Em português, o tempo futuro como categoria lingüística pode ser expresso, tanto na fala como na escrita, através de formas variantes tais como: a) futuro do presente do indicativo (cantarei); b) presente do indicativo (canto); c) perífrase com ir no presente (vou cantar); d) perífrase com ir no futuro (irei cantar); o que confirma o princípio da estratificação dentro da hipótese da gramaticalização proposta por Hopper & Trougott (1993). As gramáticas normativas, entretanto, com poucas exceções, apresentam apenas a primeira variante, embora vários trabalhos de análise lingüística já demonstrem que esse uso é variável em várias regiões do Brasil e até mesmo em Portugal.
A perífrase é a forma verbal inovadora, que convive, sobretudo, com a forma simples (conservadora). Trata-se, pois, de um fenômeno variável no português em que a variante perifrástica, em lugar da forma sintética para codificar a função que situa a ação ou o processo à direita do ponto da fala, é muito pouco discriminada. A entrada do verbo ir como auxiliar para expressar o futuro vem encontrando resposta positiva entre os falantes, o que possibilita o tratamento da questão como um processo de gramaticalização. Já a forma do futuro do presente encontra-se em crescente desuso na língua falada, o que pode evidenciar um processo de mudança lingüística.
Já no próprio latim, o futuro adveio de formas modais analíticas (cantare habeo > cantar hei > cantarei), por sua vez também sucessoras de formas simples, o que revela um certo processo de mudança recorrente e em forma de espiral. Para Câmara Jr., a nova forma de futuro criada ainda no latim desempenha três funções na língua: a) marca o modo; b) marca tempo com matiz modal; e c) marca tempo. O autor fala em gramaticalização do futuro modal em futuro temporal.
A categoria verbal no português manteve-se flexional, como era no latim. Assim, a flexão verbal possui duas categorias: a de número-pessoa (que indica o sujeito do verbo) e a de tempo, modo e aspecto. Ambas essas categorias são marcadas morfologicamente através de formas presas cumulativas.
Quanto ao tempo futuro, ele não só expressa a expectativa de alguma ação (processo ou evento) a ser verificada mais tarde, após o ato de fala; ele tem um valor temporal que não permite expressar uma modalidade factual, pois só aceita asserções segundo a avaliação feita pelo falante da (im)possibilidade da ocorrência de um estado de coisas. Assim, há um valor modal aliado ao fator temporal no futuro que compromete a determinação do valor de verdade da proposição enunciada. Segundo Câmara Jr. (1957:223), a categoria de futuro não ocorre “pela necessidade da expressão temporal; concretizam-no certas necessidades modais, de sorte que o futuro começa como modo muito mais do que como tempo”.
Na trajetória da gramaticalização, a nova forma (a perifrástica) passa a ocupar um novo espaço no sistema lingüístico, tal como ocorreu com a forma be going to da língua inglesa e as formas com o verbo aller + infinitivo (o futur proche) da língua francesa.
A Teoria da Gramaticalização se insere no quadro teórico do Funcionalismo Lingüístico, segundo o qual a gramática não é autônoma, depende do discurso. É no processo comunicativo que a língua é adquirida e que a gramática emerge e muda. Uma forma lingüística ajusta-se, de forma criativa e estimulada pelo contexto, a novas funções e a novos significados.
A gramática se organiza em função de dois tipos de pressões: a) cognitivas, decorrentes da forma como o homem interpreta e organiza mentalmente as informações (aspecto regular); e b) de uso, decorrentes do aspecto criativo e inédito do discurso (geradoras de irregularidades). Motivadas por essas pressões, a gramática e a língua sofrem variações e constantes processos de mudança, dentre os quais se destaca a gramaticalização, que leva formas lexicais ou sintáticas a assumir funções na organização interna do discurso transformando-as em itens gramaticais.
