A
criança era um segmento praticamente excluído do mundo da leitura até o século
XIX, período considerado como de expansão da literatura infantil. A partir de
então as crianças começam a formar um novo público de leitores, fato
carecedor de um mercado editorial que atendesse as suas necessidades. Para
Martyn Lyons (1999, p.181):
A
emergência de uma florescente indústria de literatura infantil foi parte do
processo que Philippe Áries denominou “a invenção da infância” - a
definição da infância e da adolescência como etapas distintas da vida, com
problemas e necessidades específicas. Na primeira parte do século XIX,
contudo, as necessidades próprias do leitor infantil eram reconhecidas apenas
para o objetivo de impor um código moral estritamente convencional. Em conseqüência,
grande parte da literatura infantil do início daquele século era rigorosamente
didática.
Os
livros que mais circulavam entre os pequenos eram contos morais curtos,
envolvendo crianças, com ênfase na bondade para com os animais, na coragem e
na solidariedade familiar, exemplo acabado deste modelo é o livro Cuore (1886),
do escritor italiano Edmond De Amicis, que narra episódios ligados ao amor e o
respeito à família, aos mais velhos, à escola, aos mestres e, sobretudo, ao
patriotismo.
Nessa época era também
comum nos países protestantes o aprendizado da escrita e da leitura a partir da
Bíblia. No entanto, havia a necessidade de uma bibliografia leiga cuja demanda
os editores se apressaram em satisfazer. Os textos recomendados para crianças
ainda eram de autores dos séculos XVII e XVIII, como As Fábulas de La
Fontaine,editadas entre 1668 e 1694; As aventuras de Telêmaco (1717),
de Fénelon, lançadas postumamente; e os Contos da Mamãe Gansa (1697), de
Charles Perrault. Eram esses os livros que mais gozavam da popularidade
universal, razão pela qual foram os mais editados em várias versões adaptadas
conforme as idades da criança.
No
século XVIII, outras formas de literatura infantil começaram a se desenvolver,
como as adaptações dos romances de aventuras de Robson Crusoé
(1719), de Daniel Defoe e Viagens de Gulliver (1726), de
Jonathan Swift, bem como a permanência dos contos de fadas, recontados da tradição
oral, primeiro por Perrault, no século XVII, e um século depois, pelos irmãos
Grimm. Versões orais independentes coexistiram com os textos do século XIX dos
mesmos contos, como exemplo as histórias de Perrault que sobreviveram, embora
nem sempre em sua forma original.
A
imprensa destinada às crianças é também um gênero que se inaugura neste século,
cujo discurso enfatizava a educação e a recreação infantil. A obra As
aventuras de Pinóquio, do escritor italiano Carlo Collodi, é originário
desse gênero porque, a princípio denominado Storia di um burattino,
fora escrito em capítulos num semanário para crianças (O gionarle per i
bambini de Roma), em 1881, para depois ser transformado em livro somente em
1883. No entanto, a função do texto de Collodi não é de instruir, nem
educar, embora essas abordagens não sejam de todo ignoradas. O livro estimula
muito mais o prazer pela leitura, desenvolvendo o desejo da criança pela
fantasia e pela magia, temáticas já reconhecidas no gosto desses novos
leitores, confirmadas por obras bem sucedidas como os Contos (1833), de
Hans Christian Andersen e Alice no país das maravilhas (1863), de Lewis
Carroll.
A
obra As aventuras de Pinóquio se fez notar desde a sua origem pela forma
como circulava -
era contada em capítulos, cujo atraso, quando ocorria, provocava reclamações
dos pequenos leitores. A este fato, o da forma de circulação, soma-se um
outro: o criador de Pinóquio inovou no tratamento lingüístico ao se dirigir
aos seus ouvintes/leitores -
há uma identificação entre esses e o narrador, expressa desde o primeiro capítulo
da obra, estendendo-se em várias passagens ao longo da história. No nível da
narrativa percebe-se quão próximo
o narrador está de seu público, situação que ele faz questão de expressar,
como se pode verificar nos trechos seguintes:
Era
uma vez...
