Este trabalho surgiu como produção inicial de um projeto sobre Comunicação Intercultural e ensino de línguas estrangeiras (LE) que vem promovendo oficinas pedagógicas com professores da rede pública e particular de ensino de municípios da Bahia, tendo como metas prioritárias o desenvolvimento da conscientização intercultural e o redimensionamento do papel social do professor de LE na contemporaneidade. Acreditamos que diante de um mundo pretensamente globalizado é extremamente necessário propor ao professor  um  posicionamento transformador como agente de desconstrução de estereótipos e de promoção da convivibilidade intercultural. Iniciamos tais encontros através de debates em torno de uma revisão conceitual sobre cultura, identidade e representação social a partir de aportes teóricos interdisciplinares oferecidos pela Sociolingüística, Ciências Sociais, Estudos Culturais e Psicologia Social, assim como da adoção de princípios fundamentais da Aprendizagem Cooperativa e da Pedagogia do Multiculturalismo Crítico. Os professores são estimulados a formar grupos de trabalho (presenciais e/ou virtuais) visando, através de uma abordagem estética/ética, a construção de projetos pedagógicos no sentido de promover uma visão crítica sobre crenças, atitudes e valores que emergem no processo de aprendizagem de línguas e de reconhecimento de identidades inseridas na pluralidade cultural. Segundo Morin (2000, p. 57), 

“Os que vêem a diversidade das culturas tendem a minimizar ou a ocultar a unidade humana; os que vêem a unidade humana tendem a considerar como secundária a diversidade das culturas. Ao contrário, é apropriado conceber a unidade que assegure e favoreça a diversidade, a diversidade que se inscreve na unidade”.

Reconhecendo que a multiplicidade de identidades, de patrimônios culturais da humanidade torna-se cada vez mais visível na sociedade contemporânea e que as relações de poder vêm historicamente favorecendo alguns grupos em detrimento de outros, voltamos para a possibilidade da reformulação do fazer cotidiano da escola, buscando a inauguração de um novo território em que a prática cooperativa das atividades escolares promova o desenvolvimento de uma consciência crítica que valorize o acolhimento das diferenças como ponto de partida para a instalação de uma sociedade mais solidária.

A abordagem multiculturalista pretende, assim, recontextualizar o papel político da escola, discutindo a adoção de novos currículos  multirreferenciais que venham a incorporar discursos historicamente silenciados e a desprezar aqueles potencialmente silenciadores. Em outras palavras, a pedagogia multicultural acredita na valorização da voz do sujeito/professor e do sujeito/estudante, assim como no desenvolvimento da sensibilidade de escuta às múltiplas outras vozes, desconstruindo a polarização dos saberes e assumindo, através da prática dialógica, uma perspectiva de construção do conhecimento de forma dialética e multidimensional.

Dois conceitos introdutórios precisam ser definidos para que melhor se estabeleça o campo de ação do multiculturalismo: cultura e identidade. O primeiro comporta, sem dúvida, uma larga abrangência de referências; preferimos, no entanto, assinalar aquela que define a palavra “cultura” na perspectiva antropológica a qual incorpora os distintos modos de vida, valores e significados compartilhados por diferentes grupos em determinados períodos históricos. Enfatiza a sua dimensão simbólica, minimizando o seu caráter essencialista (o que ela é), mas reforçando o caráter dinâmico (o que ela faz), como os grupos constroem e transmitem suas práticas sociais. Para o segundo conceito, o de identidade, reconhecemos a dificuldade de conciliar suas múltiplas interpretações, mas ressaltamos aqui os valores de pertencimento e interação social; nesse sentido, retomamos a colocação de Weeks, citado em Cavalcanti (2001, p.107) que define “identidade” como “aquilo que temos em comum com algumas pessoas e o que nos diferencia de outras. É uma mescla de posicionamento individual com relações sociais...Cada um de nós vive uma variedade de identidades potencialmente contraditórias”. Ressalta-se, assim, a ênfase no dinamismo, na mutabilidade e na continuidade do processo de construção de identidade.