O caminho da gramaticalização é regulado por cinco princípios, segundo Hopper (1991), que são:
a) Estratificação – a(s) forma(s) nova(s) coexiste(m) com a(s) forma(s) antiga(s) com função similar, ou seja, no domínio funcional novas camadas estão emergindo continuamente. A forma perifrástica de futuro verbal convive com a forma simples, tanto em português como no francês, por exemplo.
b) Divergência – a forma que se gramaticaliza não destrói a plenitude da forma que lhe originou, ou seja, esta permanece lexical. O verbo ir se gramaticaliza em marca de futuro (vou fazer = farei), mas permanece também o seu uso pleno (ele vai à escola de ônibus).
c) Especialização – no domínio funcional, coexistem formas com diferenças semânticas tênues. Com a gramaticalização, algumas formas são selecionadas e adquirem significados mais gerais. Assim, já que a possibilidade de escolha diminui, uma forma pode se especializar e tornar-se obrigatória. A forma perifrástica de futuro é mais especializada que a sintética, já que expressa maior modalidade.
d) Persistência – uma forma gramaticalizada contém vestígios de seu significado lexical original que podem restringir seu comportamento e sua distribuição gramatical. No caso do verbo ir como forma gramatical de futuro, ele mantém seu traço lexical aspectual de deslocamento.
e) Decategorização – uma forma gramaticalizada perde características de categorias plenas e adquire características de categorias secundárias. Assim, o seu estatuto categorial diminui e surgem formas híbridas. O verbo ir, por exemplo, assumindo papel de auxiliar de futuro, ainda não atingiu estatuto pleno de auxiliar, pois a forma vou ir é estigmatizada pelos falantes.
Dois mecanismos possibilitam o processo de gramaticalização: a reanálise e a analogia. Embora não sejam obrigatórios para que ocorra a mudança por gramaticalização, eles a facilitam e às vezes agem conjuntamente.
A reanálise modifica representações subjacentes (semânticas, sintáticas e/ou morfológicas) e ocasiona mudança de regra. Esse processo, operando no eixo sintagmático, redefine as fronteiras da forma, gerando novas estruturas gramaticais (Hopper & Traugott, 1993).
Já a analogia modifica manifestações de superfície, não afetando mudança de regra, mas promove a disseminação da forma nova na comunidade e no sistema lingüístico. Operando no eixo paradigmático, é a primeira evidência de que uma mudança está ocorrendo, pois generaliza padrões de uso.
O desenvolvimento de categorias gramaticais envolve transferência metafórica. A metáfora permite ao homem compreender as idéias em função do mundo concreto. Ela possibilita a transferência de um domínio cognitivo a outro. No caso da gramaticalização do verbo ir como auxiliar de futuro, a fonte de domínio é movimento, localização (domínio do mundo humano). Já o domínio alvo, as funções relativas a tempo e a valor de verdade do discurso, pertence ao mundo das funções discursivas abstratas. Assim, trata-se de uma mudança do sentido lexical/concreto para o gramatical/abstrato (Heine, 1992).
Essa mudança conceitual, que está na base do processo de gramaticalização, é um continuum. Os novos significados gramaticais são derivados de sentidos existentes, seja por meio da extensão de um contexto, seja por meio da convencionalização de inferências. Os processos de metáfora têm, assim como o processo de gramaticalização, um sentido unidirecional que vai do mais concreto ao mais abstrato. Não só a linguagem mas também a cognição humana operam através da metáfora.
Os estudos de gramaticalização das formas que expressam futuro têm mostrado que o futuro em todas as línguas desenvolve-se a partir de fontes lexicais, que os morfemas de futuro passam por estágios similares de desenvolvimento e que a mudança semântica é acompanhada da redução da forma, ou seja, o morfema perde a sua independência, fundindo-se com o material adjacente (Bybee et alii, 1991).
Para este trabalho, foram considerados dados esparsos de textos escritos do século XIV ao XIX de fontes diversas. Todo o material foi cedido pela Profa. Maria Luiza Braga. Os dados foram separados inicialmente em dois grandes tipos: a) dados com o verbo ir em sua forma plena; e b) dados com o verbo ir compondo a perífrase para indicar o futuro. São exemplos[1] dos tipos a) e b), respectivamente:
(1) “E ella sanhuda e escarnecida por ello iasse huum dia aa ora de terça ao rio que chamam Tejo a comprir o engano do diabo e afogar-se em elle.” (séc. XIV)
(2) “O ultimo volume de Innocencio annuncia que ele vae publicar um trabalho sobre a historia ecclesiastica do Brasil...” (séc. XIX)
Entretanto ressalte-se que a forma perifrástica só foi encontrada, no corpus analisado, a partir do século XVI.
