Mas o amor não compreende esses cálculos e esses raciocínios próprios
da fraqueza humana; criado com uma partícula do fogo divino, ele eleva o homem
acima da terra, desprende-o da argila que o envolve, e dá-lhe forças para
dominar todos os obstáculos, para querer o impossível. (Cinco
Minutos, p.41)
Percebemos,
nos romances de José de Alencar, algumas estratégias discursivas mais
recorrentes, caracterizadoras de seu estilo e da estrutura de seus livros. Essa
análise remete às situações e aos espaços discursivas dos interlocutores
inscritos nas narrativas como também às formações discursivas e imaginárias
do escritor1.
Cinco
Minutos, publicado inicialmente em folhetins, no ano de 1856, iniciou a série de
romances de temática urbana que têm como núcleo o amor romântico,
contextualizado por costumes e lazeres de uma vida mundana. Esses romances compõem
os "perfis femininos" escritos por José de Alencar a partir de um
procedimento literário específico - a confissão de uma história de amor
através de cartas que encadeiam e encaixam uma narrativa à seguinte,
conferindo uma idéia de continuidade às trajetórias das personagens, na
incessante busca do objeto amado.
Nos
dois primeiros romances publicados por Alencar - Cinco Minutos e A
Viuvinha - torna-se bem visível esse procedimento, uma vez que o
protagonista do primeiro (sem nome) escreve uma carta à sua prima (da qual
conhecemos apenas a inicial do nome D), narrando a segunda história,
elaborada a partir das confidências de um amigo. O tema da história em questão
é também construído em torno do percurso amoroso de um casal que vem a
privar, segundo depoimento do narrador, da intimidade do casal do primeiro
romance:
Carlota
é amiga íntima de Carolina. Elas acham ambas um ponto de semelhança na sua
vida: é a felicidade depois de cruéis e terríveis provanças. As nossas famílias
se visitam com muita freqüência, e posso dizer-lhe que somos uns para os
outros a única sociedade. (A Viuvinha, p. 129).
_________________________________________________________________________
1Foucault (1987)
nomeia estratégias discursivas certas organizações de conceitos, certos
agrupamentos de objetos, certos tipos de enunciação que formam temas e
teorias, segundo graus de coerência, rigor e estabilidade. Existe uma delimitação
das escolhas teóricas realmente efetuada e que depende da função exercida
pelo discurso estudado em um campo de práticas não discursivas. Essa instância
compreende, também, o regime e os processos de apropriação dos discursos e
caracteriza-se pelos possíveis do desejo em relação ao discurso, visto pelo
autor como lugar da encenação fantasmática e elemento de simbolização.
Determinar os pontos de difração possíveis do discurso: pontos de
incompatibilidade entre dois objetos de enunciação; pontos de equivalência;
pontos de ligação, etc., como também dar conta das escolhas realizadas entre
as que poderiam ter sido, descrevendo instâncias específicas de decisão -
revelam importantes trilhas no olhar da constelação discursiva de uma obra.
A
função das cartas é conferir credibilidade à história, pois o narrador
declara que os fatos narrados realmente aconteceram, não foram inventados.
Trata-se de uma exigência do procedimento ficcional da verossimilhança,
que exige uma criação literária semelhante à realidade do mundo vivido.
Dessa forma, a personagem-confidente também deverá ser idônea, uma vez que,
sendo testemunha confiável, reforça, assim, a intenção do narrador em
conferir veracidade ao episódio: "É uma história curiosa a que lhe vou
contar, minha prima. Mas é uma história, e não um romance". (Cinco
Minutos, p. 5). Em outra narrativa, o escritor ratifica o mesmo
procedimento: "Mas eu não escrevo um romance, conto-lhe uma história".
(A Viuvinha, p. 101).
