A criança era um segmento praticamente excluído do mundo da leitura até o século XIX, período considerado como de expansão da literatura infantil. A partir de então as crianças começam a formar um novo público de leitores, fato carecedor de um mercado editorial que atendesse as suas necessidades. Para Martyn Lyons (1999, p.181): 

 

A emergência de uma florescente indústria de literatura infantil foi parte do processo que Philippe Áries denominou “a invenção da infância” - a definição da infância e da adolescência como etapas distintas da vida, com problemas e necessidades específicas. Na primeira parte do século XIX, contudo, as necessidades próprias do leitor infantil eram reconhecidas apenas para o objetivo de impor um código moral estritamente convencional. Em conseqüência, grande parte da literatura infantil do início daquele século era rigorosamente didática.

 Os livros que mais circulavam entre os pequenos eram contos morais curtos, envolvendo crianças, com ênfase na bondade para com os animais, na coragem e na solidariedade familiar, exemplo acabado deste modelo é o livro Cuore (1886), do escritor italiano Edmond De Amicis, que narra episódios ligados ao amor e o respeito à família, aos mais velhos, à escola, aos mestres e, sobretudo, ao patriotismo.

            Nessa época era também comum nos países protestantes o aprendizado da escrita e da leitura a partir da Bíblia. No entanto, havia a necessidade de uma bibliografia leiga cuja demanda os editores se apressaram em satisfazer. Os textos recomendados para crianças ainda eram de autores dos séculos XVII e XVIII, como As Fábulas de La Fontaine,editadas entre 1668 e 1694; As aventuras de Telêmaco (1717), de Fénelon, lançadas postumamente; e os Contos da Mamãe Gansa (1697), de Charles Perrault. Eram esses os livros que mais gozavam da popularidade universal, razão pela qual foram os mais editados em várias versões adaptadas conforme as idades da criança.

 No século XVIII, outras formas de literatura infantil começaram a se desenvolver, como as adaptações dos romances de aventuras de Robson Crusoé  (1719), de Daniel Defoe e Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift, bem como a permanência dos contos de fadas, recontados da tradição oral, primeiro por Perrault, no século XVII, e um século depois, pelos irmãos Grimm. Versões orais independentes coexistiram com os textos do século XIX dos mesmos contos, como exemplo as histórias de Perrault que sobreviveram, embora nem sempre em sua forma original.

A imprensa destinada às crianças é também um gênero que se inaugura neste século, cujo discurso enfatizava a educação e a recreação infantil. A obra As aventuras de Pinóquio, do escritor italiano Carlo Collodi, é originário desse gênero porque, a princípio denominado Storia di um burattino, fora escrito em capítulos num semanário para crianças (O gionarle per i bambini de Roma), em 1881, para depois ser transformado em livro somente em 1883. No entanto, a função do texto de Collodi não é de instruir, nem educar, embora essas abordagens não sejam de todo ignoradas. O livro estimula muito mais o prazer pela leitura, desenvolvendo o desejo da criança pela fantasia e pela magia, temáticas já reconhecidas no gosto desses novos leitores, confirmadas por obras bem sucedidas como os Contos (1833), de Hans Christian Andersen e Alice no país das maravilhas (1863), de Lewis Carroll.

A obra As aventuras de Pinóquio se fez notar desde a sua origem pela forma como circulava - era contada em capítulos, cujo atraso, quando ocorria, provocava reclamações dos pequenos leitores. A este fato, o da forma de circulação, soma-se um outro: o criador de Pinóquio inovou no tratamento lingüístico ao se dirigir aos seus ouvintes/leitores - há uma identificação entre esses e o narrador, expressa desde o primeiro capítulo da obra, estendendo-se em várias passagens ao longo da história. No nível da narrativa percebe-se  quão próximo o narrador está de seu público, situação que ele faz questão de expressar, como se pode verificar nos trechos seguintes:

 

Era uma vez...

Um rei! Dirão logo meus pequenos leitores.

