INTRODUÇÃO

Neste trabalho, faz-se um ensaio inicial do problema do uso dos pronomes pessoais como base para a análise do discurso das entrevistas esportivas, objeto de pesquisa de dissertação de mestrado em Estudos Lingüísticos na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. O presente estudo mostra, dentro da interação repórter-jogador e tendo princípios da Análise do Discurso e da Gramática Funcional, um olhar interpretativo sobre números quantitativos da ocorrência de pronomes pessoais dos casos reto nas entrevistas. Foram consideradas ocorrências em qualquer posição frasal.

Para tanto, foi elaborado um corpus de 29 entrevistas de programas esportivos das emissoras TV Anhanguera – Globo Esporte Edição Local – e TV Brasil Central – TBC Esportes, ambas de Goiânia (GO). A gravação foi realizada em julho, utilizando fita de vídeo VHS, e inclui apenas depoimentos de jogadores a repórteres das emissoras acima citadas. As reportagens de rede nacional porventura veiculadas nesses programas foram descartadas como corpus por ser o trabalho delimitado ao Estado de Goiás.

Por meio dos números coletados, procura-se entender de que forma o uso dos pronomes pessoais constrói o discurso e a identidade dos jogadores de futebol. Por fim, são feitas também algumas observações sobre a colocação dos pronomes pelos repórteres durante as entrevistas. Serviu como orientação a classificação das ocorrências de pronomes pessoais elaborada por Ilari et al. (1996, p. 83), da qual também foram utilizados os dados obtidos para uma primeira comparação.

 

1. OCORRÊNCIAS DOS PRONOMES EM ENTREVISTAS: LEITURA QUANTITATIVA

O repórter da TV se aproxima do jogador com o cinegrafista ao lado. “Pode falar com a gente?”, pergunta. “Vamo lá”, é a resposta. “E aí, pronto para o jogo de domingo?”, começa o repórter. “Com certeza, estou pronto, a gente está à disposição do professor e, se for opção dele, queremos entrar pra dar tudo de si nessa partida.”

O diálogo acima é fictício, mas bem que poderia ser uma coletânea, retalhos da fala de jogadores de futebol em entrevistas esportivas. Não seria de modo algum improvável encontrar essa miscelânea de pronomes pessoais em um mesmo enunciado e não é por acaso que o falar do jogador tornou-se matéria-prima para anedotas e sátiras. O fato é que esse discurso revela muito mais do que uma mistura de pronomes eu, nós, a gente, você: ao enunciar, o atleta coloca a própria identidade como sujeito em xeque. Pelo que expõe nas entrevistas, o jogador mostra o quanto é capaz de abrir mão de suas particularidades, de seus interesses, enfim, do próprio eu em prol do sentido de grupo – essa, uma das condições requeridas para se adequar ao que determinam as convenções do discurso dos esportes coletivos em geral e, notadamente e neste caso, do futebol.

Um olhar quantitativo sobre as ocorrências dos pronomes pessoais em entrevistas esportivas pode ser um meio valioso de entender melhor como se dá o assujeitamento entre os profissionais do futebol. Obviamente, entrevistas não têm a naturalidade de inquéritos de conversação, como os explorados por Ilari et al. (1996). A situação de postar-se em frente a uma câmera e/ou um microfone já torna irrecuperável o diálogo tal qual ele seria em off[1] – basta comparar, nos bastidores, antes do início da gravação, o tratamento dispensado por um entrevistado a um repórter com quem ele já tem certa liberdade ao que ocorre a partir do momento em que é colocado diante do microfone. Isso, claro, não é exclusividade do meio futebolístico. Não obstante essas dificuldades, a utilização dos dados de Ilari et al. como base comparativa, por outro lado, estabelece um contraponto com o uso do pronome em situações de diálogo convencional.

Há, na classificação utilizada como parâmetro, três tipos de inquérito do Projeto NURC: o diálogo entre informante e documentador (DID), a elocução formal (EF) e o diálogo entre dois informantes (D2). Decidimos realizar o estudo comparativo com o primeiro tipo, DID, por ser, entre os três, o que se encaixaria mais proximamente – embora não exatamente – ao perfil da entrevista esportiva.