A
mesma estratégia discursiva das confidências por carta é retomada,
interligando os romances Lucíola e Diva. Dessa vez, o narrador de
Lucíola, a personagem Paulo, algum tempo depois de decorrido o desfecho
trágico do romance (a morte de Lúcia provocada por um aborto) resolve escrever
a uma senhora amiga, G. M., narrando as confidências de seu amigo médico
Augusto, envolvido amorosamente com uma mocinha, Emília, de caráter muito
severo. Em outro romance - Senhora
- Fernando indaga a Aurélia, em certa ocasião, que livro ela tem nas mãos. A
moça está lendo Diva, uma história recentemente publicada sobre os
desencontros amorosos de um casal e mostra-se emocionada, exatamente por estar
vivendo uma situação doméstica semelhante. A partir desses exemplos,
percebemos como Alencar "joga" com a narrativa, não apenas em seu
conteúdo temático, mas, principalmente, em sua organização estrutural e
discursiva, inserindo uma ficção dentro de outra ficção - procedimento, aliás,
muito usado na narrativa contemporânea.
Outra
singularidade da ficção alencariana diz respeito à performance de suas
protagonistas, em linhas gerais: são mocinhas decididas, inteligentes, argutas
e espertas, além, é óbvio, de serem lindas, insinuantes, delicadas e mimosas,
de moral intocável, e, o que é mais surpreendente, com um tal poder de
iniciativa, decisão e discernimento que, via de regra, deixam os homens
submissos aos seus caprichos e fascínios:
Excitou
a admiração geral pela sua beleza. Não houve talento, posição e riqueza que
se não arrojasse a seus pés. Sabiam vagamente a sua história; suspeitavam a
virgindade sob aquela viuvez, e se lhe dava um toque de romantismo que inflamava
a imaginação dos moços à moda. (A Viuvinha, p. 120).
Assim
Carolina tornou-se coquette, ouvia todos os protestos de amor, mas para zombar
deles; e seu espírito se interessava nessa comédia inocente de sala; a sua malícia
representava um papel engenhoso, mas o coração foi mudo espectador.
(Idem, p. 121).
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2Valéria de
Marco (1986, p.74) afirma que, ensaiando a nacionalização do tema da mulher
prostituída e sua regeneração, muito em voga no romantismo e no realismo
europeu, Alencar teve de tocar também em outros problemas sociais implicados no
tema, passando a refletir sobre a ordem burguesa que lá se consolidava a todo
vapor, motivada pela revolução industrial, pelas concentrações urbanas,
pelos salões iluminados e pelos vários teatros que tiravam as peças e as óperas
das praças públicas. A ordem burguesa trazia agora outra medida
de tempo, de mercado e de progresso impulsionadas pela rapidez do transporte e
do correio, pelo barateamento do livro, pelo surgimento do jornal diário e
avulso que formava "opinião" e que podia destruir ou construir um
ministro ou um escritor.
A
exceção fica por conta da personagem Lúcia, de Lucíola2,
uma "sultana de ouro" do Império que abre uma perspectiva de análise
privilegiada para José de Alencar, uma vez que, ao tematizar a prostituição,
aborda a ação degradante do dinheiro em sua forma mais explícita, no mercado
da corte. Paulo e Lúcia não podem
casar-se, já que ela se mantinha pela "venda" do corpo: Alencar
apresenta sua personagem central lendo A Dama das Camélias,
dialogando diretamente com a literatura estrangeira. A intertextualidade
vai revelando ao leitor situações de interlocução e articulações do lingüístico
ao social.
A
mulher prostituída do Rio de Janeiro toma forma literária no romance Lucíola,
em que, mais uma vez, José de Alencar fará uso da estratégia da confissão
por meio de cartas a fim de legitimar e validar sua história como verdadeira. A
confissão de Paulo a G. M., em Lucíola, nasce da necessidade de
explicitar uma postura ética e pretende caracterizar-se
como processo de análise e conhecimento da mulher prostituída e de suas
relações amorosas.
Enquanto
A Dama das Camélias apresenta-se como reconstituição de uma história
de amor, Lucíola tem o objetivo de construir uma reflexão sobre as
formas de narrar as paixões e pretende discutir os problemas enfrentados pelo
escritor ao tentar apresentar a complexidade desse real. Através da análise do
passado, Paulo constrói sua narrativa que,
para ele, é uma forma de partilhar com o leitor as dificuldades do
processo de apreensão da realidade: dessa forma, enquanto Dumas Filho inicia o
texto esclarecendo porque conta uma história de amor e onde a encontrou,
Alencar começa sua obra preocupado em justificar
como narrar essa história.