Não, crianças, está  errado. Era uma vez um pedaço de pau. (p.13)

 

(...) Vou pois contar-lhes, crianças, que enquanto o pobre Gepeto era levado, sem ter culpa nenhuma, para a prisão... (p.23)

 

- Lhes direi, meus pequenos e caros leitores: a surpresa foi Pinóquio, ao acordar, quis coçar a cabeça, e no coçar percebeu (...) Adivinhem o que percebeu? (...) Deixo para vocês imaginarem a dor, a vergonha e o desespero do pobre Pinóquio! (p.129)

           

            A primeira fala ( Era uma vez...) já se inicia com reticências e o não-dito logo se completa pelo esperado em qualquer fábula. Mas esta é uma história que desde o início nega o lugar comum, oferecendo outras formas de abordagem desse gênero, a partir de sua linguagem e de seu protagonista - um pedaço de madeira que terá ao longo de sua trajetória inúmeras transformações: pedaço de pau, boneco, marionete, cão de guarda, burro e por fim menino.   

          No plano da narração, o autor tem igual preocupação em se aproximar dos leitores mirins ao registrar, através  do protagonista, os anseios de tornar realidade os desejos das crianças: sair do anonimato de ser humano e poder ser uma criança de verdade, com direito a brincar, sonhar e errar:  

 

-  E qual seria este ofício?

- O de comer, beber, dormir, divertir-me e vagabundear de manhã  à noite. (p.24)

- E se no lugar de mil moedas, os galhos da árvore me derem duas mil?... Ou quiçá, cinco mil?... E se no lugar de cinco mil eu encontrar cem mil? Oh! Que grande ricaço eu me tornaria! Eu iria ter um palácio, mil cavalinhos de madeira com as cavalariças para poder brincar, uma adega cheia de licores doces e uma prateleira cheia de fruta-de-conde, de tortas, de panetones, de amaretos e de creme com biscoitos. (p. 73)

Outras imagens registram o tratamento diferente dado por esse autor, que inicia a obra assim: Era uma vez um pedaço de pau. Vê-se que a narrativa apresenta uma certa desordem que foge aos padrões clássicos das histórias de “era uma vez”, porque nesta não “era uma vez um rei”, como se deveria esperar em qualquer história infantil, aqui o rei não existe, mas  é substituído por um simples pedaço de pau.

A narrativa é ainda inovadora à medida que trabalha a temática inversa à dos clássicos comuns, já que esses atendem às regras ditadas pelo criador do texto numa perspectiva do adulto. Enfim, Collodi direciona a história não apenas em relação à infância  mas aos próprios leitores, o que instaura na criança uma proximidade entre ela e a escritura.

 Há ainda outro registro que denota uma certa sedução no convite a uma leitura diferente daquelas às quais as crianças estavam acostumadas. No terceiro capítulo desse livro, quando já  está finalizada a feitura do boneco e este dá indícios de ser uma narrativa que difere das demais, por ser destinada especialmente a crianças, há um convite feito pelo narrador aos leitores, seduzindo-os a participar da leitura, o que induz os pequenos a continuar a história uma vez que esta conta as suas aventuras/desventuras: O que aconteceu depois é uma história inacreditável, que contarei nos próximos capítulos (p.21).

O autor dessa obra é consciente de que a pedagogia moralizante pouco ou quase nada adiantou para despertar o interesse da leitura nas crianças e motivá-las a irem para a escola, por isso cria As aventuras de Pinóquio, um livro que não tem uma finalidade educativa, mas que discute a postura honesta, estudiosa e trabalhadora de uma criança, com uma linguagem que cria intimidade entre leitor/autor e, ao mesmo tempo, favorece, sem amaneiramentos, uma visão ampliada dos problemas pelos quais toda criança pode passar (aversão à escola, desobediência, trabalho, fome, pobreza, solidariedade, malícia, engodo, etc.), sem restringir temáticas na obra. O tom pueril e moralizador adotado pelos escritores de outrora, e até pelos contemporâneos, como é o caso de Cuore,sugere uma incapacidade  de compreensão (por parte da criança) em relação ao mundo.

 Ele não subestima a capacidade da criança, nem a protege do mundo. Alguns dos discursos impressos na obra são extremamente didáticos, como o do Grilo-Falante e da Fada, o que proporcionam a discussão dos problemas na perspectiva dos adultos, valorizando a reação das crianças diante da situação. Isso mostra a abertura do texto, não como linha pedagógica, encaminhando o leitor para essa única possibilidade, mas como valor literário, cujo encaminhamento do leitor é para a plurissignificação tão comum a essa modalidade. E Collodi soube como ninguém trabalhar essa questão. Maria Antonieta Antunes Cunha (1989, p.27) afirma:

 

A literatura infantil enquanto manifestação artística não é traição: apesar de ser sempre o adulto a falar à criança, se ele for realmente artista, seu discurso abrirá horizontes, proporá reflexão e recriação, estabelecerá a divergência, e não a convergência. E suas verdadeiras possibilidades educativas estão aí.