Um
rei! Dirão logo meus pequenos leitores.
Não,
crianças, está errado. Era uma
vez um pedaço de pau. (p.13)
(...)
Vou pois contar-lhes, crianças, que enquanto o pobre Gepeto era levado, sem ter
culpa nenhuma, para a prisão... (p.23)
-
Lhes direi, meus pequenos e caros leitores: a surpresa foi Pinóquio, ao
acordar, quis coçar a cabeça, e no coçar percebeu (...) Adivinhem o que
percebeu? (...) Deixo para vocês imaginarem a dor, a vergonha e o desespero do
pobre Pinóquio! (p.129)
A primeira fala ( Era uma vez...) já se inicia com reticências e
o não-dito logo se completa pelo esperado em qualquer fábula. Mas esta é uma
história que desde o início nega o lugar comum, oferecendo outras formas de
abordagem desse gênero, a partir de sua linguagem e de seu protagonista -
um pedaço de madeira que terá ao longo de sua trajetória inúmeras transformações:
pedaço de pau, boneco, marionete, cão de guarda, burro e por fim menino.
No plano da
narração, o autor tem igual preocupação em se aproximar dos leitores mirins
ao registrar, através do protagonista, os anseios de tornar realidade os desejos
das crianças: sair do anonimato de ser humano e poder ser uma criança de
verdade, com direito a brincar, sonhar e errar:
-
E qual seria este ofício?
-
O de comer, beber, dormir, divertir-me e vagabundear de manhã
à noite. (p.24)
-
E se no lugar de mil moedas, os galhos da árvore me derem duas mil?... Ou quiçá,
cinco mil?... E se no lugar de cinco mil eu encontrar cem mil? Oh! Que grande
ricaço eu me tornaria! Eu iria ter um palácio, mil cavalinhos de madeira com
as cavalariças para poder brincar, uma adega cheia de licores doces e uma
prateleira cheia de fruta-de-conde, de tortas, de panetones, de amaretos e de
creme com biscoitos. (p. 73)
Outras
imagens registram o tratamento diferente dado por esse autor, que inicia a obra
assim: Era uma vez um pedaço de pau. Vê-se que a narrativa apresenta
uma certa desordem que foge aos padrões clássicos das histórias de “era uma
vez”, porque nesta não “era uma vez um rei”, como se deveria esperar em
qualquer história infantil, aqui o rei não existe, mas
é substituído por um simples pedaço de pau.
A
narrativa é ainda inovadora à medida que trabalha a temática inversa à dos
clássicos comuns, já que esses atendem às regras ditadas pelo criador do
texto numa perspectiva do adulto. Enfim, Collodi direciona a história não
apenas em relação à infância mas
aos próprios leitores, o que instaura na criança uma proximidade entre ela e a
escritura.
Há
ainda outro registro que denota uma certa sedução no convite a uma leitura
diferente daquelas às quais as crianças estavam acostumadas. No terceiro capítulo
desse livro, quando já está
finalizada a feitura do boneco e este dá indícios de ser uma narrativa que
difere das demais, por ser destinada especialmente a crianças, há um convite
feito pelo narrador aos leitores, seduzindo-os a participar da leitura, o que
induz os pequenos a continuar a história uma vez que esta conta as suas
aventuras/desventuras: O que aconteceu depois é uma história inacreditável,
que contarei nos próximos capítulos (p.21).
O
autor dessa obra é consciente de que a pedagogia moralizante pouco ou quase
nada adiantou para despertar o interesse da leitura nas crianças e motivá-las
a irem para a escola, por isso cria As aventuras de Pinóquio, um livro
que não tem uma finalidade educativa, mas que discute a postura honesta,
estudiosa e trabalhadora de uma criança, com uma linguagem que cria intimidade
entre leitor/autor e, ao mesmo tempo, favorece, sem amaneiramentos, uma visão
ampliada dos problemas pelos quais toda criança pode passar (aversão à
escola, desobediência, trabalho, fome, pobreza, solidariedade, malícia,
engodo, etc.), sem restringir temáticas na obra. O tom pueril e moralizador
adotado pelos escritores de outrora, e até pelos contemporâneos, como é o
caso de Cuore,sugere uma incapacidade
de compreensão (por parte da criança) em relação ao mundo.