G.
M., confidente de Paulo, tipo intencionalmente contrastante com a personagem
cortesã - já que se refere a uma senhora muito respeitável com seus cabelos
grisalhos tingidos pela passagem do tempo - recebe a história através de uma
seqüência de cartas, com a seguinte recomendação: "Essas páginas foram
escritas unicamente para a senhora. Vazei nelas toda a minha alma para lhe
transmitir um perfume da mulher sublime, que passou na minha vida como sonho
fugace". (p. 158). G. M.
acolhe emocionada a confissão, reelaborando-a segundo suas impressões, e,
dotada de um talento singular para o discurso literário, conduz a expectativa
do leitor na formação da imagem mental da personagem Lúcia, logo no prólogo
do romance:
Lucíola
é o lampiro noturno que brilha de uma luz tão viva no seio da treva e à beira
dos charcos. Não será a imagem verdadeira da mulher que no abismo da perdição
conserva a pureza d'alma? A sua história não tem pretensões a vestal. É musa
cristã: vai trilhando o pó com os olhos no céu. Podem as urzes do caminho
dilacerar-lhe a roupagem: veste-a a virtude.
O
discurso amoroso de Lúcia não é o da cortesã, mas o da mulher casta em que
se transformou, durante seu processo de conhecimento, ao apaixonar-se por Paulo.
Incapaz de conviver com as contradições de sua condição de cortesã, aceita
a punição da rígida ordem social que não reconhece a possibilidade de
arrependimento - uma vez que, nesse romance, a mulher prostituída revelava-se
em toda sua baixeza. A intenção moralizadora da obra expressa-se através de
longo processo de expiação, planejado pela protagonista, que se estende em um
presente contínuo povoado por sombras do passado. É o que confidencia o
narrador-personagem Paulo:
Nunca
mais admirei essa mimosa criatura no esplendor da sua beleza. A cortesã que se
despira friamente aos olhos de um desconhecido, em plena luz do dia ou na
brilhante claridade de um salão, não se entregava mais senão coberta de seus
ligeiros véus: não havia súplicas, nem rogos que os fizessem cair. (p.
73).
Alencar
empresta à personagem feminina uma grande variedade de temas na configuração
de suas histórias, ora ligadas à vida cotidiana, como é o caso de Lucíola,
Senhora e Diva, ora ainda mescladas com lances impossíveis, quase
fantásticos3. Como nos contos de fadas, os heróis desses romances
deveriam submeter-se a rigorosas provas, transpondo graus de dificuldade sempre
crescentes, que os qualificassem para o prêmio final - a conquista definitiva
da mulher amada.
A
recorrência a elementos mágicos presentes nas lendas infantis, não sendo
apresentados mais como um pó mágico ou uma varinha de condão, surge através
de uma estratégia usada por Alencar que confere magia às práticas do mundo
vivido. Dessa forma, o beijo devolve a energia perdida, revelando-se como
sinônimo de vida: em Cinco Minutos, a protagonista Carlota que se
encontra à beira da morte vitimada por uma tuberculose, cura-se imediatamente
após seu primeiro beijo de amor; em O Guarani, a personagem Isabel,
prima/irmã de Ceci, apaixonada, em segredo, por D.Álvaro, consegue ressuscitá-lo
com um
beijo
depois que o cavalheiro é violentamente agredido pelos índios aimorés; a
personagem Alice de O Tronco do Ipê, após ter-se afogado na lagoa do
Boqueirão e já estar sendo velada por toda a família, consegue reviver quando
Mário pratica a respiração boca a boca; em
A Viuvinha,
quando Carolina
e Jorge se
reencontram, depois de um longo período de afastamento em que ele tenta
reconstruir seus alicerces econômicos, éticos e morais, mediante a prática de
um trabalho digno, o narrador elabora o desfecho amoroso com o seguinte
discurso:
"Um
beijo cortou a palavra nos lábios de Carolina. Momentos depois duas sombras
resvalaram por entre as moitas do jardim e perderam-se no interior da casa. Tudo
entrou de novo no silêncio". (p. 128).