Traição, sim, pode ocorrer no plano do educador, quando este escolhe para impingir à criança o livro de intenções pedagógicas, e não o literário.     

Carlo Collodi, assim como Lewis Carol em Alice no País das Maravilhas, James Barrie em PeterPan, está entre os criadores da literatura infantil como um gênero à parte. Ele aponta a postura dos adultos em relação às crianças e a reação delas, de forma a promover a reflexão do problema aos olhos do leitor, embora reafirme em várias passagens da obra a necessidade de mudança daqueles para com estas. O narrador, utilizando-se do artifício da aproximação lingüística para com os leitores, mostra a afeição que ele sente pelo conflito vivenciado pelo protagonista.

 Essa faceta do autor em criar um narrador que não represente o controle do adulto sobre o universo interior da criança só comprova quanto Collodi estava sensibilizado com o papel que a criança desempenhava naquele momento. O narrador não tenta nem disfarçar a sua imparcialidade, nem mesmo quando cede voz aos personagens adultos porque quando o faz é apenas para reafirmar o seu discurso controlador:

 

  Afinal, - gritou Pinóquio enfurecido – posso saber, Papagaio malcriado, do que você está rindo?

-  Rio-me dos tolos que acreditam em qualquer bobagem e se deixam tapear por quem é mais astuto que eles.

-  Por acaso se refere a mim?

-  Sim, pobre Pinóquio, falo de você que é tão ingênuo de acreditar que o dinheiro se possa semear e colher no campo, como se fosse feijão ou abóbora. Hoje (mas tarde demais!), tive de me convencer que para juntar honestamente algum dinheiro é preciso saber ganhá-lo, ou com o trabalho das mãos ou bem com o engenho da inteligência. (p.74)   

 

O veio da literatura utilitária é perceptível na fala do animal e reforçado pela escolha do animal, visto que o papagaio é um animal que repete as falas dos humanos. Esse discurso é extremamente repetitivo e não acontece apenas no discurso dos adultos. Quando Pinóquio resolve ir para o País dos brinquedos, a voz do burrinho (que mais tarde Pinóquio descobre já ter sido um menino) alerta-o: - Não o esqueça, tolinho! Os meninos que param de estudar e dão as costas aos livros, à  escola e aos professores, para se entregar inteiramente aos brinquedos e às diversões, não podem ter outro fim senão a desgraça (p.125-6). Essa voz ecoa repetitivamente como forma de ensinar os valores que os adultos julgam “positivos” para as crianças. Mas os leitores percebem que esse discurso não lhes convence, assim como não o faz com Pinóquio, porque em inúmeras ocasiões ele o ignora e continua vivendo outras aventuras.    

Não se encontra na obra um rito de iniciação à aprendizagem da leitura e à escrita. Esse processo não é discutido pelo autor talvez porque seu interesse recaia inicialmente sobre a perspectiva da criança e esta por sua vez já tinha a escola como atividade  principal em sua vida, fato que assegura a necessidade de outras atividades com novas formas de lazer que promovam o prazer infantil.

Embora a escola não exista enquanto instituição concreta na narrativa, com problemas estruturais e com dificuldades de aprendizagem, ela se representa no nível da narrativa  e da narração: o primeiro, através da fala de Pinóquio, de seus amigos, de Gepeto, da Fada e o do Grilo; o segundo, na voz do narrador:

 

- Hoje ouvirei os pífaros, e amanhã  irei à  escola, para ir à  escola, sempre há tempo. (p.37)

- Onde quer achar um país mais salutar para nós meninos? Lá não tem escolas, não tem professores e nem livros. Naquele país abençoado nunca se estuda. Às quintas-feiras não tem escola, e a semana é composta de seis quintas-feiras e um domingo.Imagine que as férias do outono começam no primeiro de janeiro e terminam em trinta e um de dezembro. Taí um país que eu gosto! É como deveriam ser todos os países civilizados! (p.120)

Para Pinóquio e os demais meninos, o tipo de escola que lhes é oferecido desperta pouco interesse. Igualmente acontece com vários leitores em relação à narrativa que sugere uma certa estaticidade todas as vezes que “os meninos” se encontram na escola, porque lá não há novidades. Diferentemente de quando eles se encontram fora dessa instituição, quando há toda uma dinamicidade dos acontecimentos, como se o autor quisesse mostrar que esse modelo de escola não oferece o movimento de que a criança necessita. Nem tampouco são estimulantes alguns modelos de leitura, como os de caráter pedagógico,  que só oferecem um amontoado de informações desprovidos de qualquer processo de amadurecimento, de descoberta, pela criança, através da fantasia permitida pela ficção.