Ele
não subestima a capacidade da criança, nem a protege do mundo. Alguns dos
discursos impressos na obra são extremamente didáticos, como o do
Grilo-Falante e da Fada, o que proporcionam a discussão dos problemas na
perspectiva dos adultos, valorizando a reação das crianças diante da situação.
Isso mostra a abertura do texto, não como linha pedagógica, encaminhando o
leitor para essa única possibilidade, mas como valor literário, cujo
encaminhamento do leitor é para a plurissignificação tão comum a essa
modalidade. E Collodi soube como ninguém trabalhar essa questão. Maria
Antonieta Antunes Cunha (1989, p.27) afirma:
A
literatura infantil enquanto manifestação artística não é traição: apesar
de ser sempre o adulto a falar à criança, se ele for realmente artista, seu
discurso abrirá horizontes, proporá reflexão e recriação, estabelecerá a
divergência, e não a convergência. E suas verdadeiras possibilidades
educativas estão aí.
Traição,
sim, pode ocorrer no plano do educador, quando este escolhe para impingir à
criança o livro de intenções pedagógicas, e não o literário.
Carlo
Collodi, assim como Lewis Carol em Alice no País das Maravilhas, James
Barrie em PeterPan, está entre os criadores da literatura infantil como
um gênero à parte. Ele aponta a postura dos adultos em relação às crianças
e a reação delas, de forma a promover a reflexão do problema aos olhos do
leitor, embora reafirme em várias passagens da obra a necessidade de mudança
daqueles para com estas. O narrador, utilizando-se do artifício da aproximação
lingüística para com os leitores, mostra a afeição que ele sente pelo
conflito vivenciado pelo protagonista.
Essa
faceta do autor em criar um narrador que não represente o controle do adulto
sobre o universo interior da criança só comprova quanto Collodi estava
sensibilizado com o papel que a criança desempenhava naquele momento. O
narrador não tenta nem disfarçar a sua imparcialidade, nem mesmo quando cede
voz aos personagens adultos porque quando o faz é apenas para reafirmar o seu
discurso controlador:
Afinal, -
gritou Pinóquio enfurecido – posso saber, Papagaio malcriado, do que você
está rindo?
-
Rio-me dos tolos que acreditam em qualquer bobagem e se deixam tapear por
quem é mais astuto que eles.
-
Por acaso se refere a mim?
-
Sim, pobre Pinóquio, falo de você que é tão ingênuo de acreditar que
o dinheiro se possa semear e colher no campo, como se fosse feijão ou abóbora.
Hoje (mas tarde demais!), tive de me convencer que para juntar honestamente
algum dinheiro é preciso saber ganhá-lo, ou com o trabalho das mãos ou bem
com o engenho da inteligência. (p.74)
O
veio da literatura utilitária é perceptível na fala do animal e reforçado
pela escolha do animal, visto que o papagaio é um animal que repete as falas
dos humanos. Esse discurso é extremamente repetitivo e não acontece apenas no
discurso dos adultos. Quando Pinóquio resolve ir para o País dos brinquedos, a
voz do burrinho (que mais tarde Pinóquio descobre já ter sido um menino)
alerta-o: -
Não o esqueça, tolinho! Os meninos que param de estudar e dão as
costas aos livros, à escola e aos
professores, para se entregar inteiramente aos brinquedos e às diversões, não
podem ter outro fim senão a desgraça (p.125-6). Essa voz ecoa
repetitivamente como forma de ensinar os valores que os adultos julgam
“positivos” para as crianças. Mas os leitores percebem que esse discurso não
lhes convence, assim como não o faz com Pinóquio, porque em inúmeras ocasiões
ele o ignora e continua vivendo outras aventuras.
Não
se encontra na obra um rito de iniciação à aprendizagem da leitura e à
escrita. Esse processo não é discutido pelo autor talvez porque seu interesse
recaia inicialmente sobre a perspectiva da criança e esta por sua vez já tinha
a escola como atividade principal
em sua vida, fato que assegura a necessidade de outras atividades com novas
formas de lazer que promovam o prazer infantil.