São
exemplos que ratificam o poder da cura pela força do amor e que fazem rememorar
narrativas em que o Bem sempre vencia o Mal e um príncipe acordava A Bela
Adormecida de um sono secular com um apaixonado beijo. E é com essa energia
e esse poder de cura sobre todos os males - até sobre a própria morte - que
Alencar faz a apologia do amor:
Mas
o amor não compreende esses cálculos e esses raciocínios próprios da
fraqueza humana; criado com uma partícula do fogo divino, ele eleva o homem
acima da terra, desprende-o da argila que o envolve, e dá-lhe forças para
dominar todos os obstáculos, para querer o impossível. (Cinco Minutos,
p. 41).
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3As
seqüências narrativas são, quase sempre, lineares, numa proposta aproximada
ao modelo sistematizado, posteriormente, por Wladimir Propp (Morfologia do
conto, s/d), no que se relaciona às seqüências das funções: apresentação
da situação inicial, afastamento do herói, interdições, transgressões,
surgimento do falso herói, lutas e provas, elemento mágico, reconhecimento do
herói, punição do agressor e, geralmente, um final feliz e concessivo: a
conciliação - podendo evoluir para o casamento do par amoroso.
Alguns
exemplos de motivos narrativos, a partir de lendas e histórias infantis, estão
presentes também em outros romances de José de Alencar: em Til, a
personagem Berta, Sinhá ou Til é uma menina enjeitada, criada na fazenda de Luís
Galvão, no interior de São Paulo. Toda a narrativa gira em torno dessa mocinha
- bonita, bondosa e querida por todos - com forte ascendência sobre as demais
personagens, até mesmo sobre aquelas que representam a face sinistra da
fazenda, como Jão Fera. Berta
e Jão retomam a lenda de A Bela e a Fera, confronto contínuo de duas
personalidades com caracteres totalmente opostos. Como no mito, a bondade, a força
de caráter e a pureza conseguem acalmar e humanizar o elemento horrendo e
desprezível do universo romanesco. Em A Pata da Gazela, Alencar envolve
a personagem Horácio em uma investigação muito singular: achar a dona de uma
graciosa botina encontrada na rua do Ouvidor. Explorando o tema do "fetiche
do pé", Alencar alude, mais uma vez, às lendas infantis, no caso, a Cinderela
ou A Gata Borralheira, em que um lindo sapatinho de cristal é colocado
sobre uma almofada de veludo vermelho, passando a ser venerado pelo rapaz,
encadeando, assim, as articulações da trama amorosa. Destacamos a seguir
alguns deliciosos trechos em que Alencar - entremeando pensamentos de Horácio -
destila ironia e humor, diante de uma inusitada situação que beira o ridículo:
O
pé revela o caráter, a raça e a educação. Cada uma das
feições e dos gestos desse órgão de nossa vontade tem uma expressão
eloqüente. Há quem não adivinhe em um pé delicado e nervoso a alma de fina têmpora?
Ao contrário, um pé chato e pesado é a prova infalível de um gênio tardo e
pachorrento. (Pata da Gazela, p. 98)
Recolhendo,
Horácio acendia duas velas transparentes e colocava-se a um e outro lado da
almofada de veludo escarlate, sobre uma mesinha de charão, embutida de madrepérolas.
Tirava de um elegante cofre de platina a mimosa botina, e com respeitosa
delicadeza deitava-a sobre a almofada, de modo que se visse perfeitamente a
graciosa forma do pé que habitara aquele ninho de amor. (A Pata da Gazela,
p. 32)
Um
pé?... Não; um mimo, uma maravilha, um tesouro, um céu! É o pudor da
violeta, que se esconde na sombra; é o pudor da pérola, oculta na concha; é o
pudor do diamante, sumido no seio da terra; é o pudor da estrela, imergindo-se
no azul.