Pinóquio não é o único a ter aversão pela escola. Na sua segunda tentativa de freqüentá-la, é reconhecido pelo professor como estudioso e inteligente; os amigos o seduzem para ir à praia e nessa ocasião afirmam: “- Deveria também se aborrecer com a escola, com a lição e com o professor, que são os nossos três grandes inimigos”. Há no elogio do professor e na possibilidade emitida no verbo deveria uma tendência ao estudo; o boneco poderá ser um bom aluno, mas o conhecimento oferecido fora do ambiente escolar é mais sedutor do que aquele limitado às grades da escola. Seria uma forma de Pinóquio dessacralizar o saber escolarizado?

Percebe-se na trajetória da narrativa de Carlo Collodi a vinculação da leitura à escola. Logo que Pinóquio  “nasce”, lhe é passado esse conceito. Seu pai compra uma cartilha para que ele vá à escola. No primeiro dia de aula ele vende a cartilha para ir ao teatro de marionetes, e esta não é a única finalidade do livro para esse transgressor da ordem: os livros escolares lhe servirão ainda como projéteis numa briga que aconteceu entre ele e alguns colegas, quando estes  o convidaram para participar de uma aventura, ver o terrível Tubarão que acabara de chegar no mar das redondezas. Ao descobrir que foi uma brincadeira pregada pelos amigos para fazê-lo perder a escola, gerou-se uma grande confusão. Logo, o livro vai deixar de ser o instrumento de ensinamentos pedagógicos para ser transformado em objeto de brincadeiras: começaram a atirar em cima dele as Cartilhas, as Gramáticas, os Giannettini, os Minuzzoli, os Contos de Thouar, o Pulcino da Baccini e outros livros didáticos. Esta não seria uma metáfora da narrativa para que o livro deixasse de representar somente o saber escolarizado e passasse a ter outras conotações fora do espaço escolar?

Os textos que essa instituição oferecia (e parece continuar a oferecer) não correspondem às expectativas de seus leitores, talvez porque eles assumam uma função meramente utilitária, a serviço de posturas pedagógicas defendidas pela escola. O narrador de As aventuras de Pinóquio, no entanto, ironiza a posição sacralizada dos livros, quando os transforma em simples projéteis numa briga entre Pinóquio e seus colegas, conforme já mencionado:

 

...desfeitos os amarrados de seus livros da escola, começaram a atirar-lhe cartilhas, gramáticas, contos e outros livros escolares; mas o boneco, de olho vivo e rápido, sempre se desviava a tempo (...) Entre tais livros, tinha um volume encadernado em cartão grosso, com a lombada e  os cantos em pergaminho. Era um Tratado de Aritmética, pesado como ele só. Um dos moleques apanhou aquele volume, apontou para a cabeça de Pinóquio e atirou, com quanta força tinha...(p.104-5)

A escola, desde a sua criação, é uma instância que valoriza, seleciona e julga os textos. Ela dita nessa seleção o que deve ser lido ou não pelas crianças, elegendo aqueles que assumem uma feição muito mais pedagógica do que prazerosa. A leitura realizada na escola, dessa forma, assume apenas a função utilitária: ler para adquirir conhecimentos, atividade que, embora aconteça, não é o seu principal objetivo. Esse tipo de leitura é negado quando Pinóquio se encontra na fase final de sua transformação, com iniciativa própria reinicia o processo de aprendizagem da leitura e da escrita com algo necessário, mas prazeroso:

 

Nos serões noturnos, fazia exercícios de escrita e de leitura. Tinha comprado, na aldeia próxima por uns centavos, um grosso livro ao qual faltavam o frontespício e o índice, e nele fazia seus exercícios de leitura. Para escrever, usava um galhozinho afiado como uma pena; e não tendo nem tinteiro e nem tinta, o embebia numa garrafinha cheia de suco de cereja e de amoras. (p.156)

A leitura representada na obra através da escola só desempenha algum sentido na vida de Pinóquio quando está associada a elementos que são inerentes ao ato de ler como prazer e estímulo ao conhecimento e à ação. 