Em seu trabalho, Ilari et al. focalizam-se na ocorrência de pronomes pessoais na posição de sujeito em corpus de entrevistas em cinco diferentes cidades (São Paulo/SP, Rio de Janeiro/RJ, Salvador/SSA, Porto Alegre/POA e Recife/RE). No presente trabalho, a opção foi por anotar as ocorrências sem se importar com a posição ocupada pelo pronome, o que entendemos não causar prejuízo à comparação. Outra observação a ser feita é que cada inquérito do corpus de Ilari et al. se refere a uma entrevista com determinado informante. Em nossa amostra, reunimos todas as 29 entrevistas – gravadas de diversos informantes em diferentes condições de produção (preparação para um jogo, comentário após a partida, expectativa de ganhar posição de titular etc.) – para a quantificação.

 

Tabela 1 – Ocorrências de pronomes pessoais em inquéritos do NURC e na fala de jogadores em entrevistas esportivas

   CORPUS

 

PRONOME

 

DID-SP- 234

 

DID-RJ-328

 

DID-SSA-231

 

DID-POA-45

 

DID-RE-131

Entrevistas

de jogadores

EU

230

233

93

132

20

108

NÓS

7

44

33

23

16

37

A GENTE

13

67

23

79

-

63

TU

-

-

-

2

-

-

O SENHOR

50

-

-

8

8

-

VOCÊ*

31

35

26

2

-

11

3ª Pes. Sing.

13

76

70

34

26

7

3ª Pes. Plural

29

94

31

28

7

6

TOTAL

373

549

276

308

77

232

* Classificado por Ilari et al. como segunda pessoal do singular

 

Em todos os inquéritos, com exceção de DID-RE-131, há a predominância da forma eu, bastante superior. Na fala de jogadores, não houve ocorrência das formas tu e o senhor e a forma você, nas 11 vezes em que apareceu, sempre serviu de recurso de indeterminação do sujeito – algo similar às formas on em francês e it em inglês –, como em “(...) toda vez que você é agredido fisicamente por outra pessoa, independente de ser na sua profissão ou em qualquer lugar, você tem que denunciar” (entrevista nº 11, 12/07/2003).

No roteiro de análise de seu trabalho, a metodologia de Ilari et al. classifica você sempre como segunda pessoa do singular, mesmo ao deixar clara a presença no corpus da forma em situações como o exemplo acima, ao constatar ser notável “o emprego de você, exatamente um pronome referente ao alocutário, como recurso para uma forte indeterminação do sujeito” (ILARI et al., 1996, p.101). De qualquer forma, a classificação feita pelos autores desafia a gramática tradicional, ainda hoje presente nas salas de aula, que considera você um pronome de tratamento, justificando que

 

é compreensível a atração exercida por esse esquema, pois ele recupera uma regularidade da sentença latina que já não sobrevive no português brasileiro: a perfeita correspondência entre pessoas do pronome e pessoas do verbo. Na maioria das variedades do português brasileiro, essa correspondência foi quebrada pela adoção, em lugar de tu, do pronome você, que, embora faça referência à pessoa a quem se fala, e seja, portanto, do ponto de vista nocional, um pronome de segunda pessoa, leva o verbo para a terceira, e co-ocorre com possessivos e pronomes átonos de terceira pessoa. Os gramáticos registraram já na década de 70 essa alteração de uso: Bechara notou então que se emprega “vocês como o plural de tu” por ter caído o pronome vós em desuso; indo mais longe, Cunha observou por sua vez que tu foi substituído por você em quase todo território nacional. (p. 90-91)

 

O dado mais significativo do corpus formado pelas entrevistas de jogadores em relação ao corpus do NURC/SP utilizados por Ilari et al. está na comparação entre as ocorrências da primeira pessoa do singular (eu) e da primeira pessoa do plural (nós, a gente). O equilíbrio entre ambas só é percebido nas entrevistas esportivas:

 

