo como transitivo ou intransitivo, por exemplo, resultaria de um processo cognitivo de estocagem do conhecimento a partir do que as pessoas ouvem e repetem ao longo da vida.
A seguir, discuto três alternativas de análise para a questão da transitividade segundo o quadro teórico da Lingüística Funcional e da Lingüística Cognitiva norte-americana, formuladas por Givón, Hopper, Thompson e Goldberg.
Givón (2001) define a transitividade como uma relação semântica que se dá entre o verbo e seu complemento. Assim, os verbos transitivos prototípicos são aqueles que exibem duas propriedades:
a. um sujeito agente
b.
um objeto paciente
Esses verbos podem ser subclassificados de acordo com a mudança física, discernível registrada no estado do paciente. São de Givón os seguintes exemplos:
(4) Objeto criado:
He built a house / Ele construiu uma casa
(5) Objeto totalmente destruído:
They
demolished the house / Eles demoliram a casa
(6) Mudança física no objeto:
She sliced the salami / Ela fatiou o salame
(7) Mudança de lugar do paciente:
They moved the barn / Eles mudaram o celeiro
Outros verbos que pertencem sintaticamente a esse grupo, ou seja, que apresentam sujeito e objeto, podem, contudo, se desviar do verbo transitivo prototípico quer "em termos do grau em que a mudança no objeto é física, óbvia, concreta, acessível à observação, etc.", quer em termos do sujeito-agente. Logo, o desvio da transitividade prototípica está associado à semântica lexical dos verbos. Caberia, então, a pergunta: por que os verbos semanticamente desviantes aparecem, em muitas línguas, incluindo o português e o inglês, na mesma classe sintática do verbo transitivo prototípico? Há duas possibilidades de resposta:
(i) Transitividade é uma questão de grau, em parte porque "obviedade da mudança no objeto" é uma questão de grau, e em parte porque depende de mais de uma propriedade.
(ii) Quando um verbo desviante é codificado sintaticamente como um transitivo prototípico, o usuário da língua interpreta suas propriedades como sendo semelhantes, análogas, reminiscentes do protótipo. Esse fenômeno é conhecido como extensão metafórica.
Vejamos alguns exemplos:
(8) a. ... [minha tia] fez uma cirurgia na cabeça ... lá no Walfredo ... e aí deu tudo certo ... mas ... ela tinha o cabelo lindo ... sabe? mas aí teve que raspar todo ... (Corpus D&G, p. 225)
(9) ... sempre todo congresso tem uma nova eleição ... né ... e nesse ... sim ... tava tendo lá ... né ... a gente tinha uma chapa ... (Corpus D&G, p. 178)
Com o significado equivalente a possuir, como em (8) e (9), ter é um verbo de estado cujo sujeito é o possuidor, prototipicamente humano, e cujo objeto é a coisa possuída. O fato de o sujeito ser humano e, portanto, exibir as propriedades características do caso agente, e de o objeto apontar para um referente inanimado, o que caracteriza o paciente prototípico, é responsável pela codificação dessas cláusulas com ter se conformar ao padrão transitivo, embora não representem transferência de atividade. Ou seja, por meio de um processo de extensão metafórica, o sujeito de ter é interpretado como agente e o objeto como paciente, e a cláusula é então codificada como sintaticamente transitiva, com um argumento na posição de sujeito e outro na de objeto.
O verbo ter, assim como dar, ocorre em arranjos sintáticos nitidamente transitivos, em que esses verbos são vazios de significado, como em:
(10) ... você viver assim ... dando satisfação a ... a tudo ... é bom a pessoa ter confiança em você ... tanto a mãe ... como o namorado ... qualquer pessoa que confie em você ... (Corpus D&G, p. 226)
(11) ... eu pensei que [o congressista modelo] era Júnior ... mas no fundo ... no fundo eu ainda dei uma pensadinha que era eu ... (Corpus D&G, p. 180)
A pergunta que se coloca é: ter confiança e dar uma pensadinha são predicados intransitivos ou confiança e pensadinha são os objetos dos verbos transitivos ter e dar, respectivamente? Note-se que ter confiança equivale a confiar, usado depois pela própria informante, e dar uma pensadinha corresponde a pensar. Esse é um excelente caso para o argumento de que a fronteira entre predicados de um ou de dois participantes é muito tênue no discurso conversacional. Um sentido de "paciente afetado" é, de algum modo, concedido ao produto do ato, que é então codificado sintaticamente por analogia com os verdadeiros objetos criados.