A história da escola registra as influências de ordem religiosa e moralizante. Nos séculos XVIII e XIX, quando a educação escolar das crianças se encontra em evidência, essa instituição torna-se responsável pela preparação da criança no convívio com os adultos. A escola confina a criança entre seus muros a um regime disciplinar, cujo rigor se assemelha a uma prisão ou hospital, e monitorada pelas mãos dos adultos é a guardiã da ordem, responsável pelo controle do mundo infantil. As aventuras de Pinóquio faz menção a esses lugares, através da fala de personagens:

                    

-Para seu governo – disse o Grilo com a calma de sempre – todos os que exercem um tal oficio terminam quase sempre no hospital ou na prisão. (p.24)

- Meu filho – disse a fada -  aqueles que dizem assim acabam sempre no hospital ou na prisão. (p.97)

A técnica da disciplina, à qual Foucault (2002) faz referência, se apresenta em instituições como colégios, hospitais e quartéis, continua vigorando na época da criação de Pinóquio. A criança está enquadrada nesse regime, assim como o doente e o condenado. Não há saída para Pinóquio, conforme mostra o Grilo e a fada, porque ele deve se inserir dentro desse “poder disciplinar”. Segundo Foucault (idem p.43) este é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Se a criança não se enquadrar dentro da escola (instituição disciplinar), fatalmente ele terminará numa outra semelhante - hospital ou prisão - que normalize o poder instituído pela sociedade. Afinal, seguindo o pensamento de Foucault, a prisão se parece com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se parecem com as prisões.

Mas Pinóquio rejeita ser adestrado. Ao sair de seu invólucro vegetal sai também da  clausura da família e da escola, o que significa uma tentativa de se livrar dessa rigorosa disciplina criada pela sociedade, que deseja inseri-lo dentro das normas que convêm aos adultos. O boneco em seu itinerário busca prazer, brincadeiras e fantasia, elementos que lhe são negados. Fugindo, tenta se opor à disciplina social.

Ele deseja ser um menino e como tal sofre no mundo dos adultos por não saber se proteger, por se deixar enganar por espertalhões que se aproveitam de sua credulidade infantil, como a esperteza da raposa e do gato. Embora ingênuo, ele sabe que não está satisfeito sob o comando dos adultos, e a prova disso é que não aceita essa condição imposta pelos mais velhos, assim como o tipo de escola que lhe é oferecido. As proezas vividas pelo herói são formas de negar a posição em que se encontra a criança. As fugas, os sofrimentos, os arrependimentos são decorrentes da necessidade de mudança, e essa mudança ocorre quando Pinóquio se transforma em menino, não de maneira estagnada como quer a ordem institucional da família e da escola, mas com a descoberta e resolução do seu conflito, ou seja, romper a idéia de que a criança não é um ser moldado conforme as conveniências dessas instituições, ao contrário é um sujeito ativo que pode mudar a ordem estabelecida, que pode conquistar o direito de ser criança, de ser reconhecido no mundo dos adultos.

Dentre as diversas interpretações que podemos conferir em As aventuras de Pinóquio uma merece destaque: os adultos e a escola não são considerados os únicos “depositários do conhecimento e da sabedoria”. Há outros caminhos que as crianças utilizam para adquirir o saber, sem o cerceamento das instituições que abusam do poder que possuem e só afastam as crianças do seu meio.

O protagonista passa por  provações das mais variadas que levam à sua transformação. Ele não se enquadra na forma estereotipada e inverossímil de muitos textos de ficção em que todo herói é a representação do “mocinho” da trama, enquanto o vilão simboliza o “bandido”, carregando em si todos os vícios. O nosso herói  extrapola o significado do Bem e do Mal, porque ele carrega consigo tanto os traços da virtude quanto dos vícios, como é de se esperar em um ser que está se firmando como categoria humana - como criança.