O termo “multiculturalismo”, de acordo com McLaren (2000), é bastante polissêmico pois abrange posturas ideológicas que se configuram em quatro tendências: a) conservadora (é usado apenas como ponto partida, mas a meta é a assimilação, a homogeneização); b) humanista liberal (criação de programas específicos para atender grupos socialmente marginalizados no sentido de promover a igualdade intelectual); c) liberal de esquerda (movimentos de resistência que fortalecem as diferenças culturais desprezando a cultura dominante); d) crítico/revolucionário: (busca o comprometimento com uma política de crítica e  justiça social a partir de uma agenda de transformação).

O modelo de educação multicultural, seguindo a visão crítica/revolucionária, incorpora, segundo Banks (1993, p. 23), quatro campos de ação: (a) integração de conteúdos - estimular a inserção de conteúdos e materiais didáticos que utilizem discursos contextualizados na diversidade cultural; (b) construção do conhecimento - ajudar o aluno a entender, investigar e analisar as formas como as disciplinas escolares têm sido orientadas dentro de pressupostos teóricos, esquemas referenciais, perspectivas e vieses que fazem parte de determinadas tradições culturais que determinam a construção do conhecimento; (c) pedagogia da eqüidade - modificar os padrões de ensino e de observação e avaliação do processo escolar no sentido de facilitar a aprendizagem de estudantes provenientes de grupos subalternizados socialmente; (d) empoderamento da cultura escolar - promover a eqüidade educacional, redimensionando a distribuição do poder na estrutura organizacional da escola incluindo a participação efetiva de todos os membros da comunidade escolar.

Questionando sobre a possibilidade da aplicação de tais princípios na prática pedagógica do ensino de LE, constatamos, através de uma reflexão crítica, que ainda predomina em nossas salas de aulas uma visão assimilacionista em que a cultura do estrangeiro assume o caráter de superioridade, de poder político dentro do paradigma colonizador-colonizado em que os estereótipos se tornam elementos culturais altamente marcados na concepção de mundo do aprendiz, conforme pesquisa desenvolvida por Moita Lopes (1996). Buscamos, assim, redimensionar a orientação do ensino de cultura estabelecendo três pontos básicos: (a) desenvolver a multiplicidade de olhares na percepção das culturas estrangeiras; (b) redescobrir os valores culturais das identidades de origem dos aprendizes; (c) viabilizar um intercâmbio constante entre múltiplas identidades que permeiam os universos pessoais e profissionais de cada indivíduo; (d) afirmar o posicionamento político de minorias marginalizadas. Nesse sentido, nos associamos ao papel que os professores devem desempenhar como intelectuais de mudança que, segundo Giroux (1997, p.251) , “ao combinar a linguagem da crítica com uma linguagem de possibilidade, tais educadores podem desenvolver um projeto político que amplie os contextos sociais e políticos nos quais a atividade pedagógica pode funcionar como parte de uma estratégia contra-hegemônica”.

            Buscando a construção de projetos pedagógicos que tragam os referenciais ideológicos já expostos, encontramos na leitura de Guattari (2002) uma fonte de inspiração que nos forneceu elementos primorosos para iniciar nossos alunos nessa trajetória de busca de um mundo mais humanizante, mais acolhedor, mais solidário. Ao registrar as  três ecologias – a do meio ambiente, a das relações sociais e a da subjetividade humana - Guattari (2002, p.8-9) manifesta sua indignação perante um mundo que se deteriora lentamente.

O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre o planeta, no contexto da aceleração das mutações técnico-científicas e do considerável crescimento demográfico. Em virtude do contínuo desenvolvimento do trabalho maquínico, redobrado pela revolução informática, as forças produtivas vão tornar disponível uma quantidade cada vez maior do tempo de atividade humana potencial. Mas com que finalidade? A do desemprego, da marginalidade opressiva, da solidão, da ociosidade, da angústia, da neurose, ou a da cultura, da criação, da pesquisa, da reinvenção do meio ambiente, do enriquecimento dos modos de vida e de sensibilidade?

