Introdução
Os
vários estudos na área da Sociolingüística têm demonstrado que o aparente
“caos” lingüístico é gerenciado por um sistema de regras.
Para a Sociolingüística
Variacionista (Labov 1972), os fatos lingüísticos são entidades teóricas, de
modo que a realização de uma ou outra variante das formas em competição
constitui seu objeto de análise. Sob essa perspectiva teórica trabalha-se com
a noção de regra variável, em que duas ou mais formas coexistem no sistema
lingüístico e a presença de um dado traço ou subcategoria deve afetar a freqüência
de aplicação de uma regra probalisticamente uniforme em todos os ambientes em
que esses traços apareçam (Cedergren & Sankoff, 1974).
A Teoria da Variação
assume a concepção de língua como fato social, heterogêneo e variável.
Concebe, na análise dos dados, a
relação língua e sociedade, estabelecendo a correlação existente entre as
variáveis lingüísticas e sociais. Para
essa Teoria, a heterogeneidade lingüística é passível de ser sistematizada.
No
Brasil, os estudos têm evidenciado, por exemplo, que o fenômeno da variação
da concordância nominal não se restringe a determinadas regiões do país;
sendo, portanto, decorrente de contextos lingüísticos
e sociais semelhantes. Esses estudos apontam que a partir da
sistematicidade do fenômeno é possível prever em que estruturas é mais provável
a aplicação da regra variável da concordância e quais princípios estão
gerenciando esse sistema.
A concordância nominal sob perspectiva variacionista
A
concordância tem sido amplamente trabalhada no Brasil sob o suporte teórico-metodológico
da Teoria da Variação.
Os
estudos em torno da concordância se iniciaram no Brasil com os trabalhos
pioneiros sobre a concordância verbo/sujeito e concordância verbal de número
(Naro & Lemle, 1976; Lemle & Naro, 1977), realizados com 20 falantes
semi-escolarizados, residentes na área urbana do Rio de Janeiro e freqüentadores,
na época, do curso de alfabetização de adultos.
Esses
estudos se desenvolveram de tal forma que diversos trabalhos e grupos de
pesquisas (cf. Silva, Scherre, 1996; p. 29-36) multiplicaram-se no país,
expandindo a pesquisa na área da Sociolingüística Variacionista. Entre os
diversos trabalhos desenvolvidos, destacamos o de Scherre & Braga (1976) por
se tratar de um estudo pioneiro acerca da concordância nominal no português
falado no Brasil.
As
autoras analisam dados de sete falantes cariocas, com classe social e procedência
geográfica distintas, objetivando observar o comportamento dessa variável na
fala do Rio de Janeiro. Introduzem o princípio da saliência fônica (Naro
& Lemle, 1976) na concordância de número e concluem que as formas mais
salientes estão mais propensas a receberem a marca de plural do que as menos
salientes. (Scherre, 1988; p. 67).
Além
desse trabalho realizado por Braga & Scherre (1976), fazemos referência dos
trabalhos de Braga (1977), Scherre (1978;1988) com falantes escolarizados e
semi-escolarizados do Rio de Janeiro. Ponte (1979) estuda os falantes
semi-analfabetos de Porto Alegre, Nina (1980) trabalha com falantes analfabetos
da micro-região de Bragantina no Pará, Guy (1981) estuda falantes
semi-escolarizados do Rio de Janeiro, e Dias (1993), o português falado na zona
rural e urbana em Brasília, Carvalho (1997) em João Pessoa, apenas para citar
alguns.
Os
estudos têm evidenciado que o fenômeno da variação entre os elementos
pluralizáveis do SN não se restringe a determinadas regiões do país, mas
apresenta-se de forma sistêmica na língua em contextos lingüísticos e
sociais semelhantes, sendo possível prever em que estruturas é mais provável
a aplicação da regra variável de concordância.
Dessa
forma, os estudos realizados em torno da concordância de número apresentam-na
como um fenômeno de natureza variável, condicionada por fatores lingüísticos
e sociais, em que duas formas coexistem na comunidade com o mesmo valor de
verdade, possuindo basicamente duas variantes: a presença vs. a ausência do
morfema de número.
Assim,
entre os elementos flexionáveis do sintagma nominal poderá haver situações
em que haverá apenas uma marca formal de plural, como também casos em que
nenhuma marca formal se apresentará. Nessas situações o plural será expresso
através da carga semântica do SN. Como ilustram os exemplos:
“Já
faz vinte e um
ano que a gente mora aqui...” (LS - f,s,a).[1]
“Passei
dezessete
ano ensinando...” (FP- m,u,j).
“Tem
uma porção de coisa aí, né?”
(GG - m,s,a).
“Eu
passei um bucado de ano
trabalhano...” (MJS- f,n,v).