Tabela 2 – Número e porcentual de ocorrências de pronomes da 1ª pessoa (singular e plural)

   CORPUS

 

PRONOME

 

DID-SP- 234

 

DID-RJ-328

 

DID-SSA-231

 

DID-POA-45

 

DID-RE-131

Entrevistas

de jogadores

EU

230 (61,66%)

233

(42,44%)

93

(33,70%)

132

(42,86%)

20

(25,98%)

108

(46,55%)

NÓS/

A GENTE

20

(5,36%)

111

(20,22%)

56

(20,29%)

102

(33,12%)

16

(20,78%)

100

(43,10%)

 

Mesmo no inquérito comparativo em que há uma aproximação entre as pessoas do singular e do plural (DID-RE-131), a diferença supera cinco pontos percentuais. Acresce-se a isso o fato de esse ser o inquérito com menor número de ocorrências, o que determina que ele tenha uma margem de erro maior. O único corpus em que a diferença fica abaixo de cinco pontos percentuais (3,45 pontos) é exatamente o das entrevistas com jogadores de futebol.

 

Tabela 3 - Ocorrências do uso de pronomes pessoais nas entrevistas* 

PRONOME

OCORRÊNCIAS

1ª pessoa do singular  (eu)

108

2ª pessoa do singular (tu, você, o senhor, a senhora)

Nenhuma

3ª pessoa do singular (ele, ela)

7

1ª pessoa do plural (nós, a gente)

100

2ª pessoa do plural (vós, vocês)

Nenhuma

3ª pessoa do plural (eles, elas)

6

Indeterminado (você)

11

Total

232

*Estão inclusos os casos em que o pronome não está explícito, mas é confirmado  pela desinência número-pessoal do verbo.

 

 

2. A VOZ DOS PRONOMES NO DISCURSO DO JOGADOR

Dando agora vez a um olhar qualitativo dos dados coletados nas entrevistas esportivas, percebe-se que o discurso do jogador de futebol traz a assumência recorrente do coletivo como recurso para minimizar a sua própria importância como sujeito e dividir responsabilidades dentro de um determinado contexto. Evidentemente, por atuar em um esporte coletivo, faz parte até mesmo do bom senso que o atleta divida a responsabilidade, as glórias e os fracassos do que aconteceu, acontece ou acontecerá em campo com os companheiros de equipe. Porém, isso é mais do que uma questão de optar em ser ou não modesto: é uma lei do comportamento estabelecida pela equipe e que, embora não-escrita, deve ser adotada pelo jogador em seu discurso.

Para melhor compreensão das razões que levam o atleta a dever fazer isso, e simplesmente não poder fazer de outra maneira, é preciso retomar o conceito de formação discursiva elaborado por Foucault:

um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa. (1985, p. 136)

A partir desse enunciado, fica claro que, dentro da delimitação imposta, define-se o que pode ou não ser dito no discurso de um determinado indivíduo. Em outras palavras, há um lugar[2] a partir do qual pode-se ou deve-se dizer X e não se pode ou não se deve dizer Y. No que diz respeito a um jogador, sua formação discursiva lhe impõe o uso do falar coletivamente em numerosas situações: na preparação para um jogo, ao ser elogiado pela imprensa após marcar o gol da vitória, na tentativa de explicar uma derrota, ao comentar o comportamento tático da equipe diante de um futuro adversário etc.

Em suma, existem regras a ser obedecidas na formação discursiva jogador de futebol. A transgressão de tais normas resultaria na produção de um efeito de sentido[3] não desejável: se, ao final de um jogo, o artilheiro da partida, ao receber os cumprimentos do radialista pela vitória, respondesse “É, realmente eu estou de parabéns”, violando a natureza de tal discurso – que exigiria como resposta algo como “Não só eu, mas toda a equipe está de parabéns” –, o atleta acabaria por provocar risos nos ouvintes. Nenhum dos ouvintes levaria a sério o que ele teria dito, porque estariam certos de se tratar de uma ironia, uma brincadeira para descontrair o ambiente. A imprensa provavelmente trataria o caso como uma declaração em clima de descontração e não polemizaria a questão. Tampouco os companheiros de time do jogador ficariam chateados com tal declaração.