            Passamos, assim, a exercitar a possibilidade de contemplarmos as três dimensões ecológicas propostas por Guattari no espaço da sala de aula de LE. Relatamos, a seguir, alguns momentos de trabalho que abrem caminho a uma abordagem de ensino-aprendizagem de LE inserida em conteúdos fortemente marcados como altamente significativos para uma reflexão crítica que leve ao posicionamento político do aprendiz na sociedade contemporânea.

 

1. O NOVO “EU” SOB A PERSPECTIVA ECOSÓFICA E COMO ELE PODE ATUAR EM AULA DE LÍNGUA ESTRANGEIRA.

Pretende-se mostrar como a concepção de subjetividade, entendida por Guattari como um conjunto de múltiplos componentes, pode ser aplicada às diferentes manifestações de personalidade de cada indivíduo, no sentido de contribuir para a construção de uma identidade mais atuante e fortalecida ao se aprender uma segunda língua. A importância da afirmação do “eu” se configura na promoção do crescimento pessoal; conhecendo-se melhor o seu “eu” ajudamos o aprendiz/sujeito a imprimir sua marca, o seu território, a sua presença em sala de aula. O “eu” não se manifesta mais, então, em um aluno amorfo, em um sujeito passivo que perambula na sua invisibilidade,  pois cria-se intimidade, solidariedade e descontração em sala de aula, desmitificando-se o “estrangeiro”como o sujeito-alvo e posicionando o aluno como o foco de interesse da proposta pedagógica.

A língua, como veículo do pensamento do homem, é a manifestação de sua identidade. Ao se expressar em uma língua estrangeira, o aprendiz deve “assinar” a sua fala, a sua subjetividade como ser humano revelando as suas diversas faces: o “eu” poeta, o “eu” criança, o “eu” brasileiro, o “eu” aprendiz etc. Assim irmanados, identidade e linguagem, estabelece-se um ato transformador, buscando-se alcançar a atmosfera social adequada ao desenvolvimento da autonomia de cada indivíduo. Integrar o ensino de uma língua estrangeira à formação do indivíduo deve ser um dos objetivos da aula de LE; promover atividades de aprendizagem que oportunizem o fortalecimento do “eu” é uma forma de valorizar a essência de cada um e de marcar a sua importância social na convivência em grupo.

Enfatizamos o papel da narrativa na aquisição de uma LE como o relato que cada indivíduo elabora em torno da sua vida. A fascinação de contar e ouvir histórias, como também o desejo de recriá-las e reescrevê-las, contribuem não só para o enriquecimento do imaginário, mas também para o aprimoramento do processo da escritura. Construir histórias representa um dos instrumentos fundamentais para se rever valores juntamente com nossos aprendizes, bem como para expressar as próprias experiências de vida ou (re)elaborar significados.

Tomando a sala de aula como uma comunidade de aprendizes, onde a narrativa do professor também é importante, passamos a compartilhar nossas histórias, evitando-se com essa cumplicidade o excesso do livro didático e fazendo do aprendiz o personagem principal. É a partir desse trabalho, criando-se esse contexto de comprometimento, que surgem as oportunidades de trocas significativas, de fortalecimento da participação de cada um. Na tentativa de dar sentido à própria existência, ordenamos nossas experiências em seqüências temporais para obtermos um relato coerente sobre nós mesmos e sobre o mundo que nos rodeia. Essa ordenação de vivências se reflete no discurso de cada um através do uso de símbolos e metáforas, que indicam maneiras particulares de se encarar o mundo. Evoluir significa ser capaz de construir uma nova versão a partir da existente. Sendo o processo evolutivo semelhante ao da re-escritura, as pessoas estão sempre entrando nos próprios relatos e apoderando-se deles para fazer os ajustes necessários; por isso, nossas histórias de vida podem ser sempre recontadas. Ilustraremos isso com alguns relatos de alunos estrangeiros aprendendo Português na Casa do Brasil, em Salvador.