O
leão desceu as escadas murmurando:
-Vê-lo
e morrer. (Idem: p. 35)
Senhor!
Por que em vez de homem não me fizeste estribo de um carro! Teria a felicidade
de ser pisado por aquele pezinho. (Idem: p. 36).
Depois
de consumir horas em suas indagações, ia contemplar a botina, com o olhar
rastejando para descobrir, por baixo da orla do vestido, o ignoto deus de suas
adorações. Não dançava para observar melhor o arregaçado dos vestidos. (p.
31).
Com
esses exemplos, Alencar critica a ociosidade e a superficialidade da vida
mundana - o mundo da "exterioridade" - o valor conferido às aparências
e ao dinheiro. No romance A Pata da Gazela, Horácio faz contraponto com
Leopoldo, outro pretendente de Amélia, formando contraste de personalidade, caráter
e maneira de encarar o amor. O que sentia Horácio "era apenas o culto da
forma, o fanatismo do prazer" (p. 18), enquanto para Leopoldo "o amor
é um magnetismo; eu acredito que o magnetismo se resume nele; que a lei da atração
não é senão a lei da simpatia. (...) Ela é minha luz, não sei a cor e a
forma que tem, mas sei que cintila, que me deslumbra" (p. 24). E
acrescenta: "Mas para mim é indiferente que tenha o cabelo castanho; podia
tê-lo negro como a treva. Eu a amo, amo a sua alma, sua essência pura e
imaculada" (p. 28). Alencar retorna ao tema das formas diferentes de
amor, enfatizando que o amor verdadeiro se concentra numa afinidade de almas,
núcleo da essência amorosa, enquanto que outras formas de amor cedo se esgotam
e não transcendem em direção ao sublime. É o que constatamos ainda em
relação à banalização dos sentimentos em Horácio: "Amar era um
entretenimento do espírito, como passear a cavalo, freqüentar o teatro, jogar
uma partida de bilhar" (p. 19).
Em
suas estratégias discursivas, Alencar elabora um raro trabalho de visualização
artística, compondo uma atmosfera de cores, formas e brilhos. Seu senso
visual, essencialmente descritivo, constrói, freqüentemente, imagens sintéticas
de um belo expressionismo:
"Não
me posso agora recordar as minúcias do traje de Lúcia naquela noite. O que
ainda vejo neste momento, se fecho os olhos, são as nuvens brancas e nítidas
que se frocavam graciosamente, aflando com o lento movimento de seu leque: o
mesmo leque de penas que eu apanhara, e que de longe parecia uma grande
borboleta rubra pairando no cálice das magnólias. O rosto suave e harmonioso,
o colo e as espáduas nuas, nadavam como cisnes naquele mar de leite, que
ondeava sob formas divinas". (Lucíola, p. 28).
As
descrições das cenas por vezes acentuam as intenções utópicas do escritor -
a exemplo dos romances de temática indianista - e conotam a riqueza das formações
imaginárias e do poder de transfiguração empreendidos por Alencar, no sentido
de colorir o real com as tintas da sua imaginação4. O
romantismo desencadeou nos escritores esse modismo descritivo que procurava
apontar minúcias e pormenores expressivos na configuração dos ambientes, dos
trajes - especialmente os femininos - e da vida em sociedade, de modo geral.
Entretanto, nenhum escritor brasileiro daquela época excedeu José de Alencar
em sensibilidade expressiva, uma vez que a seleção desses detalhes implica na
revelação de importantes indícios do mundo interior das personagens e da
dramaticidade do momento vivido.