Outros casos de desvio que envolvem o sujeito do verbo “transitivo” se dão, em geral, com verbos de cognição, sensação ou volição, cujo objeto não registra nenhuma mudança ou impacto observável. De fato, é o sujeito-experienciador que registra alguma mudança interna/cognitiva. Pertencem a essa classe de verbos ver, ouvir, saber, entender, querer, sentir, que semanticamente se aproximam mais de estados do que de ações. A extensão metafórica desses verbos para a classe de transitivo prototípico se explica em termos de o sujeito ser ou um agente ou um experienciador, i.e. um humano-animado cuja importância no evento é alta e cujo campo perceptual é estendido para o objeto, que é então metaforicamente interpretado como afetado pela ação verbal. Os exemplos a seguir ilustram esse caso:
(12) "... eu quero o congressista modelo ... não é ... o congressista que mais participa ... que tava presente em tudo ... que tá sempre ali ajudando a algum jovem ... a organizar as coisas (...) então eu observei isso em uma pessoa ..." (Corpus D&G, p. 180)
Embora envolva agentividade, a interpretação semântica de observar não implica o caso paciente: o objeto desse verbo não registra nenhuma mudança de estado perceptível.
(13) ... já no último dia ... eu fiquei sabendo que a gente tava concorrendo com três igrejas só ... (...) e aí começou a ficar mais animado e tudo porque eu queria esse prêmio de todo jeito pra ela ... lá pra igreja ... né ... (Corpus D&G, p. 178)
O verbo querer, assim como os verbos de cognição e sensação, está semanticamente mais próximo de um estado do que de uma ação: tem sujeito experiencial e seu objeto, mesmo não sendo um paciente afetado, é codificado como o objeto prototípico de uma oração transitiva devido a um processo de extensão metafórica.
Concluindo, a proposta de Givón concebe a transitividade como uma noção gradiente, e não dicotômica como na Gramática Tradicional. Centrada no significado lexical do verbo, a transitividade prototípica reflete o afetamento total do objeto. Os verbos cujo significado não implica mudança de estado ou localização do objeto se afastam do padrão prototípico e, conseqüentemente, exibem menor grau de transitividade.
Tendo como objeto de estudo a estrutura da narrativa e buscando observar o modo pelo qual ela se identifica com determinadas formas gramaticais, Hopper & Thompson (1980) formulam a categoria transitividade como uma noção contínua, escalar, não categórica. Para esses autores, não há necessidade da ocorrência dos três elementos postulados pela Gramática Tradicional – sujeito, verbo, objeto – para que uma cláusula seja transitiva. A transitividade é concebida como um complexo de dez parâmetros sintático-semânticos independentes, que focalizam diferentes ângulos da transferência da ação em uma porção diferente da cláusula. Dois parâmetros dizem respeito ao sujeito (agentividade e intencionalidade) e outros dois ao objeto (afetamento e individuação), três referem-se ao verbo (cinese, perfectivo e punctual) e outros três dão conta da própria cláusula como um todo (participantes, polaridade e modalidade). Cada um desses parâmetros contribui para a ordenação de cláusulas na escala de transitividade, de acordo com o grau de transitividade que manifestam. Assim, é toda a cláusula que é classificada como transitiva, e não apenas o verbo. A título de ilustração, repetirei aqui alguns exemplos de Hopper & Thompson (1980, p.253-4):
(14)
a. Jerry knocked Sam down
b.
Jerry likes beer
c.