Embora
a escola não exista enquanto instituição concreta na narrativa, com problemas
estruturais e com dificuldades de aprendizagem, ela se representa no nível da
narrativa e da narração: o
primeiro, através da fala de Pinóquio, de seus amigos, de Gepeto, da Fada e o
do Grilo; o segundo, na voz do narrador:
-
Hoje ouvirei os pífaros, e amanhã irei
à escola, para ir à
escola, sempre há tempo. (p.37)
-
Onde quer achar um país mais salutar para nós meninos? Lá não tem escolas, não
tem professores e nem livros. Naquele país abençoado nunca se estuda. Às
quintas-feiras não tem escola, e a semana é composta de seis quintas-feiras e
um domingo.Imagine que as férias do outono começam no primeiro de janeiro e
terminam em trinta e um de dezembro. Taí um país que eu gosto! É como
deveriam ser todos os países civilizados! (p.120)
Para
Pinóquio e os demais meninos, o tipo de escola que lhes é oferecido desperta
pouco interesse. Igualmente acontece com vários leitores em relação à
narrativa que sugere uma certa estaticidade todas as vezes que “os meninos”
se encontram na escola, porque lá não há novidades. Diferentemente de quando
eles se encontram fora dessa instituição, quando há toda uma dinamicidade dos
acontecimentos, como se o autor quisesse mostrar que esse modelo de escola não
oferece o movimento de que a criança necessita. Nem tampouco são estimulantes
alguns modelos de leitura, como os de caráter pedagógico,
que só oferecem um amontoado de informações desprovidos de qualquer
processo de amadurecimento, de descoberta, pela criança, através da fantasia
permitida pela ficção.
Pinóquio
não é o único a ter aversão pela escola. Na sua segunda tentativa de freqüentá-la,
é reconhecido pelo professor como estudioso e inteligente; os amigos o seduzem
para ir à praia e nessa ocasião afirmam: “-
Deveria também se aborrecer com a escola, com a lição e com o professor,
que são os nossos três grandes inimigos”. Há no elogio do professor e
na possibilidade emitida no verbo deveria uma tendência ao estudo; o
boneco poderá ser um bom aluno, mas o conhecimento oferecido fora do ambiente
escolar é mais sedutor do que aquele limitado às grades da escola. Seria uma
forma de Pinóquio dessacralizar o saber escolarizado?
Percebe-se
na trajetória da narrativa de Carlo Collodi a vinculação da leitura à
escola. Logo que Pinóquio “nasce”,
lhe é passado esse conceito. Seu pai compra uma cartilha para que ele vá à
escola. No primeiro dia de aula ele vende a cartilha para ir ao teatro de
marionetes, e esta não é a única finalidade do livro para esse transgressor
da ordem: os livros escolares lhe servirão ainda como projéteis numa briga que
aconteceu entre ele e alguns colegas, quando estes
o convidaram para participar de uma aventura, ver o terrível Tubarão
que acabara de chegar no mar das redondezas. Ao descobrir que foi uma
brincadeira pregada pelos amigos para fazê-lo perder a escola, gerou-se uma
grande confusão. Logo, o livro vai deixar de ser o instrumento de ensinamentos
pedagógicos para ser transformado em objeto de brincadeiras: começaram a
atirar em cima dele as Cartilhas, as Gramáticas, os Giannettini, os Minuzzoli,
os Contos de Thouar, o Pulcino da Baccini e outros livros didáticos. Esta não
seria uma metáfora da narrativa para que o livro deixasse de representar
somente o saber escolarizado e passasse a ter outras conotações fora do espaço
escolar?