Examinando as ocorrências do verbo ir em sua forma plena na tentativa de se localizar o embrião e o caminho do processo de generalização do(s) seu(s) significado(s), o que culminaria no seu uso como auxiliar de futuro, algumas estruturas se destacaram:
a) a estrutura básica mais antiga é sujeito [+ animado] + verbo + SP (sintagma preposicionado, contíguo ou não, como complemento circunstancial do verbo indicando categoria conginitva de pessoa ou lugar):
(3) “Enton deceu e foi-se a el-rei e pose-o en seu cavalo.” (séc. XIV)
(4) “... por ir ao monte e aa caça andar um mês” (séc. XIV)
b) ocorre também essa mesma estrutura, porém com um SP abstrato, em que se observa já uma mudança semântica no SP:
(5) “Ca assi como o corpo vay pelo home hu quer, assi a alma pelo cuydo e pelo desejo vay hu lhi semelha.” (séc. XIV)
(6) “... que o non quizerom seguir pera ir aa sua gloria.”
c) em algumas estruturas, o verbo ir aparece distanciando-se do seu significado pleno original, conotando, por exemplo, progressão (crescimento), aumento, continuação, ou seja, adquire um sentido aspectual, sobretudo quando acompanhado de gerúndio, conforme os exemplos a seguir:
(7) “... e a Alexãdria porto do Nilo, dõde vão ter nas galees de Veneza pera se vendere...” (séc. XVI)
(8) “... que com o gentio tem aquêle pobre povo padecido e vai experimentando e a diminuição em que se acha...” (séc. XVII)
d) a estrutura verbo ir + infinitivo, embora ainda sem a acepção de futuro, ocorre em oração contígua a uma outra prototípica de finalidade, como no inglês:
(9) “E pero aas vegadas vay aos ortos e aos logares pera colher alguus grãos de semetes onde viva.” (séc. XIV)
(10) “... & agora vão frades capuchos, para os catequizar...” (séc. XVII)
e) talvez por motivos funcionais, como a economia e a rapidez da informação, ocorre a supressão da preposição, que introduz a oração circunstancial de finalidade:
(11) “... o qual por mais que se sofreo lhe foy necessario yr a bordo Æ alijar como quada hum dos outros...” (séc. XVI)
(12) “... na oppinião do Economista Smith vão as cegas Æ avançar as suas despezas...” (séc. XIX)
f) essa estrutura começa a ser reanalisada como contendo de fato uma perífrase verbal semelhante à já então existente e freqüente haver de + infinitivo. Note-se que, com a reestruturação sintática, nada mais se interpõe entre o verbo ir e o infinitivo. Os exemplos que se seguem foram retirados do mesmo documento:
(13) “... e porq.e este contracto hade principiar no primr.o de julho...” (séc. XVIII)
(14) “... esta deligençia a vaó comprar nos citios donde se produs o tal genero...” (séc. XVIII)
Parece que o verbo ir, na sua trajetória de verbo pleno a verbo auxiliar de futuro, atravessa uma escala semântica próxima à comumente atribuída a outros itens lexicais em seu caminho em direção à gramaticalização. Ele vai se associando a categorias cognitivas que se dispõem numa escala:
Pessoa ® espaço ® tempo
Ou seja, o caminho unidirecional seria verbo ir + SP de lugar, verbo ir + SP abstrato, verbo ir aspectual + outro verbo, verbo ir indicando finalidade (com SP oracional), a mesma estrutura anterior com a queda da preposição e, finalmente, o verbo ir como auxiliar de tempo futuro.
É claro que o verbo aqui em análise possui particularidades que o distinguem de outras formas que se gramaticaliza(ra)m.
No caso do verbo ir, ele progride de um sentido ligado a espaço físico para um sentido ligado a espaço temporal. Agregando ainda o sentido de finalidade, daí derivando para o sentido de desejo e de modalidade, adquire o valor aspectual e migra facilmente para o valor gramatical de auxiliar de futuro. Deslocar-se no espaço físico requer tempo, atingir um objetivo ou realizar um desejo também requer tempo. Assim é que o futuro se projeta.