Portanto, longe do contexto de uma criação de um outro efeito de sentido, em inúmeros casos o uso da primeira pessoa do plural pela primeira pessoa do singular nos enunciados dos jogadores de futebol é uma situação não só natural, como necessária à sua formação discursiva. O lugar de enunciação atleta de uma equipe de futebol impede que isso aconteça de modo diferente.

No entanto, existe uma série de outras circunstâncias em que esse lugar é ligeiramente deslocado, o suficiente para que o plural deixe de ser condição sine qua non para a produção do enunciado dentro dessa formação discursiva. Isso acontece, por exemplo, quando o jogador passa por uma contusão, tem um problema para renovar o contrato ou é anunciado como substituto do titular para a próxima partida. Poderíamos dizer, então, que nesses casos ele sai do lugar de enunciação atleta de uma equipe de futebol para o lugar de enunciação atleta de futebol[4] a partir do qual ele passa a ter autonomia para se colocar como sujeito-solo dos enunciados.

Não é isso que ocorre freqüentemente. Mesmo ao falar de um assunto que diz respeito somente a ele, como nas situações do parágrafo anterior, o jogador de futebol busca amenizar sua autoria do enunciado fazendo uso do plural. No exemplo abaixo, o lateral-esquerdo Marquinhos, contratado pelo Palmeiras após seis anos de atuação no Goiás, responde a um questionamento do repórter Rui Castro, da Televisão Brasil Central, sobre se desejaria voltar ao ex-clube:

 

Ah, quem sabe um dia, né? Eu acho que... a gente ama esse clube aí do Goiás, né, deixou muitas pessoas que a gente gosta, eu acho que com certeza num futuro aí a gente pode voltar.  (Entrevista nº 7, 12/07/2003)

 

No depoimento, mesmo levado claramente do lugar atleta de uma equipe de futebol para o lugar atleta de futebol, o jogador retém o uso do pronome a gente para se exprimir e, quando pontua o enunciado com o uso da primeira pessoa do singular, faz a construção acompanhando-a por verbo modalizador (acho), de baixa saliência enunciativa. Por meio do conflito entre o sujeito que busca emergir e a voz coletiva que o inibe, chama atenção ainda o embate de caráter epistêmico[5], explicitado no trecho “eu acho que com certeza num futuro aí a gente pode voltar”.

Recursos discursivos com o intuito de amenizar a responsabilidade pelo dito são freqüentemente observados na fala dos jogadores. No corpus utilizado para este trabalho, das 58 ocorrências em que o uso do pronome da primeira pessoa do singular servia para algo além de uma situação de relato, em 37 delas (63,79%) o jogador usou um verbo modalizador com o intuito de atenuação do discurso. Dessas, a expressão eu acho/acho esteve presente 21 vezes nos enunciados. A modalização com objetivo de estabelecer o maior comprometimento possível com o dito foi registrada em apenas três oportunidades, todas com a utilização da expressão eu tenho certeza.

 

Tabela 4 – modalização do uso do pronome pessoal de primeira pessoa no singular 

SITUAÇÃO

OCORRÊNCIAS

Ocorrências de eu

108

Uso de eu em situações de simples relato

50

Uso de formas modalizadoras atenuantes (eu acho, eu espero etc.)

37

Uso de eu acho/acho como forma modalizadora atenuante

21

Uso de formas modalizadoras de maior comprometimento

3

*Inclusos os casos em que o pronome não está explícito, mas é confirmado  pela desinência número-pessoal do verbo.