Não é apenas o boneco que está sendo construído, o herói  constrói a si próprio enquanto pessoa. Os ensinamentos do pai, da Fada, do Grilo e de tantos outros personagens não foram responsáveis pela mudança ocorrida no boneco. Para o menino renascer foi necessária a viagem, a fuga, a solidão, o autoconhecimento, a reflexão sobre o homem, a busca de si mesmo para encontrar a nova condição de vida que tanto buscava.    

Pinóquio se destaca por ser uma obra moderna para sua época e até para a atualidade devido a sua temática - um grito de transformação da criança -,  e devido até a sua circulação, por se destinar especialmente a crianças. Ele desmascara/problematiza a imagem exemplar da criança obediente que se encontra passiva frente aos valores autoritários da sociedade.

Pinóquio prova que a lei pode ser transgredida na busca de uma nova ordem para a criança, para a escola e para os leitores. Há um sentimento de renúncia à pedagogia, quando a obra busca romper com os ideais defendidos por uma pedagogia conservadora, defendida pela escola e por alguns autores que representam esse tipo de gênero. Essa obra nos alerta, ainda, para o fato de que o saber e o prazer podem ser aliados, mesmo para aqueles que temem a ruptura e com isso perdem o poder que o saber lhes dá. O autor consolida o gênero da literatura infantil à medida que, de forma simbólica, vivencia os problemas interiores da criança, e, portanto, dos leitores, quando sua obra é bem recebida por esse novo público.

Com Pinóquio a criança ocupa o seu lugar. O personagem dessa obra discute o seu papel de passividade nas mãos dos adultos que mandam, exigem, enganam. Collodi modifica a história da literatura infantil quando, neste livro, troca o reinado tradicional dos adultos por um personagem que nada mais é que um “pedaço de pau” o qual mais tarde se transformaria num menino de verdade. O autor anuncia não apenas a ascensão da infância, mas a criação de uma literatura destinada especialmente às crianças, e cujos temas estão ligados aos problemas  vivenciados por elas. Com As aventuras de Pinóquio surge também  o reinado da criança.

 

REFERÊNCIAS

 

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil. Gostosuras e bobices. 5. ed. São Paulo: Scipione, 1995.

 

ABREU. Márcia (org.) Leitura, História e História da Leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2002.

 

_____________ (org.) Leituras no Brasil. Campinas: Mercado Aberto, 1995.

 

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. de Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

 

ARROYO. Leonardo. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1990.

 

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

 

CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.

 

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. 2. ed. Brasília: EdUnb, 2001.

 

_______________ . A história cultural: entre práticas e representações. Trad. de Maria M. Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

 

COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira. 2. ed. São Paulo: INL, 1984.

 

___________________. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil. 3. ed. São Paulo: Quíron, 1985.

 

__________________. Literatura infantil: Teoria-Análise-Didática. 5. ed. São Paulo: Ática, 1991.

 

COLLODI, Carlo. As aventuras de Pinóquio.Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002.

_____________. As aventuras de Pinóquio.Tradução Marina Colasanti. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.

 

CUNHA, Maria ANTONIETA. Literatura infantil: teoria e prática. São Paulo: Ática, 1987.  

 

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 25. ed. Trad.. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2002.

 

KKHÉDE, Sônia Salomão (org.). Literatura infanto-juvenil. Um gênero polêmico 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.  

 

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Contexto, 1993.

 

______________ e ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: Histórias & Histórias. São Paulo: Ática, 1984.

 

LYONS, Martyn. Os novos leitores do século XIX:mulheres, crianças, operários. In: CAVALLO, G. e CHARTIER, Roger (orgs.) História da leitura no mundo ocidental.2. São Paulo: Ática, 1999.

 

MAGNANI, M. do Rosário. Leitura, literatura e escola: sobre a formação do gosto. São Paulo: Martins Fontes, 1989 (Col. Texto e Linguagem).

 

MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação: da antiguidade aos nossos dias. 10ª edição. São Paulo: Cortez, 2002.

 

MANGANELLI, Giorgio. Pinóquio: um livro paralelo. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

 

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

 

ORLANDI, Eni Pulcineli. Discurso e leitura. Campinas: Unicamp, 1988.

 

PERROTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.

 

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 5 ed. São Paulo: Global, 1985.

   

_________________ & Lajolo, Marisa. Literatura infantil brasileira:História  & Histórias. 2. ed. São Paulo: Ática, 1985. 

 

_______________________. A formação da leitura no Brasil. 3. ed. São Paulo: Ática, 1999.