Apesar de a Carta Magna, no Brasil, objetivar amparar igualmente os indivíduos, independentemente de credo, raça ou língua, sabe-se que o paradoxo cultural, nesse país, é constante. Referindo-se à língua, já há uma incoerência: se a língua é um sistema de signos lingüísticos sem o qual a comunicação não se faz favorável, por que limitá-la a regras pré-estabelecidas que satisfazem apenas aos chamados “donos do poder” ou à classe dominante?
Durante minha trajetória como professora de Língua Portuguesa sempre me deparei com questionamentos angustiantes acerca das dificuldades dos alunos em aprender uma língua que parece outra, diferente da dele. São como dois universos que se chocam entre si e que não correspondem, algumas vezes, ao contexto vivido pelo falante. Tem-se sempre a impressão de que o Português na escola é como um fator externo ao aluno. Considero que o ensino de Língua Portuguesa apresenta-se dissociado das variedades lingüísticas presentes no cotidiano de cada indivíduo, sendo o maior exemplo disso encontrado no livro didático que, quando analisado detalhadamente, deixa transparecer apenas o ensino de um padrão considerado certo, mas que destoa do falar do brasileiro, com suas características próprias.
Gnerre (1994, p. 6) aponta para a relação entre a linguagem a escrita e o poder, através de uma perspectiva lingüística e histórica, e alerta para a imposição de uma norma culta que apenas seja privilégio de uma minoria da população e que reflita os anseios da classe privilegiada da sociedade, o que significa que apenas uma parte dos integrantes de uma sociedade tenha acesso a essa variedade culta ou padrão:
“A
língua padrão é um sistema comunicativo ao alcance de uma parte reduzida dos
integrantes de uma comunidade; é um sistema associado a um patrimônio cultural
apresentado como um corpus
definido de valores, fixado na tradição escrita.”
Segundo
Gnerre (1994, p. 7), uma variedade lingüística vale como reflexo de autoridade
econômica e social. Como exemplo, cita-se a importância que o francês já
teve, no plano internacional, e depois o inglês. O ponto mais importante de
ascensão de uma variedade lingüística é a sua associação à escrita e a
sua transformação na variedade da língua usada na transmissão de informação
de ordem política e cultural.
É
a emergência política e econômica de
um grupo social que faz com que a variedade por e le usada
seja rapidamente associada à escrita, o que vai implicar também na análise
profunda dessa variedade e o seu processo de elaboração. A variedade lingüística
legitimada é extraída de grupos de poder, a partir de uma determinada tradição
cultural e definida como identidade nacional.
Bourdieu,
apud Soares (1986, p. 72), ao fazer
uma análise social sobre a linguagem, aponta, no processo de interação
verbal, que o seu uso está relacionado às condições sociais do indivíduo, não
podendo ocorrer dissociação entre a linguagem e as condições em que ela
ocorre. O autor vai mais além, ao afirmar que a escola age como reprodutora de
um sistema lingüístico regido por um dialeto socialmente privilegiado que a
impede de romper com a norma padrão; pois, caso isso ocorresse, a discriminação
fora da escola continuaria a existir. Devido a isso, o autor faz o seguinte
questionamento:
“Pode-se
modificar a língua no sistema escolar sem modificar todas as leis que definem o
valor dos produtos lingüísticos das diferentes classes no mercado? Sem
modificar as relações de dominação na ordem lingüística, isto é, sem
modificar as relações de dominação?” (op.cit.,
p. 72)
A
questão é que a escola não possui o poder de modificar as relações de
dominação lingüística, uma vez que esta dominação é o reflexo do poder
econômico e social, que remete à velha história do dominador sobre o
dominado. E que, paradoxalmente, é reproduzida na escola através de um ensino
conservador e da eleição de uma norma de prestígio.
“Embora
pretendam, aparentemente, lutar contra a discriminação social, cultural e lingüística,
tanto a tentativa de superação das “diferenças” pela educação compensatória
quanto a tentativa de superação das “diferenças” pela educação para o
bidialetalismo funcional dissimulam a função, que a escola tem, de preservar
essa discriminação e de legitimar a dominação, pois ambas aceitam um
único saber lingüístico como legítimo saber das classes dominantes, e
consideram como não-legítimo os demais...” (op.
cit. p. 54).