Cumpre notar também que a co-ocorrência que existia em estruturas com vários adjuntos adverbiais desaparece com a desintegração do adjunto de finalidade, que some com a aglutinação do SP numa perífrase verbal. Assim é que os demais adjuntos passam a se situar à margem da locução verbal:
(15) “... e cercada que de longe, mas bem defronte, parece que vão beber ao mar...” (séc. XVII)
Este último exemplo provavelmente ocorria antes como vão ao mar para beber.
Feita, pois, a reanálise do verbo ir seguido de infinitivo, implementa-se a perífrase (forma analítica) variante da forma sintética de futuro na língua portuguesa. De acordo com os dados, a gramaticalização desse verbo como marcador de futuridade tem início já no século XIV, ainda que em estágio embrionário.
O futuro do presente em português pode ser interpretado como futuro temporal puro, reflexo de uma intelectualização da língua, ou como futuro modal, indicando intenção ou finalidade. No caso da forma perifrástica ir + infinitivo, parece que tende mais a marcar a modalidade, não deixando, porém, de marcar também tempo e aspecto. É Câmara Jr. (1985:170) quem diz que o auxiliar ir tem traços de valor modal e aspectual:
“De
um lado, assinala a intenção de fazer alguma coisa (que é uma característica
modal); de outro lado, exprime um aspecto sui generis: o do que ainda vai
acontecer: vou sair, ia sair, fui sair, irei sair
etc. Essa significação aspectual dá-lhe o caráter de um futuro, a partir do
pretérito ou de outro futuro.”
O estudo desta variável permite algumas conclusões, ainda que não definitivas: a) a forma perifrástica ir + infinitivo é posterior ao futuro simples e à perífrase haver de + infinitivo, podendo, pois, ser considerada como forma inovadora; b) o futuro analítico ora analisado parece implantar-se com mais força na língua a partir do século XIX, pois antes disso, mesmo sendo documentado, ocorre esporadicamente e com menos freqüência que as outras formas; c) a forma inovadora vem adquirindo espaço na língua assinalando com mais ênfase a modalidade no tempo futuro, mas encaminhando-se para marcar de fato o tempo, papel até então reservado ao futuro do presente; d) essa nova perífrase codifica modalidade de intenção, desejo ou certeza na expressão de um fato, tendo ainda a responsabilidade pela indicação de tempo futuro; e) a indicação do tempo futuro ainda está se gramaticalizando a partir da idéia de movimento ainda contida no verbo ir, já que movimento no espaço requer também movimento no tempo; f) um indício de que o ponto terminal do processo de gramaticalização ainda está longe é a inaceitação pelos falantes da forma vou ir, bastante discriminada/estigmatizada social e culturalmente.
A forma perifrástica em questão apresenta, portanto, três funções: modalidade, aspecto e tempo, caminhando de uma noção espacial passando pela noção aspectual de prospecção e atingindo a noção de tempo futuro, o que comprova a hipótese da unidirecionalidade.
Este trabalho, todavia, longe está de ser conclusivo. Muitos outros aspectos em relação ao tema em estudo devem ser considerados. Aspectos semântico-discursivos e socioculturais também atuam no condicionamento e na escolha de uma variante dentre outras, no caso as várias formas de expressão do futuro em português já mencionadas. Além disso, contextos lingüísticos mais pormenorizados podem também auxiliar no entendimento do processo de gramaticalização do verbo ir e devem ser observados, já que não foram aqui contemplados por fugirem ao escopo desta pesquisa.
BYBEE,
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TRAUGOTT,
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Amsterdam/Filadélfia: John Benjamins Publishing Company, 1991.
[1] Os exemplos que aparecem neste texto têm ao final apenas a indicação do século para que não se saturasse a leitura com nomes de autores e títulos, embora todos os dados tenham sido coletados com a indicação da fonte. Alguns poucos exemplos, todavia, não contêm a data por não ter sido possível identificá-la na fonte de onde foram retirados.