Com
relação a seus romances urbanos, Alencar desenvolve, com mais intensidade, a
imaginação formal (segundo conceito de Bachelard), pois percebemos claramente
a hegemonia da visão sobre os outros sentidos, na busca de captar a
expressividade estética dos detalhes que constituem o espetáculo da vida
mundana. A poesia de sua linguagem
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4Sobre
esse aspecto, Elias (2001) observa que o surgimento e o desaparecimento de
movimentos românticos expressam, de certa maneira, o anseio pela libertação
das coerções - através de uma utopia ou de uma ilusão. Daí ser possível
que determinadas estruturas sociais e situações específicas de grupos humanos
favoreçam o surgimento de movimentos e ideais que prometam aos homens a libertação
de suas coerções - às vezes das coerções civilizadoras e dominadoras ao
mesmo tempo - em direção a uma vida social menos complexa e mais pura.
permitiu-lhe
adaptar-se a uma longa escala de assuntos e ambientes - do mato ao salão
elegante, da Colônia aos seus dias: a eloqüência de muitas de suas
personagens provém menos de sua capacidade de análise que de certos toques
estilísticos revelados por meio da roupa, da voz e dos detalhes de ambiente,
influência possível de suas leituras de Balzac.
Antonio
Candido (1959) chama a atenção para a propriedade dos vestidos das moças
alencarianas: os de Lúcia (Lucíola), por exemplo, desde o discreto, de
sarja gris, com que aparece na festa da Igreja da Glória, até a chama de sedas
vermelhas com que se envolve em momento de desesperada resolução; a
personalidade terna e reta de Guida (Sonhos D'Ouro) transparece nas
cassas brancas do roupão de montaria com que galopa pela Tijuca; em Senhora,
Aurélia veste um peignoir de veludo verde, em momento de grande tensão
dramática que antecede a conciliação final do par amoroso.
Um amor tão completo como o
pretendido por Alencar totaliza-se na relação eu versus outro,
complementada por uma natureza idílica, edênica, igualmente divina,
obrigatoriamente longe da civilização: "Pensava como seria feliz vivendo
com ela em algum canto isolado, onde pudéssemos abrigar o nosso amor em um
leito de flores e de relva". (Cinco Minutos, p. 28). Em outra
passagem do mesmo romance: "Fazia na imaginação um idílio encantador, e
sentia-me tão feliz que não trocaria a minha cabana pelo mais rico palácio
da terra". (Idem, p. 28).
Depois
de encontrar o par ideal, o casal deverá retirar-se da cidade em busca de um locus
amoenus - lugar paradisíaco que harmonize com a felicidade amorosa.
Nesse caso, o conceito de imaginação para Alencar não seria apenas a
“formal”, em que a visão se encanta com o espetáculo do mundo, mas,
principalmente, a “material” - aquela ligada aos quatro elementos
primordiais do universo: terra, água, fogo e ar, conceitos que Bachelard
relaciona aos ideais de leveza, liberdade, amor e vida - enfim, de plenitude. No
romance O Guarani, a exuberância e o entusiasmo com que Alencar descreve
o pequeno rio Paquequer, conferindo-lhe detalhes grandiosos e altamente
expressivos, atribuindo-lhe até características e sentimentos humanos, bem
demonstram sua intenção/missão de criar um espaço simbólico ideal, propício
ao desenvolvimento natural e saudável do povo brasileiro:
É
o Paquequer; saltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma serpente,
vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rola
majestosamente em seu vasto leito.
Dir-se-ia
que vassalo e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e
sobranceiro contra os rochedos, curva-se humildemente aos pés do suserano.
Perde então a beleza selvática; suas ondas são calmas e serenas como as de um
lago, e não se revoltam contra os barcos e as canoas que resvalam sobre elas:
escravo submisso, sofre o látego do senhor.
Não
é neste lugar que ele deve ser visto; sim três ou quatro léguas acima de sua
foz, onde é livre ainda, como o filho indômito desta pátria de liberdade.
Aí,
o Paquequer lança-se rápido sobre o seu leito, e atravessa as florestas como o
tapir, espumando, deixando o pêlo esparso pelas pontas do rochedo e enchendo a
solidão com o estampido de sua carreira. De repente, falta-lhe espaço,
foge-lhe a terra; o soberbo rio recua um momento para concentrar as suas forças
e precipitar-se de um só arremesso, como o tigre sobre a presa.
Depois,
fatigado do esforço supremo, se estende sobre a terra, e adormece numa linda
bacia que a natureza formou, e onde o recebe como em um leito de noiva, sob as
cortinas de trepadeiras e flores agrestes. (p. 7).