 

A explicação para a freqüência do recurso de atenuação discursiva em contraposição com o baixo número de expressões de maior comprometimento dá indícios da constitutividade do sujeito jogador de futebol. O profissional da bola, geralmente com baixo nível de escolaridade, aprende desde as categorias amadoras a obedecer às ordens do técnico e submeter-se aos interesses do grupo comandado por ele. “Ninguém ganha jogo sozinho”, “em campo, são onze contra onze”, “é preciso ter união e espírito de grupo” são algumas das frases características do ambiente das concentrações, bastante usadas pelos treinadores em suas preleções. Esse discurso pode ser observado no depoimento a seguir, do lateral-direito Baiano, jogador da Anapolina, questionado pelo repórter Rui Castro, da TV Brasil Central, sobre a possibilidade de ser improvisado pelo treinador como volante, no meio-de-campo:

 

Essa é a função (...) que ele tá pedindo pra gente fazer e, na improvisação... já tive oportunidade nas duas vezes assim antes e hoje eu tô voltando aí de volante, mas minha posição mesmo é lateral-direito. A gente vai fazer pra ajudar o grupo, sem dúvida nenhuma com muita vontade, determinação, fazer o simples...(Entrevista nº 4, 12/07/2003)

 

Nesse trecho, o atleta usa a gente duas vezes quando, obviamente, é ele o único afetado pela decisão do treinador de improvisar alguém no meio-de-campo. Mesmo ressaltando a preferência pela situação original (“minha posição mesmo é lateral-direito”), o jogador descarta qualquer polemização ao ressaltar “fazer o simples” com “muita vontade, determinação” para “ajudar o grupo”.

Portanto, faz parte da formação ideológica – e, conseqüentemente, da formação discursiva – do atleta aceitar o que o técnico decidir e trabalhar para a equipe, sem espaço para opiniões ou anseios individuais. Em suma, o treinador tem as certezas do que deve ser feito e a equipe (o nós, o a gente) detém, a partir das instruções dele, o poder deôntico[6] e o saber epistêmico. Isso fica mais claro nos depoimentos a seguir, respectivamente do zagueiro Valkmar, da Anapolina, e do volante Marabá, do Goiás:

 

Sabemos que é, que é, que é um ataque difícil, é... difícil de marcar, um ataque veloz, que está fazendo muito gol... muitos gols, mas sabemos que nós pod/ que nós podemos render muito bem, com uma marcação muito forte, com uma determinação muito grande, pra conseguir neutralizar esses jogadores. (Entrevista nº 5, 12/07/2003)

 

É, mas a gente vai redobrar as forças que temos né, para que nós possamos é, vencer o jogo porque nós precisamos, precisamos somar ponto e: tá na hora né? A gente sabe que, é, uma hora vai, vai virar tudo e a gente tem esperança e: o otimismo tá em cada um de nós. (Entrevista nº 12, 12/07/2003)

 

Diante do poder do treinador (o professor que tudo decide) e da assumência do espírito de equipe (o grupo que apreende o que quer o técnico e sabe o que deve ser feito), a margem que sobra ao jogador para afirmar o seu próprio discurso acaba por se tornar mínima. Entendemos, pois, que essa marca ideológica fica de tal maneira contundente que toma conta dos enunciados do atleta mesmo fora da situação de jogo, em enunciações com temas evidentemente pessoais, motivo pelo qual o uso de nós e de a gente tende a ser quase tão disseminado quanto o de eu, muito mais do que ocorre em outras situações de interação, como as dos inquéritos do Projeto NURC/SP utilizadas por Ilari et al. (1996) e aqui colocadas como contraponto às entrevistas esportivas.

 
3. OS PRONOMES PESSOAIS NA BOCA DO REPÓRTER
Antes de fazermos uma breve análise do discurso dos repórteres nas entrevistas com foco nos pronomes pessoais, primeiramente é preciso deixar claro que a quantidade de corpus é bem inferior que o de jogadores. As 29 entrevistas envolvem a participação de cinco repórteres – dois da TV Anhanguera e três da TV Brasil Central – e em apenas 15 delas há perguntas diretas do entrevistador ao atleta. Isso ocorre porque, em grande parte dos casos, durante o processo de edição, a participação do repórter é restrita ao off. Devido à baixa quantidade de ocorrências, houve a preferência por interpretar algumas particularidades dos enunciados postos.
É razoável pensar que seria óbvia a produção de enunciados somente na segunda pessoa pelo repórter durante uma entrevista. Isso deveria ser mesmo uma característica natural da formação discursiva desse tipo de gênero, já que é o informante o foco da ação. E é exatamente isso o que convencionalmente ocorre nas entrevistas-padrão, pelo uso dos pronomes tu, você, o senhor ou a senhora, dependendo do grau de formalidade da situação ou do entrevistado.
No caso particular das entrevistas com jogadores de futebol, inexiste o uso por parte do repórter da forma o senhor, a não ser que a intenção seja provocar determinado efeito de sentido, como uma ironia ou brincadeira com o entrevistado. Entre os repórteres goianos, também não há o uso de tu, já que essa forma não é freqüente na variante corrente do português da região.