Os
textos que essa instituição oferecia (e parece continuar a oferecer) não
correspondem às expectativas de seus leitores, talvez porque eles assumam uma
função meramente utilitária, a serviço de posturas pedagógicas defendidas
pela escola. O narrador de As aventuras de Pinóquio, no entanto, ironiza
a posição sacralizada dos livros, quando os transforma em simples projéteis
numa briga entre Pinóquio e seus colegas, conforme já mencionado:
...desfeitos
os amarrados de seus livros da escola, começaram a atirar-lhe cartilhas, gramáticas,
contos e outros livros escolares; mas o boneco, de olho vivo e rápido, sempre
se desviava a tempo (...) Entre tais livros, tinha um volume encadernado em cartão
grosso, com a lombada e os cantos
em pergaminho. Era um Tratado de Aritmética, pesado como ele só. Um dos
moleques apanhou aquele volume, apontou para a cabeça de Pinóquio e atirou,
com quanta força tinha...(p.104-5)
A
escola, desde a sua criação, é uma instância que valoriza, seleciona e julga
os textos. Ela dita nessa seleção o que deve ser lido ou não pelas crianças,
elegendo aqueles que assumem uma feição muito mais pedagógica do que
prazerosa. A leitura realizada na escola, dessa forma, assume apenas a função
utilitária: ler para adquirir conhecimentos, atividade que, embora aconteça, não
é o seu principal objetivo. Esse tipo de leitura é negado quando Pinóquio se
encontra na fase final de sua transformação, com iniciativa própria reinicia
o processo de aprendizagem da leitura e da escrita com algo necessário, mas
prazeroso:
Nos
serões noturnos, fazia exercícios de escrita e de leitura. Tinha comprado, na
aldeia próxima por uns centavos, um grosso livro ao qual faltavam o frontespício
e o índice, e nele fazia seus exercícios de leitura. Para escrever, usava um
galhozinho afiado como uma pena; e não tendo nem tinteiro e nem tinta, o
embebia numa garrafinha cheia de suco de cereja e de amoras. (p.156)
A
leitura representada na obra através da escola só desempenha algum sentido na
vida de Pinóquio quando está associada a elementos que são inerentes ao ato
de ler como prazer e estímulo ao conhecimento e à ação.
A
história da escola registra as influências de ordem religiosa e moralizante.
Nos séculos XVIII e XIX, quando a educação escolar das crianças se encontra
em evidência, essa instituição torna-se responsável pela preparação da
criança no convívio com os adultos. A escola confina a criança entre seus
muros a um regime disciplinar, cujo rigor se assemelha a uma prisão ou
hospital, e monitorada pelas mãos dos adultos é a guardiã da ordem, responsável
pelo controle do mundo infantil. As aventuras de Pinóquio faz menção a
esses lugares, através da fala de personagens:
-Para
seu governo – disse o Grilo com a calma de sempre – todos os que exercem um
tal oficio terminam quase sempre no hospital ou na prisão. (p.24)
-
Meu filho – disse a fada -
aqueles que dizem assim acabam sempre no hospital ou na prisão. (p.97)
A
técnica da disciplina, à qual Foucault (2002) faz referência, se
apresenta em instituições como colégios, hospitais e quartéis, continua
vigorando na época da criação de Pinóquio. A criança está enquadrada nesse
regime, assim como o doente e o condenado. Não há saída para Pinóquio,
conforme mostra o Grilo e a fada, porque ele deve se inserir dentro desse
“poder disciplinar”. Segundo Foucault (idem p.43) este é com efeito um
poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior
‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e
melhor. Se a criança não se enquadrar dentro da escola (instituição
disciplinar), fatalmente ele terminará numa outra semelhante - hospital ou prisão
-
que normalize o poder instituído pela sociedade. Afinal, seguindo o pensamento
de Foucault, a prisão se parece com as fábricas, com as escolas, com os quartéis,
com os hospitais, e todos se parecem com as prisões.
Mas
Pinóquio rejeita ser adestrado. Ao
sair de seu invólucro vegetal sai também da
clausura da família e da escola, o que significa uma tentativa de se
livrar dessa rigorosa disciplina criada pela sociedade, que deseja
inseri-lo dentro das normas que convêm aos adultos. O boneco em seu itinerário busca prazer, brincadeiras e fantasia,
elementos que lhe são negados. Fugindo, tenta se opor à disciplina social.