Minha estancia no Brasil (Corinne S.- alemã )
Eu cheguei para o Brasil no mês de fevereiro. E eu não falei quase nada. A primeira época era muito difícil e me senti como um bebê que deve aprender tudo de novo.
Antes do carneval se sente como a cidade se comença encher. Cada dia mais festas, mais violência, mais turistas e estranjeros. “A fevre do carneval se aumenta cada dia”.
Foi muito interessante para olhar e sentir mas foi também alarmante! Não sei ainda que devo pensar deste spetaclo; por um lado me impressionava e por outro lado tinha medo.
Acho também que o Brasil é o país dos contrastes. De vez em quando é muito interessante mas pode ser também canzativo!

 

Meu ideal seria falar... (Werner- alemão)
Meu ideal seria falar todas as línguas do mundo.
Se eu as falasse, poderia entender todas as pessoas do mundo.
Nao precisaria aprender o português.
Todo seria mais fácil.
Se eu viajasse para qualquer país do mundo poderia falar diretamente com a gente.

Se eu telefonasse para o Brasil, pagaria menos dinheiro para uma ligação, por que poderia entender e falar mais rápido.

Tivesse um estrangeiro na rua em Frankfurt poderia ajudar ele quando ele quis saber alguma coisa.

Poderia ensinar todas as línguas me fizesse contente.

Se uma pessoa falasse ou dissesse uma brincadeira poderia rir, porque entenderia tudo que essa pessoa falasse.

Tivesse um ladrão poderia dizer para ele que não seria interessante roubar as minhas coisas porque não tenho coisas caras.

A construção de uma narrativa inusitada requer um compromisso ativo por parte do próprio indivíduo na reorganização de suas experiências, na recombinação de seus relatos anteriores. É nesse momento, então, que os acontecimentos extraordinários se revertem de novos significados e servem de pilares para histórias alternativas, que podem ser eternamente recontadas e, certamente, ajudam cada um a viver melhor. Cabe ao professor implementar discussões e a utilizar estratégias que levem o aluno a contestar suas crenças pessimistas. Dessa forma, o aluno será encorajado não só a escrever sobre situações adversas que tenha passado mas a pensar também como poderá se auto-corrigir, substituindo narrativas negativas por positivas e, principalmente, sentindo-se mais à vontade e motivado a aprender. Como atividade extra, cada aluno pode até manter um diário, para registrar os seus relatos e exercitar as estratégias de constatação, que irá desenvolver no decorrer de sua vivência ecosófica.

 

2. INCLUINDO AS DIFERENÇAS, RESGATANDO O COLETIVO.

            Ao aprender uma língua estrangeira a cultura do outro é normalmente evidenciada como alvo de prestígio; pretende-se aprender a língua incorporando componentes culturais dos falantes da língua. Tal tarefa, que foi tradicionalmente adotada por professores de LE, tornou-se esvaziada de sentido na medida em que o mundo globalizado quebra as fronteiras geográficas e as identidades nacionais se entrecruzam fortalecendo identidades outras (de etnia, de língua, de raça, de gênero, de classe social, de religião etc). A crise de identidade no mundo pós-moderno ocorre, assim, nos níveis global, local e pessoal, promovendo uma convergência de culturas e estilos de vida, fazendo com que a globalização produza diferentes resultados em termos de identidade. Segundo Woodward (2000, p.21),

A homogeneidade cultural promovida pelo mercado global pode levar ao distanciamento da identidade relativamente à comunidade e à cultura local. De forma alternativa, pode levar a uma resistência que pode fortalecer e reafirmar algumas identidades nacionais e locais ou levar ao surgimento de novas posições de identidade.

Assumindo, então, a identidade cultural como um conjunto de componentes dinâmicos, em constante mutabilidade de acordo com interesses vários, fragmentados e multifacetados pelas situações de vida em que se posicionam os sujeitos, passamos a coletar materiais autênticos que pudessem proporcionar ao aprendiz de LE as várias leituras de interculturalidade. Como parte de uma oficina de leitura em língua inglesa selecionamos três tipos de materiais que se mostraram altamente eficientes para a abordagem crítica de identificação de similaridades e diferenças interculturais: textos publicitários que destacam as diferenças culturais, textos informativos sobre agências que promovem o bem-estar social e imagens fotográficas representativas de vários grupos minoritários. Pretende-se destacar mensagens que tragam não só conhecimentos lingüísticos mas, sobretudo, novos olhares para o acolhimento das diferenças culturais, na tentativa de desconstruir estereótipos e construir uma mentalidade de cidadania planetária que fortaleça uma ética da coexistência.