Logo,
segundo o autor, para que haja uma mudança lingüística, é necessária uma
reestruturação sócio-econômica. Enquanto esta reestruturação não ocorre,
a escola tem se mantido na função de reproduzir a estrutura lingüística
“socialmente” aceita e, conseqüentemente, as desigualdades que privilegiam
uns e prejudicam outros, contrariando o seu discurso de igualdade e justiça.
Devido ao fato de estarmos em um país colonizado por lusitanos, assumimos uma bagagem cultural na qual a linguagem se insere. Apesar de a língua portuguesa ter adquirido características próprias na fonética, sintaxe e léxico, neste trabalho, irei me deter apenas na questão da colocação pronominal, em que existe um paradoxo entre o que se ensina no Brasil e a realidade lingüística.
Tarallo e Duarte (1988, p. 66), apud Mattos e Silva (2002) demonstra como se processa o objeto anafórico no português brasileiro: a pergunta “Há quanto tempo você conhece a Maria?”, tem como resposta “Eu a conheço há muitos anos”. E que corresponde cada vez menos à estrutura freqüente na fala (Eu conheço ela há muitos anos). A estrutura imposta pela escola é usada na fala e escrita de pouquíssimos professores.
Lobo (1992) analisa a colocação dos clíticos em um corpus dos meados do século XVI e em um corpus atual do NURC. Analisando apenas a fala atual, a autora confronta a colocação pronominal de informantes do NURC (todos com escolaridade superior) com as prescrições de gramáticas de grande circulação no Brasil, encontrando os resultados abaixo descritos:
Obediência à prescrição gramatical. |
Colocação pré-verbal |
Colocação pós-verbal |
SIM NÂO |
330 98% 8 2% |
60 33% 120 67% |
Lobo
(1992, apud Mattos e Silva, 2002)
Sobre
estes resultados, Lobo ressalta o seguinte:
“A
colocação pré-verbal do clítico é de 98% - obediência quase categórica -,
a desobediência às prescrições indicadoras da colocação pós-verbal – ou
seja, a utilização da colocação pré-verbal em contextos em que a língua
padrão prevê a ocorrência da colocação pós-verbal – atinge o expressivo
índice de 67%. A relação entre esses dois resultados faz-nos, por
conseguinte, interpretar os 98% de ocorrências da colocação pré-verbal nos
contextos em que as gramáticas normativas o indicam não como reflexo da obediência
dos falantes à prescrição gramatical, mas tão somente como produto da
convergência entre a regra prescrita e o comportamento habitual dos falantes
analisados, que é o de antepor o clítico ao verbo na maioria quase absoluta
dos contextos analisados.” (1992, p. 188-189)
Tânia
Lobo, em sua análise, considerou os aspectos geográficos e etários. Em relação
ao segundo, observou o fato de que a ênclise ainda é comum em pessoas de faixa
etária mais elevada, mas que não atinge 50% dos falantes observados. O que
demonstra a distância entre a prescrição normativa da língua e o uso culto
oral formal.
Bagno
(1999, p. 24) afirma, sobre a questão pronominal no Brasil:
“Nossas
crianças usam sem problema me e te - “Ela me
bateu”, “Eu vou te pegar” -, mas o/a jamais, que são substituídos por
ele/ela: “Eu vou pegar ele, “Eu vi ela”. As formas lo
e la
- pagá-lo, vê-la -, então, nem pensar. Se as crianças não usam é
porque não ouvem os adultos usar, se os adultos não usam é porque não
precisam desses pronomes.”
É
claro que, em suas idéias, Bagno reconhece que esses recursos aparecem em situações
formais e na língua escrita, que é quando o falante quer, ou precisa, deixar
claro que conhece as regras impostas pela gramática. A qual, por sua vez, é
estática e desconhece as transformações sofridas pela língua, considerando
as construções lingüísticas como “certas” ou “erradas”. Na realidade
é essa visão errônea de poder-se denominar o “certo” e o “errado” que
gera o preconceito lingüístico. E é por causa dele que acaba-se ensinando e
cobrando o que estabelece a gramática prescritiva que, apesar de ter aspectos
em comum entre portugueses e brasileiros, não acompanha o falar
efetivamente brasileiro.