Para
Scherre (1988, p. 15), a variação na concordância é inerente ao sistema,
sendo, portanto, possível se prever em que estruturas lingüísticas e em que
situações sociais os falantes são mais propensos a colocar ou não todas as
marcas formais de plural nos elementos flexionáveis do SN, dado o caráter sistêmico
das regras variáveis condicionadoras do fenôemeno.
Essa
visão extrapola o ponto de vista da norma gramatical, por esta considerar que a
concordância ocorre obrigatoriamente em todos os elementos do sintagma.
Para
os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) a “ variação é constitutiva das
línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis” (PCN, p.29).
O
documento concebe a “linguagem como um processo de interlocução que se
realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma sociedade,
nos distintos momentos de sua história ”.
Já
na introdução o documento explicita seu posicionamento acerca da linguagem e a
apresenta como “expressão das idéias, dos pensamentos e intenções, em que
se estabelecem relações interpessoais”, sendo a língua
um
sistema de signos específico, histórico e social, que possibilita a homens e
mulheres significar o mundo e a sociedade. Aprendê-la é aprender não somente
palavras e saber combiná-las em expressões complexas, mas apreender
pragmaticamente seus significados culturais e, com eles, os modos pelos quais as
pessoas entendem e interpretam a realidade em si mesmas. (Ver pág.)
O
conceito perpassa pela relação língua/história/sociedade e cede espaço para
a desconstrução da imagem de uma língua única, “correta”, sem variação.
Avança para o conceito de língua variável, dinâmica, que embora não
explicitada na definição dada pode ser resgatada na relação da língua com o
histórico e o social, pois é dessa relação precípua que se dá o dinamismo
nas línguas.
Do
ponto de vista pedagógico, essa concepção variável acerca da língua se
revela em alguns conteúdos sugeridos pelos PCN como o citado a seguir:
Observação
da língua em uso de maneira a dar conta da variação intrínseca ao processo
lingüístico, no que diz respeito aos “fatores geográficos (variedades
regionais, variedades urbanas e rurais), históricos (linguagem do passado e do
presente), sociológicos (gênero, gerações, classe social), técnicos
(diferentes domínios da ciência e da tecnologia);
aos difrentes componentes do sistema lingüístico em que a variação se
manifesta: na fonética, no léxico, na morfologia, na sintaxe (estruturação
de sentenças e concordâncias); Comparação dos fenômenos lingüísticos observados na fala e na escrita nas diferentes variedades,
como: sistema do tempo verbal, emprego dos tempos verbais; casos mais gerais de
concordância nominal e verbal, entre outros (PCN,1998, p.).
O
estudo da variação cumpre, nas palavras do documento, papel fundamental na
formação da consciência lingüística e no desenvolvimento da competência
discursiva do aluno, devendo estar sistematicamente presente nas atividades de Língua
Portuguesa.
Mas, até que ponto os manuais didáticos assimilaram essa discussão?
Essa pergunta nos fez investigar de que forma a vasta descrição sociolingüística
do Português do Brasil tem contribuído para a discussão da variação lingüística
na escola e de que forma o tratamento da variação se manifesta nos conteúdos
programáticos desses manuais. Acreditamos que discutir variação e ensino vai
além da discussão adequado/inadequado, formal/informal. Discutir variação e
ensino é pensar no próprio funcionamento do sistema lingüístico e suas
implicações sociocomunicativa, histórico e cultural. Acreditamos, como afirma
Neves (2003) , que “cabe à escola dar vivência plena da língua materna e todas variedades têm de ser valorizadas”, a fim
de ampliar a competência discursiva. do aprendiz como afirma Almeida Filho
(1991), é ponto pacífico que conhecer uma língua compreende múltiplos
aspectos próprios de fenômenos lingüísticos, desde a competência lingüística
stricto sensu, passando pela competência comunicativa e atingindo
idealmente uma competência discursiva .
A concordância nominal em livros didáticos
Ao analisarmos os Livros Didáticos (LV), com o objetivo de investigar de
que forma esses manuais tem assimilado as orientações da Pesquisa lingüística,
área da Sociolingüística, registramos duas formas norteadoras do estudo da
CN, que são (1) abordagem do conteúdo na unidade denominada gramática com
apresentação da regra geral seguido de exercícios; (2) abordagem do conteúdo
com tratamento apenas dos casos especiais de concordância (3) abordagem do
conteúdo CN em questões mínimas inseridas na análise textual
A
formulação de conceitos se processa mediante propostas de exercícios que
conduzem, em sua maioria, para a reescritura e transposição das frases do
singular para o plural, seguidas ou não de perguntas que buscam a formulação
das regras de concordância nominal. Para ilustrar apresentamos o exercício a
seguir:
(1)
Coloque no plural as palavras destacadas, fazendo as adaptações necessárias nas frases:
a)
No chão havia um montão de
grandes dados.
b)
O capitão era muito idoso!
c)
Retiraram um órgão de seu
corpo.
d)
Ainda falta uma prestação
para eu saldar minha dívida.