 No primeiro tipo de material selecionado destacamos os textos publicitários do Banco HSBC retirados da Revista Newsweek; tais textos apresentam objetos que assumem significados diferenciados em várias culturas, como por exemplo, um gafanhoto que nos Estados Unidos é considerado uma peste para a agricultura, mas que na China é tido como animal de estimação e no norte da Tailândia é oferecido como aperitivo. A questão da relatividade cultural é enfocada e a verdade cultural de cada grupo é valorizada através da sentença Never understimate the importance of local knowledge que é destacada na publicidade e acompanhada por um pequeno texto que tenta convencer o leitor de que o referido banco reconhece e valoriza a multiculturalidade em cada uma das suas agências espalhadas pelo mundo, através do slogan The world’s local bank sugerindo que o global não despreza o local. Ao trabalhar o texto com os alunos, nos concentramos na imagem do gafanhoto (e nas demais imagens apresentadas nas várias versões do comercial) identificando as atitudes de perplexidade e as várias sensações evocadas diante do reconhecimento do uso social que cada cultura constrói. Partimos, assim, a olhar as diferenças como parte de um contexto sócio-cultural historicamente construído. A partir daí buscamos a pesquisa de materiais interculturais em revistas, filmes, e Internet que se transformaram em um mosaico provocador de novos textos orais e escritos. Em um segundo momento, voltamos ao texto e passamos a uma leitura crítica em que foi conduzido um debate sobre: o caráter persuasivo do comercial, a interculturalidade como valor de marketing e a possibilidade de convivência entre o global e o local nos diversos campos sociais.

No segundo tipo de material selecionamos um texto da UNHCR (United Nations High Commissioner for Refugees) em que a mesma imagem de um boneco é repetida doze vezes tendo como legendas adjetivos pejorativos usados para discriminar os refugiados (parasite, criminal, foreign trash etc), mas nos dois últimos bonecos lemos as palavras you e me. Diante do texto, os alunos reconhecem os significados dos adjetivos e discutem a intenção crítica da colocação dos pronomes you e me. Passamos à leitura do texto que complementa o material compreendendo a proposta da referida organização e enfocamos a atenção para o título em negrito What’s the difference? ampliando-se um debate sobre discriminação, xenofobia, cidadania, eqüidade social.  Como uma atividade complementar de produção de escrita, o mesmo boneco é copiado diversas vezes e os alunos são solicitados a selecionar adjetivos positivos que possam caracterizar de uma forma não discriminatória a imagem dos refugiados; diante de uma perspectiva bem mais humanizadora todos se sentem identificados com os refugiados e um novo título surge What a difference! em que se descreve a possibilidade de um mundo mais solidário. Ainda com o mesmo material, partimos para uma proposta interdisciplinar em que os alunos buscam informações históricas sobre a situação dos refugiados do mundo contemporâneo, as condições políticas que explicam esse fenômeno social, as passagens históricas em que recebemos refugiados no Brasil.

Como terceiro tipo de material colecionamos fotos provenientes de calendários étnicos de organizações como UNICEF e  Anistia Internacional, servindo como  inspiradoras para elaboração de textos descritivos, de identificação de elementos culturais que marcam semelhanças e diferenças, de inspiração para pesquisas interculturais, e de produção de textos subjetivos baseados na imaginação do aluno a partir das sensações que as imagens evocam em cada um. Através dessa coleção de fotos étnicas podemos trazer fatias do mundo para a sala de aula apresentando aos alunos grupos sociais que são esquecidos pela mídia; nesse sentido resgatamos a curiosidade pelas diferenças e reforçamos o compromisso pela inclusão das minorias, pela construção do coletivo, lembrando o poeta John Donne (1614) ao declarar que

No man is an island, entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main; … any man’s death diminishes me, because I am involved in mankind; and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee.