Esta
seção faz um rastreamento da colocação pronominal em gramáticas normativas.
De início, serão consideradas as seguintes passagens:
1.
“A
posição normal do pronome é a ênclise. Para que ocorra próclise ou a mesóclise
é necessário haver justificativas”. (Paschoalin
& Spadoto, 1996, p. 278)
2.
“Sendo o pronome átono objecto directo ou indirecto do verbo, a sua
posição lógica, normal, é a ÊNCLISE. Há, porém, casos em que, na língua
culta, se evita ou se pode evitar essa colocação, sendo por vezes divergentes
neste aspecto a norma portuguesa e a brasileira”
(Celso Cunha & Lindley Cintra, p. 222)
3.
“Com mais freqüência ocorre entre brasileiros, na linguagem falada ou
escrita, o pronome átono proclítico ao verbo principal, sem hífen. A gramática
clássica, com certo exagero, ainda não aceitou tal maneira de colocar o
pronome átono, salvo se o infinitivo está precedido de preposição (Começou
a lhe falar ou a falar-lhe)”. (Evanildo Bechara, p. 590)
4.
“Caso o infinitivo impessoal venha precedido de palavra negativa, é
indiferente a próclise ou a ênclise, embora haja maior tendência para esta última.
(Calou-se para não magoar-me/ Calou-se para não me magoar).” (Ernani Terra & José de Nicola, p. 215)
Através
das citações acima, observa-se que existe uma tendência para considerar a
posição pós-verbal (enclítica), por parte de alguns gramáticos, como a posição
básica dos clíticos no português. Bechara, entre os gramáticos citados, no
entanto, registra que, no português brasileiro, a realidade já se mostra
diferente, com a preferência do uso da próclise. O exercício abaixo, retirado
de um livro didático da 3ª série do ensino fundamental, também revela que a
escola considera a ênclise como a posição normal do clítico, no português.
|
Pode-se
atestar que o ensino nas escolas mantém uma imposição em relação ao que se
refere à língua padrão. A atividade apresentada mais uma vez atesta que, nas
escolas, pressupõem o uso da ênclise como básico, sendo a próclise apenas
relacionada a determinados contextos.
Para
este trabalho de pesquisa, tomou-se como parâmetro a observação de dois
jornais de grande circulação nos meios culturais: do Brasil (A Tarde); e de
Portugal (JL – Jornal de Letras Artes e Idéias). O primeiro datado de 27 de
julho de 2003, cujo entrevistado foi um professor aposentado da Universidade
Federal da Bahia e um dos mais brilhantes e polêmicos juristas do Brasil. E o
segundo, datado de 25 de junho de 2003, cuja entrevistada foi uma professora
associada da Universidade de Évora. Foram observadas sentenças com a presença
de clíticos e registrados os casos de clíticos antes do verbo (próclise),
depois do verbo (ênclise) e no meio do verbo (mesóclise). Os casos foram
registrados, quantificados e identificadas as freqüências. Nessa análise
quantitativa, foram encontrados os seguintes resultados:
|
Português
brasileiro |
Português
europeu |
Próclise |
21
casos - 72% |
22
casos – 54% |
Ênclise |
08
casos - 28% |
19
casos – 46% |
Uma
ligeira análise desses dados deixa claro que o maior índice de uso de clíticos
na posição enclítica é registrado em Portugal. No Brasil, a ênclise é bem
menos freqüente e a mesóclise inexiste nos dados observados. Porém, ambos os
entrevistados apresentam a ênclise em suas falas, com uma tendência maior para
o uso do clítico na posição proclítica.
Os dados mostram que, no Brasil, não é a ênclise a posição normal do clítico e que, mesmo em Portugal, a próclise já ocorre com muita facilidade. Além desses dados, registrou-se apenas (01) um caso de mesóclise no português europeu. Isso parece indicar que essa colocação pronominal tende a se reduzir no português europeu, tendo já desaparecido integralmente no português brasileiro.