(2)
Responda às questões com frases completas, utilizando as expressões entre parênteses:
a)
O que você comeu? (dois) (pão)
b)
Quem você encontrou no cais? (três) (capitão)
c)
Tenho só um irmão. E você? (quatro)
(irmão)
d)
Quanto custou o livro? (trinta) (real)
e)
O que você comprou? (dois) (pastel)
A
que conclusão você chega a respeito da concordância entre numeral e
substantivo? Resposta: Se o numeral indica plural, o substantivo deve ir para o
plural.
(Faraco
& Moura, 1999)
Os
exercícios supracitados são da 5ª série do 3º ciclo (5ª série) do ensino
fundamental. No exercício (1) o objetivo é trabalhar com a concordância dos
nomes terminados em –ão.
Para Scherre (1988) existe uma escala gerenciando a concordância de forma
que os itens mais salientes favorecem mais marcas de plural do que as menos
salientes, constatando, assim a atuação do princípio da saliência fônica. A
autora atribui essa oscilação dos itens terminados em –ão a algumas
particularidades de sua formação de plural e lembra que a
tradição gramatical brasileira classifica a transposição do singular para o
plural desses itens em três formas: em –ãos (irmão/irmãos), em –ães
(capitão/capitães) e em –ões (balão/balões), registrando também mais de
uma possibilidade para uma só palavra como anciãos, anciões e anciães (cf.
Rocha Lima,1983, p.74; Bechara, 1989,p.77).
Com relação aos itens terminados –ão a regra é variável
condicionada também por fatores externos como anos de escolarização dos
falantes, de forma que a variação oscila em função do faixa de escolaridade.
Com relação a estrutura um montão de, uma porção de, um bucado, uma ruma de
parece já ter se cristalizado na língua.
Percebe-se
que o direcionamento dos exercícios privilegia apenas a concepção escrita da
linguagem padrão. Contemplam-se as regras gerais e os casos especiais da
concordância (menos/menos;cara...) sem, em nenhum momento, relacionar os usos
variáveis da concordância na oralidade. Desconsidera-se, portanto, a realidade
lingüística e social desse fenômeno, cujas regras já foram demonstradas na
pesquisa sociolingüística como variáveis e altamente estruturadas.
Com
relação à concordância, a pesquisa na área da Sociolingüística tem
evidenciado que o fenômeno da concordância é inerentemente variável,
estruturada em função de aspectos lingüísticos e sociais, em que um sistema
de regras prever em que estruturas lingüísticas e em que situações sociais
os falantes são mais propensos a colocar ou
não todas as marcas no sintagma.
Acreditamos
que a descrição dos fatos da concordância do Português do Brasil realizada
pela pesquisa lingüística já nos dá condições de sair do amadorismo e
pensar numa discussão fundamentada que conduza para o reconhecimento do caráter
social do uso lingüístico.
Com
base na reflexão que fizemos fundada no aparato teórico-metodológico da
Sociolingüística Variacionista cuja relação estrutura e heterogeneidade
refletem o sistema lingüístico e concebe a variação inerente à língua;
considerando a concordância nominal, fenômeno amplamente estudado há mais de
duas décadas, variável no Português do Brasil, com restrições lingüísticas
e sociais gerenciando a variação estável nessa língua e considerando os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN), norteadores pedagógicos propostos pelo Governo do
Brasil, sob a chancela do MEC, que parecem conceber e reconhecer esse caráter
variável do sistema lingüístico, observamos que ainda há uma distância
considerável entre pesquisa lingüística e escola, bem como entre PCN e livro
didático, no que se refere à variação da língua e ensino da análise lingüística,
em especial da concordância.
Resta-nos
perguntar até quando haverá esse fosso entre pesquisa e ensino e, conseqüentemente
até quando os livros didáticos vão reproduzir a imagem de uma língua única
dissociada das situações comunicativas.
CARVALHO,
Hebe Macedo de. Concordância nominal: uma
análise variacionista.Dissertação de Mestrado, UFPB, 1997.
CEDERGREN,
Henrietta & SANKOFF, David (1974). Variables
rules: performance as a statistical reflection of competence. Language, 50 (2): 333-55, jun.
LABOV,W.
Socilingüistic patterns..
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972.
MINISTÉRIO
DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO: Parâmetros Curriculares Nacionais, 1998.
SCHERRE,
Maria Marta Pereira. Reanálise da concordância
nominal em português. Tese de Doutoramento. Rio de Janeiro, UFRJ. 554p.
2v.. mimeo,1988.
DIONÍSIO, Ângela P. & BEZERRA (Org.) O livro didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001
LIVROS DIDÁTICOS
FARACO
& MOURA (1999). Linguagem nova.. São Paulo: Ática. (5ª/6ª séries)
CEREJA
& MAGALHÃES (1998). Português: linguagens. São Paulo: Atual. (5ª/6ª
séries)