 

3. O RESGATE DA DIMENSÃO ECOLÓGICA DO MEIO AMBIENTE E O ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA.

O termo ecologia ou o estudo do inter-retro-relacionamento de todos os sistemas vivos/não-vivos entre si e com o seu meio ambiente deriva de oikos, em grego, que significa casa , em Boff (2000, p.25).  Logo, o meio ambiente é entendido como uma moradia dentro de toda uma teia de sistemas existentes  no planeta, e   considerando   a  ecologia ambiental sob a perspectiva de Félix Guattari (2002: 8-9), que a visualiza no bojo de dois outros eixos ecológicos, o mental e o social, -  os quais se articulam entre si como vasos comunicantes para manter o equilíbrio individual e coletivo do ser humano -,  questiona-se como a aprendizagem de LE pode estimular uma maior conscientização  dos alunos sobre a necessidade de cada um zelar por esse equilíbrio.        

            Reflexões e questionamentos éticos, sociais e políticos são, então, estimulados a partir de um corpus que desperte  o respeito pelo meio ambiente, que é vital para a sobrevivência da humanidade. Propondo uma visão transacional do ensino de leitura, com um grupo de alunos da graduação de Letras da UFBA, geramos um debate sobre a violência ambiental tomando por base o artigo da Speak up "To see or not to see? The ground zero debate", de maio/2002, que fala sobe a catástrofe de 11 de setembro em N. York mostrando em que se transformou hoje o espaço anteriormente ocupado pelo World Trade Center. Propõe-se discussões  que levem o aluno a perceber, através de uma análise do enunciado, a ideologia subjacente à matéria e aos posicionamentos políticos do autor, de modo que uma análise do discurso possa levar o aluno a distinguir o que, no texto estudado, é mera informação, mera exposição de fatos traduzida em uma linguagem denotativa; ou o que constitui uma opinião mais pessoal do autor, um posicionamento colorido pela sua visão de mundo, exposta em uma linguagem mais conotativa. Disposto em duas colunas, o material extraído do segmento inicial do artigo em análise, incluindo grifos nossos nos enunciados abaixo, aparecem coloridos por uma forte carga emotiva, a qual denuncia o posicionamento do autor:

 

A matter of Fact                                                    A matter of Opinion

The ruins of the World Trade Center

Some encouraging headlines

The construction of a wooden platform to view the site

Unexpected positive news

Tim Gray, a Manhattan laywer, lost his brother Christopher in the World Trade Center tragedy

Tensions are still running high at Ground Zero

Three thousand victims

Families and friends struggle to come to terms with their losses

Observation platforms

Another emotional hurdle

 

As a family member, I have tried to keep the most open views toward the observation platforms

What happened on September 11th

Despite all my efforts to keep an open mind, it's just, it's still an incredibly personal issue

 

Many of us are just a little disgusted at the way the observation platforms have been established

 

The City kind of rushed to push the platforms through

 

            Pode-se depreender pelos marcadores de texto, especialmente ressaltados à direita,  que se trata de uma narrativa com forte carga emocional, escrita em uma linguagem muito mais conotativa do que denotativa. Um discurso amplamente marcado por adjetivos, advérbios e expressões idiomáticas que denunciam desapontamento, desgosto, revolta, intolerância por parte do autor em relação aquele "turismo macabro", que está ocorrendo hoje em N.York, onde no passado se via o World Trade Center. Uma denúncia que espera, talvez, uma tomada de providências por parte do governo e da sociedade para sustar uma atitude tão indiferente ao sofrimento alheio.