Não
há como negar que a nossa história, como país colonizado, condicionou a nossa
língua. Apesar de o grito de independência ter sido proferido há quase dois séculos,
ainda estamos presos a dogmas lingüísticos que pouco têm a ver com a
linguagem que conseguimos adquirir. As nossas escolas ainda tentam copiar uma
linguagem que não caracteriza o nosso povo, por, talvez, ainda não ter se
desvinculado das orientações e da obediência esperada. No ensino de Língua
Portuguesa, sair desta redoma de vidro em que se tornou a linguagem é ir de
encontro a uma tradição purista e passadista e estar à mercê de um
preconceito lingüístico. Como diz Bagno:
“No
que diz respeito ao ensino do português no Brasil, o grande problema é que
esse ensino até hoje, depois de mais de cento e setenta anos de independência
política, continua com os olhos voltados para a norma lingüística de
Portugal. As regras gramaticais consideradas “certas” são aquelas usadas
por lá, que servem para a língua falada lá, que retratam bem o funcionamento
da língua que os portugueses falam”. (Bagno, 1999, p.
26)
No entanto, já não é nenhum segredo o fato de que somos “diferentes”, lingüisticamente, em relação a Portugal. A nossa fonética, sintaxe e o nosso léxico mudaram. Portanto, a consciência de um ensino mais voltado para a nossa realidade se faz, cada dia, mais necessário. O próprio Oswald de Andrade já defendia a existência de uma língua vinda do povo e que refletia o verdadeiro falar brasileiro. Observemos o que nos diz no poema Pronominais:
Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro.
Andrade
faz-nos sempre refletir sobre a importância de um falar tipicamente brasileiro,
que seja o reflexo da nossa cultura e não um paradoxo que dificulta o
aprendizado, além de não apresentar criatividade e interatividade. Esse fato
nos mostra que a visão que a grade curricular das escolas tenta passar para o
estudante, bem como a não aceitação das variedades lingüísticas, servem
apenas para reprimir a liberdade de expressão e a autenticidade de cada indivíduo.
A
escola mantém seus dogmas educativos, confundindo os conceitos de integração
e socialização e, por acreditar ser transmissora inquestionável da cultura, não
busca entender que existe a necessidade de se construir projetos que aproveitem
a diversidade cultural existente entre os alunos e professores, construindo uma
unidade na diversidade, fundamentada no respeito mútuo e na realidade vivida
por cada um. É necessário, pois, criar um
trabalho com
rupturas ideológicas
e passar
da uniformidade
de pensamento
disciplinado
para o respeito às diversidades de pensamento e ação, enveredando por uma
aprendizagem descentralizada.
Portanto, vai a seguinte pergunta: Que variedade lingüística a escola deve realçar? É claro que não existe dúvida em relação à função que a norma culta desempenha dentro de um determinado contexto social. É a variedade usada na redação de um livro, de jornais, revistas etc. É a língua considerada oficial do ponto de vista pedagógico e cultural; porém, nem mesmo por isso a escola deve ignorar as outras variedades; pois, caso isso aconteça, corre o risco de cair na irrealidade. E nem deve ser preconceituosa em relação ao falante de nível social e cultural menos elevado, já que este não teve, muitas vezes, a oportunidade de aprender a norma padrão, por sinal muito influenciada pelo modelo lusitano e, por isso,
falam “errado” . Afinal, não se pode esquecer que a linguagem dessas camadas menos privilegiadas corresponde a uma cultura popular presente nas sociedades mais desenvolvidas e urbanizadas do mundo contemporâneo. Ela tem, no entanto, um significado
especial
nas sociedades do chamado Terceiro Mundo, pelo fato de que, nessas sociedades, a
linguagem popular compreende um grande número de variedades usadas por uma
proporção significativa da população.
Logo,
a língua deve ser vista como um processo de interação contínua que permite a
realização da comunicação. E o seu ensino não deve estar dissociado da
prescrição, entretanto, deve valorizar prioritariamente a comunicação e a
interação, independente do uso de normas gramaticais ou de valorização de um
dialeto em detrimento de todos os outros. A
escola precisa entender que o ensino da língua deve estar alicerçado à fala e
a textos vivos, proporcionando um estudo descontraído e que se desenvolva com
muito prazer. É necessário entender também que as camadas populares devem
dominar o dialeto de prestígio, para que esse dialeto possa ser um instrumento
contra as desigualdades sociais. É necessário que a escola explique o prestígio
que se atribui a uma variedade lingüística em detrimento de outras para que,
assim, o aluno entenda em que lugar está inserido o seu dialeto nas relações
sociais.
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