There were no stars in the sky
d. Susan left
Paralelos a esses exemplos do inglês, vejamos alguns do português, extraídos de uma narrativa que reconta o filme Batman:
(15) a. Batman derrubou o Pingüim com um soco
b. A Mulher Gato não gostava do Batman
c. Esse rio tem uma forte correnteza
d. Então o Pingüim chegou na festa
Pela classificação da Gramática Tradicional, as três primeiras cláusulas de (14) e (15) são transitivas, pois apresentam um objeto como complemento do verbo. Segundo a formulação de Hopper & Thompson, (14a) e (15a) ocupam lugar mais alto na escala de transitividade uma vez que contêm todos os dez traços do complexo: dois participantes (Jerry e Sam / Batman e Pingüim); verbo de ação (knocked / derrubou); aspecto perfectivo (ação completa); verbo punctual (não durativo); sujeito intencional; cláusula afirmativa; cláusula realis (modo indicativo); sujeito agente (Jerry / Batman); objeto afetado e individuado (Sam / Pingüim – referencial, humano, próprio, singular).
Ocupando o segundo lugar na escala de transitividade, temos (14d) e (15d), classificadas como intransitiva pela Gramática Tradicional. Estas cláusulas contêm sete traços: cinese; aspecto perfectivo; verbo punctual; sujeito intencional; polaridade afirmativa; modalidade realis; sujeito agente.
(14b) e (15b) estão mais abaixo na escala: (14b) não têm ação, perfectividade, punctualidade, afetamento e individualização do objeto; (15b) apresenta apenas quatro traços positivos: dois participantes (Mulher Gato e Batman), objeto individuado (Batman), aspecto perfectivo e modalidade realis.
Por último, as cláusulas com menor grau de transitividade são (14c), que só apresenta os traços modalidade (realis) e perfectividade, e (15c), que só apresenta os traços modalidade (realis) e polaridade (afirmativa).
Com o objetivo de observar como a gramática do verbo e de seus argumentos se manifesta na conversação natural, Thompson & Hopper (2001) retomam o tema da transitividade. A análise de um corpus conversacional do inglês sugere que o sentido de um verbo ou predicado está relacionado aos esquemas gramaticais em que ele pode ocorrer. Por exemplo, propriedades semânticas específicas freqüentemente acompanham os usos intransitivos, como em: Eles continuaram bebendo, em que beber envolve álcool, e não água ou refrigerante. Os autores concluem que a análise de dados da conversação fornece evidência de que faz parte do conjunto de conhecimentos que os falantes dominam sobre verbos o leque de formas com as quais eles podem ser usados de acordo com os diferentes sentidos que têm. Assim, quanto mais variados os tipos de usos da língua a que os falantes estão expostos ou dos quais participam, tanto maior o campo de opções que pode ser estocado para o sentido de um dado verbo.
Nessa perspectiva de análise não há espaço para estruturas argumentais fixas ou rígidas. O conhecimento que adquirimos sobre os verbos – com que elementos ele se combina – pode não estar estocado em categorias nitidamente distintas. Um verbo como comer, por exemplo, pode ser estocado como transitivo ou intransitivo. Ao se deparar com um novo verbo (p. ex. dolarizar, em português, ou e-mail, como em Thompson & Hopper 2001), o falante pode tratá-lo como um membro prototípico da classe dos verbos e até mesmo como um membro da subclasse de verbos com dois argumentos. Assim, a gramática da cláusula ou estrutura argumental é formada do mesmo modo que as outras categorias: através do contínuo processo cognitivo de classificação, refinamento e generalização a partir das interações comunicativas diárias.
Com o propósito de responder a questões como:
(i) qual é a natureza do significado verbal e qual a sua relação com o significado oracional?
(ii) de que modo enunciados novos se baseiam em enunciados previamente aprendidos?
Goldberg (1995) propõe que as orações básicas são exemplos de construções – correspondências de forma-significado que existem independentemente de verbos particulares. Logo, as próprias construções transmitem significado, independentemente das palavras que compõem a oração. Nessa abordagem, o mesmo verbo pode ocorrer em mais de uma estrutura argumental. Assim como os substantivos, os verbos envolvem significados que fazem referência a um frame semântico alimentado por conhecimento cultural e pragmático.