Um exercício  de sala de aula que aprofunda esta análise discursiva leva, em seguida, o aluno a refletir sobre cada  testemunho dado pelas cinco pessoas no texto e as respectivas imagens correspondentes exibidas no artigo. Só em observar os títulos de cada depoimento, já se pode inferir a ironia e a forte revolta que permeia o discurso, como: Macabre tourism, em que se combina um adjetivo negativo, grotesco, a uma palavra do campo semântico do lazer, quando se sabe que o artigo não indicia algo prazeroso; Compassion or curiosity?, que joga com opostos e com o recurso da aliteração; Just the beginning, em que o autor recorre a uma linguagem denotativa, modulada pelo advérbio just, que indica urgência; A slap in the face, em que se utiliza de uma metáfora, que indicia violência; A respectul reminder, em que aparece um adjetivo com uma conotação positiva para otimizar o evento e dar-lhe uma discreta conotação positiva, apesar de tudo.

            Assim, ao mesmo tempo em que o aluno extrai dados objetivos do texto, ele vai também atentando para a  estética do discurso, meditando sobre a sua forma e o modo como o enunciado é construído para provocar no leitor determinados efeitos ou interpretantes, quer pela leitura verbal, quer pela leitura não verbal do mesmo. E dentre os aspectos políticos levantados pelo artigo, ressaltam-se: a violência ambiental contra o espaço, visto que em N.York, onde antes havia uma grande construção, hoje existe apenas um enorme buraco negro; a violência social, devido à falta de respeito pelo indivíduo, pelos familiares que perderam seus membros naquela tragédia, algo como um "golpe no rosto de cada um" (a slap in the face). Um golpe que a força imperialista do poder americano, tão própria de países que se consideram colonizadores do mundo, exerce contra os mais fracos; essa grande potência ignora,  dentro de um contexto do mundo capitalista em que busca exercer o seu domínio, quaisquer conseqüências éticas que possam advir de suas ações, ao promover um "turismo macabro" tão absurdo hoje, como foi absurda a explosão das torres gêmeas, e buscando lucrar de forma maquiavélica até com a sua própria desgraça.

            Ampliando a matéria para um contexto mais universal e conectando-a para a realidade mais pessoal do aprendiz, passamos para uma atividade follow-up interessante: os alunos passam a desenhar ou fazer uma colagem de um imenso buraco que representa o mundo, no qual jogam tudo o que acreditam que deveria ser expurgado, tais como: a fome, a miséria, o descaso pela natureza... Um momento do trabalho pedagógico em que dão asas à imaginação e expressam suas angústias e medos através de recursos visuais por eles escolhidos. Assim, estariam se utilizando da língua-alvo, estudando elementos lingüísticos importantes como linguagens denotativa e conotativa, adjetivos metafóricos, vocabulário específico etc para debates e reflexões profícuas a respeito do "buraco" da contemporaneidade.

Conclusões em aberto.

            Nos vários encontros pedagógicos que temos coordenado, apresentando a abordagem pedagógica socialmente comprometida que relatamos neste trabalho, temos percebido entre os participantes o reconhecimento do poder político que eles podem assumir em sala de aula, a aceitação e alegria com que buscam esses novos materiais de ensino-aprendizagem de LE que contribuem para a pedagogia da paz, assim como a confiança que depositam no poder transformador que esse materiais trazem no sentido de contribuir com novos valores éticos que despertam o desenvolvimento de uma consciência crítica nos alunos que possibilite a construção de uma sociedade mais solidária.

 

REFERÊNCIAS

 

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BOFF, Leonardo. Saber cuidar. Ética do humano- compaixão pela terra. RJ: Vozes, 2ed. 1999.

CAVALCANTI, Marilda. “Um evento de letramento como cenário de construção de identidades sociais, em COX, M. I. e ASSIS-PETERSON, A.A.(Orgs) Cenas de Sala de Aula. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001, p. 105-24.

DONNE, John. Devotions upon Emergent Occasions, Meditation XVII, 1624.

GIROUX, Henry. Os professores como intelectuais. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

GUATTARI, Félix. As três Ecologias. Campinas, SP: Papirus, 2002.

MCLAREN, Peter. Multiculturalismo Revolucionário: Pedagogia do dissenso para o novo milênio. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.

MOITA LOPES, Luiz Paulo. Oficina de Lingüística Aplicada: a natureza social e educacional dos processos de ensino/aprendizagem de línguas. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1996.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 2001.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual, em SILVA, Tomaz. Identidade e Diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 7- 72.