Dentre as estratégias discursivas da narrativa alencariana, o
procedimento da metalinguagem apresenta-se, de certa forma, inovador para
a época. O narrador, sempre se dirigindo a um confidente, realiza uma auto-crítica
de suas expansões românticas e idealistas, acusando-se de ser excessivamente
sonhador. Observa-se, nesse ponto, a vigilância do crítico, cerceando os eflúvios
sentimentais do escritor, caracterizando um processo de desdobramento metalingüístico:
Perdão,
minha prima; não zombe das minhas utopias sociais; desculpe-me esta distração;
volto ao que sou - simples e fiel narrador de uma pequena história. (A
Viuvinha, p. 66).
Talvez
lhe pareça isto uma puerilidade; mas a senhora é mulher, minha prima, e deve
saber que, quando se ama como eu amava, tem-se o coração tão cheio de afeição,
que espalha uma atmosfera de sentimento em torno de nós, e inunda até os
objetos inanimados, quanto mais as criaturas, ainda irracionais, que um momento
se ligaram à nossa existência para realização de um desejo. (Cinco
Minutos, p. 44).
Essa
técnica narrativa foi aprimorada, com excelência, por Machado de Assis que
procurava estabelecer contato e formar alianças com as "amáveis
leitoras", no sentido de conseguir adesão para suas causas5. Ao
crítico severo e avesso às expansões de espírito, causava desagrado narrar
episódios sentimentais da adolescência, sem procurar contextualizar a situação
- dessa forma, ele empreende uma série de explicações e justificativas junto
a seu público leitor, no sentido de marcar um distanciamento entre os fatos
acontecidos no passado e o presente da narração. Daí, criar esse artifício
da conversa informal com sua "leitora amiga", buscando simpatia e
compreensão para suas questões, contando, assim, com uma aliada na defesa de
seus pontos de vista.
Machado
de Assis manifesta uma tendência ao estilo forense através de
"astuciosa" enunciação, em que o narrador conduz a expectativa do
leitor, de modo subliminar, para um fim desejado.
Isso não diminui a complexidade de suas narrativas: ao contrário,
como o escritor faz e desfaz continuamente caminhos sugeridos, apontando para
inúmeras direções, provoca o surgimento de brechas nos interstícios dos
espaços narrativos e gera constante ambigüidade em torno do desenvolvimento
das histórias e da elaboração dos desfechos.
Em
Alencar, entretanto, essa estratégia não se complexifica, constituindo-se em
estilo específico de narração - através da confidência - não a
uma leitora virtual mas a uma pessoa íntima a quem o narrador-personagem
devota inteira confiança. Verificamos, nesse procedimento, uma dupla
finalidade: além de procurar tornar seu depoimento mais verossímil, contando
com uma testemunha idônea, o narrador encontra um meio de expurgar seus males
e seus "fantasmas" em direção a um apazigüamento interior -
adquirindo a narrativa, por essa via, uma função catártica.
Outra
estratégia discursiva muito relevante nas narrativas alencarianas diz
respeito ao procedimento retórico do silêncio e suas implicações.
Em Alencar, trata-se de um recurso que valoriza sempre os desfechos, uma vez
que a estrutura dos romances joga com a dialética "dizer e calar",
impulsionando o leitor a avançar até o final do livro em busca de
_________________________________________________________________________
5O
processo metalingüístico em Alencar e Machado de Assis apresenta características
bem peculiares, na medida em que os dois escritores investigam e questionam
seus próprios discursos, assumindo, simultaneamente, as funções de autor e
de crítico. Como autores, narram uma história do passado – remetendo o
leitor ao tempo do enunciado - como críticos, analisam, no presente – tempo
da enunciação - a própria criação, advogando em causa própria, buscando
sempre a concordância e a simpatia do público leitor. informações
intencionalmente sonegadas - estratégia que procura enfatizar o suspense
da trama narrativa. As revelações, as confissões, as cartas explicativas,
etc., são elementos apazigüadores da tensão que antecede o final da história,
encadeando o desenlace.