 

Além do fator geográfico – colocando nesse ponto especificamente a situação de uso em Goiás –, a descontração característica do ambiente futebolístico e a faixa etária do jogador, geralmente mais novo que o repórter, favorecem a opção pelo pronome você. Mais do que isso, pode-se afirmar que essa “informalidade pronominal” ao tratar com o jogador é outro requisito da formação discursiva dos profissionais da imprensa. É bom salientar ainda que isso cai por terra, enquanto obrigatoriedade de uso, quando o entrevistado é um dirigente de clube ou o árbitro da partida.

Não obstante essa observação, a entrevista no meio esportivo, notadamente no futebol, conta com mais um diferencial em relação às entrevistas-padrão: a utilização da terceira pessoa, por meio da citação do nome do atleta. Isso ocorreu em três das entrevistas coletadas, enunciadas por três repórteres distintos, o que demonstra ser uma estratégia de uso corrente entre esses profissionais.

Uma das explicações para isso está em transformar, pelo discurso, o tu de Benveniste em não-pessoa. Levando o entrevistado para fora da cena enunciativa com essa estratégia, o repórter busca causar no jogador o efeito de reconhecimento: o atleta ouve alguém falando dele e não com ele. Assim, sente-se mais à vontade para continuar o diálogo e até mesmo para falar em tom confessional – por vezes continuando a interação ainda na terceira pessoa –, de modo tal como dificilmente faria se tivesse sido questionado diretamente. É como se, por mágica, o jogador desaparecesse do aqui e agora e se instalasse num outro tempo e espaço. Sua imagem subjetiva se transforma em imagem objetiva.

Interessante observar que esse tipo de recurso hoje freqüente entre os repórteres esportivos foi apropriado dos próprios jogadores. A estratégia de trocar o eu pela não-pessoa ficou famosa com o atacante Dario, o Dadá Maravilha, o primeiro jogador a promover marketing pessoal no futebol. “Existem três coisas que param no ar: helicóptero, beija-flor e Dadá”, frase usada para explicar uma aludida perfeição ao cabecear a bola, é uma das que ficaram famosas na boca do artilheiro, especialista em prometer e batizar gols como forma de homenagem a algo ou alguém. Os atacantes Túlio, campeão brasileiro pelo Botafogo, e Romário são outros atletas renomados que ousam falar de si mesmo na terceira pessoa[7].

 

CONCLUSÃO

Sem a pretensão de considerar o estudo aqui apresentado como conclusivo na afirmação de que o uso dos pronomes na interação repórter-jogador de futebol represente um caso particular, acreditamos que a utilização das pessoas pronominais nas entrevistas esportivas se dá de maneira bem diferente do que acontece em outros tipos de interação, mesmo em outros modelos de entrevistas jornalísticas. Isso ocorre por causa do lugar ocupado pelo sujeito jogador de futebol e pela formação ideológico-discursiva de ambos, atleta e repórter, o que estabelece um status bem específico à situação.

A proximidade numérica entre o uso de eu e nós/a gente no discurso do jogador, nas condições de produção em que foram realizadas, demonstra que o atleta freqüentemente perde a noção de onde termina o individual e começa o coletivo e ignora ou atenua o momento de se afirmar como sujeito da ação. Isso é, ao nosso entender, reflexo da posição ocupada por ele diante do sistema que o cerca – o técnico, a torcida, os dirigentes, a equipe. Uma investigação que pode ser interessante, a partir da que foi aqui colocada, é saber até que ponto a fama, o dinheiro e o sucesso podem influenciar no posicionamento do lugar atleta de futebol ou mesmo do lugar atleta de uma equipe de futebol.