Cada uma das construções de uma língua designa uma cena relevante, de tal modo que as construções que correspondem a tipos oracionais básicos codificam como seu sentido central tipos de eventos que são essenciais ou básicos à experiência humana. A integração entre verbo e construção se reflete no fato de que a construção delimita os tipos de papéis argumentais a ela associados. O número e o tipo de papéis argumentais envolvidos na interpretação de uma determinada oração corresponde ao número e tipo de papéis argumentais presentes no frame semântico associado ao verbo dessa oração.
Alguns tipos de construção em português incluem:
1.
Bitransitiva
X CAUSA Y RECEBER Z Suj
V Obj Obl
Ele deu o dinheiro a ela
2. Movimento causado X CAUSA Y MOVER Z Suj V Obj Obl
A menina jogou a boneca no chão
O sentido central de uma construção está associado a um conjunto de sentidos a ela relacionados, como um caso de polissemia construcional: a mesma forma é emparelhada a sentidos diferentes, mas relacionados. O sentido central de uma construção bitransitiva, por exemplo, envolve a transferência bem-sucedida de um objeto para um recipiente, em que o referente do sujeito agentivamente causa essa transferência. Outras construções a ela associadas representam extensões metafóricas que têm como seu domínio de origem esse sentido central, em termos muito semelhantes à proposta de Givón, como no enunciado ‘Ela deu um telefonema pra delegacia’. Uma das vantagens dessa análise reside no fato de que outras classe de significados podem ser representadas de maneira mais econômica como extensões do sentido central.
Na lingüística contemporânea, estrutura argumental aponta para a idéia de que os predicados são listados no léxico com frames que especificam quais são seus argumentos obrigatórios e quais são opcionais. Isso significa listar as construções em que um dado verbo pode participar. Parece consensual que a estrutura argumental dos verbos é um tipo de conhecimento que o falante adquire à medida que aprende a usar a sua língua. Contudo, as discussões sobre a estrutura argumental têm sido baseadas em exemplos fabricados, e não em textos reais.
Quanto à impossibilidade de traçar fronteiras nítidas entre predicados de um e de dois participantes, observa-se que, além de as línguas naturais diferirem quanto à marcação desses predicados, em uma mesma língua os predicados variam em relação à especificação clara dos nomes com os quais podem ocorrer. Desse modo, alguns verbos podem alternar entre uma configuração de um participante ou de dois participantes, comprovando a fluidez entre as duas categorias de predicado. Veja-se, por exemplo, a alternância entre Eu fervi a água e A água já ferveu.
No contexto de um quadro teórico que postula uma relação de simbiose entre discurso e gramática, está claro que essa preferência por uma estrutura argumental decorre de pressões discursivas e cognitivas. Nesse sentido, a categorização dos verbos é mais produtivamente abordada por meio da investigação do comportamento desses elementos nos textos, admitindo-se a competição ou interação entre forças internas e forças externas ao sistema. Logo, a transitividade do verbo não deve ser determinada exclusivamente através do critério número de argumentos presentes na cláusula.
Pelo que foi exposto, concluímos que há vários problemas envolvidos na visão tradicional da estrutura argumental, que leva em conta cenas fixas. Na verdade, a estrutura argumental parece ser muito mais variável comparada com o que tradicionalmente se afirma sobre a gramática das cláusulas. Trabalhos recentes na linha funcionalista evidenciam que a estrutura argumental tem a ver com freqüência no uso lingüístico real. O modo como os verbos se combinam com nomes não é uma propriedade estável dos itens no léxico mental, mas um fato altamente variável. Somente através do exame de dados de textos reais é possível determinar como os verbos e seus argumentos são usados por falantes reais, engajados em interações comunicativas. A análise desses dados pode fornecer material relevante para a compreensão de como os humanos produzem e processam a linguagem. Pretendemos, portanto, contribuir para a formulação de uma gramática do uso no que se refere à transitividade verbal, observando os padrões recorrentes nos textos para saber que construções os falantes de fato usam, categorizam e estocam.
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