Ele
deseja ser um menino e como tal sofre no mundo dos adultos por não saber se
proteger, por se deixar enganar por espertalhões que se aproveitam de sua
credulidade infantil, como a esperteza da raposa e do gato. Embora ingênuo, ele
sabe que não está satisfeito sob o comando dos adultos, e a prova disso é que
não aceita essa condição imposta pelos mais velhos, assim como o tipo de
escola que lhe é oferecido. As proezas vividas pelo herói são formas de negar
a posição em que se encontra a criança. As fugas, os sofrimentos, os
arrependimentos são decorrentes da necessidade de mudança, e essa mudança
ocorre quando Pinóquio se transforma em menino, não de maneira estagnada como
quer a ordem institucional da família e da escola, mas com a descoberta e
resolução do seu conflito, ou seja, romper a idéia de que a criança não é
um ser moldado conforme as conveniências dessas instituições, ao contrário
é um sujeito ativo que pode mudar a ordem estabelecida, que pode conquistar o
direito de ser criança, de ser reconhecido no mundo dos adultos.
Dentre
as diversas interpretações que podemos conferir em As aventuras de Pinóquio
uma merece destaque: os adultos e a escola não são considerados os únicos
“depositários do conhecimento e da sabedoria”. Há outros caminhos que as
crianças utilizam para adquirir o saber, sem o cerceamento das instituições
que abusam do poder que possuem e só afastam as crianças do seu meio.
O
protagonista passa por provações
das mais variadas que levam à sua transformação. Ele não se enquadra na
forma estereotipada e inverossímil de muitos textos de ficção em que todo herói
é a representação do “mocinho” da trama, enquanto o vilão simboliza o
“bandido”, carregando em si todos os vícios. O nosso herói
extrapola o significado do Bem e do Mal, porque ele carrega consigo tanto
os traços da virtude quanto dos vícios, como é de se esperar em um ser que
está se firmando como categoria humana -
como criança.
Não
é apenas o boneco que está sendo construído, o herói
constrói a si próprio enquanto pessoa. Os ensinamentos do pai, da Fada,
do Grilo e de tantos outros personagens não foram responsáveis pela mudança
ocorrida no boneco. Para o menino renascer foi necessária a viagem, a fuga, a
solidão, o autoconhecimento, a reflexão sobre o homem, a busca de si mesmo
para encontrar a nova condição de vida que tanto buscava.
Pinóquio
se destaca por ser uma obra moderna para sua época e até para a atualidade
devido a sua temática -
um grito de transformação da criança -,
e devido até a sua circulação, por se destinar especialmente a crianças.
Ele desmascara/problematiza a imagem exemplar da criança obediente que se
encontra passiva frente aos valores autoritários da sociedade.
Pinóquio
prova que a lei pode ser transgredida na busca de uma nova ordem para a criança,
para a escola e para os leitores. Há um sentimento de renúncia à pedagogia,
quando a obra busca romper com os ideais defendidos por uma pedagogia
conservadora, defendida pela escola e por alguns autores que representam esse
tipo de gênero. Essa obra nos alerta, ainda, para o fato de que o saber e o
prazer podem ser aliados, mesmo para aqueles que temem a ruptura e com isso
perdem o poder que o saber lhes dá. O autor consolida o gênero da literatura
infantil à medida que, de forma simbólica, vivencia os problemas interiores da
criança, e, portanto, dos leitores, quando sua obra é bem recebida por esse
novo público.
Com
Pinóquio a criança ocupa o seu lugar. O personagem dessa obra discute o seu
papel de passividade nas mãos dos adultos que mandam, exigem, enganam. Collodi
modifica a história da literatura infantil quando, neste livro, troca o reinado
tradicional dos adultos por um personagem que nada mais é que um “pedaço de
pau” o qual mais tarde se transformaria num menino de verdade. O autor anuncia
não apenas a ascensão da infância, mas a criação de uma literatura
destinada especialmente às crianças, e cujos temas estão ligados aos
problemas vivenciados por elas. Com
As aventuras de Pinóquio surge também
o reinado da criança.
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