A despeito do modelo de Ilari et al. ter sido suficiente para atender às interpretações iniciais – o objeto do presente trabalho – a respeito do fenômeno, a formação de corpus com entrevistas de outras áreas (política, economia, artes, música etc.) em condições de produção mais semelhantes traria com certeza maior elucidação à questão.

Por fim, entendemos que as reflexões sobre o estudo dos pronomes servem de contribuição a uma maior aproximação da escola com a língua em uso, com o que os alunos ouvem e lêem, seja na televisão, no rádio, nos jornais. Isso envolve a superação da gramática tradicional e o reposicionamento, na prática escolar, das condições de uso pronominal, por exemplo, do pronome você, que ainda é tratado, em algumas salas de aula, como a corruptela de Vossa Mercê, quando – após ser referendado como substituto de tu na segunda pessoal do singular em quase todo o País – já é utilizado como recurso de indeterminação do sujeito, a forma brasileira do pronome francês on.

Nesse sentido, o mundo do futebol, como expressão cultural e lingüística extremamente presente e influente no Brasil, pode contribuir bastante à aprendizagem tanto de alunos do ensino médio como de ensino superior. Aliar esse e outros universos com a prática didática é um recurso para incrementar a formação de futuros professores e uma oportunidade para aproximar o discurso dos livros do discurso das ruas.

 

REFERÊNCIAS

 

BENVENISTE, E. A natureza dos pronomes. In: Problemas de Lingüística Geral I. 2ª ed. São Paulo : Pontes, 1988, p. 277-282.

BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1996

FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação – as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo : Ática, 1999.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1995.

HATTNHER, M. M. D. et al. Uma investigação funcionalista da modalidade epistêmica. In: NEVES, M. H. M. (org.). Descrição do Português: definindo rumos de pesquisa. São Paulo : Cultura Acadêmica, 2001, p. 103-144.

ILARI, R. et al. Os pronomes pessoais do português falado:roteiro para a análise. In: CASTILHO, A. T.; BASÍLIO, M. (orgs.). Gramática do português falado. São Paulo : UNICAMP, 1996, p. 79-114.


[1] Termo jornalístico usado para designar duas situações específicas: 1) no jornalismo em geral, informação passada em off é a que não foi gravada, a pedido da fonte ou do entrevistado; 2) na TV, especificamente, é a palavra usada, durante a reportagem, para o período em que a fala do repórter é ouvida durante uma seqüência de imagens, sem que ele apareça. No caso presente, nos referimos a essa última situação.

[2] Foucault (1995) conceitua lugar de fala como a “posição” e a “situação relacional” a partir das quais fica definido o que o sujeito pode e não pode enunciar.

[3] Do conceito de efeito de sentido, retomado por Michel Pêcheux da psicanálise de Lacan, decorre que há diferentes sentidos possíveis a partir de um mesmo enunciado, de acordo com a formação discursiva na qual é reproduzido.

[4] O lugar atleta de uma equipe de futebol detém em si condições de produção que relacionam diretamente o jogador ao time, ao técnico e aos companheiros. No lugar atleta de futebol, há uma abertura para desvinculação do jogador desse contexto – ele pode enunciar como profissional sem se atrelar a uma determinada instituição.

[5] Segundo expresso por Hattnher et al. (2001, p. 133), “a modalidade epistêmica (ME) aplica-se a asserções e indica o grau em que o falante está comprometido com a verdade da proposição”.

[6] Hattnher et al. (2001, p. 140) entende que na modalidade deôntica estão contidos os “valores de permissão, obrigação e volição que envolvem algum tipo de controle extrínseco sobre os eventos”.

[7] Não deixa de ser significativo o fato de que a maioria dos jogadores que utilizam essa artimanha lingüística jogue como atacante em suas equipes.