O
silêncio também pode ser percebido em idéias suscitadas por suas
narrativas, como, por exemplo, "guardar silêncio" sobre as práticas
religiosas da sociedade urbana do século XIX. José de Alencar silencia sobre
esses hábitos, quando sabemos que os encontros amorosos costumavam acontecer
nas igrejas, durante o ritual da missa. Esse silêncio coloca sob suspeita a
relação do escritor com a instituição religiosa, ao omitir sua interferência
na vida das personagens urbanas. No sertão, entretanto, onde os costumes e as
tradições são mais cultivados, o escritor explicita as práticas religiosas
adotadas pelas famílias: as orações à hora da Ave-Maria e as preces nas
capelas das fazendas.
O
silêncio permeia os conflitos das tramas amorosas, uma vez que os
encontros, algumas vezes, deverão burlar a vigilância da família da moça.
A repressão sobre a conduta feminina poderá levá-la a uma vida de reclusão,
sem muita perspectiva de um futuro feliz. Alguma falta grave cometida deverá
ser severamente punida pelo pai, marido ou noivo, sem complacência. Um
exemplo dessa situação, verificamos no romance O gaúcho, em que a
infidelidade feminina condena a mulher à solidão ou à morte, uma vez que o
final nebuloso e ambíguo da história não permite ao leitor uma nítida
interpretação dos fatos. Esse poder da autoridade masculina aciona um silêncio
forjado sobre a real situação dos casais, contribuindo para a duplicidade de
atitudes na conduta amorosa, estimulando, dessa forma, um jogo bem orquestrado
de aparências.
A
partir da perspectiva foucaultiana, em que as esferas do desejo e do poder são
permeadas por um grade de interdições, existe um grande silêncio pairando
sobre os enredos de amor de José de Alencar.
A expressividade do olhar e algumas estratégias de sedução e
de comunicação - como o recurso dos lencinhos impregnados de lágrimas ou as
mensagens através de cartas e bilhetes - substituem o discurso amoroso que
silencia ante a vigilância do núcleo familiar da moça ou da própria
sociedade em geral - no caso específico de Lucíola e O Gaúcho.
Em
decorrência das aproximações efêmeras e dos constantes afastamentos das
personagens, o discurso amoroso alencariano apresenta-se entremeado de brechas
por onde circulam as insinuações, os mal-entendidos e os ciúmes que acionam
um discurso paralelo centrado em ressentimentos e desejos de vingança6.
Repletos de lacunas, esses discursos tendem à recuperação no desfecho da
história: com a revelação dos segredos e a dissipação dos mistérios
rompe-se o silêncio e estabelece-se o discurso, articulando, dinamicamente,
passado e presente, em direção a uma plena integração.
No
processo de interação verbal, o interlocutor não é um elemento passivo na
constituição do significado - daí ser a linguagem o lugar privilegiado para
a manifestação da ideologia, uma vez que retrata vozes e pontos de vista
diferentes. É no interstício entre a coisa e sua representação sígnica
que se manifesta a incompletude da linguagem, pressionada por relações
de força, de sentido, etc. Esses intervalos estabelecidos, segundo
6No
livro A ordem do discurso (1998), Foucault menciona que a atividade do discurso
oculta poderes e perigos inimagináveis, porque ela é controlada e vigiada,
sendo grande seu poder de exclusão e de interdição.
Segundo o autor, os discursos ligados à política e à sexualidade
são os mais atingidos pela grade complexa das interdições, revelando sua
estreita ligação com o desejo e o poder.
O fundamental da análise de Foucault é que saber e poder
se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um
campo de saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas relações
de poder.
as
formações discursivas e imaginárias dos interlocutores, possibilitam a
instauração da
ambigüidade,
de conseqüências ameaçadoras para o discurso amoroso alencariano.
O
autor aciona essa estratégia discursiva em seus romances, muitas vezes
provocada pelo silêncio do discurso feminino que não pode dizer tudo sem ferir
as regras de conveniência impostas pela sociedade, pela religião ou pela ética.
Exemplos são freqüentes nos
romances: em
Cinco Minutos, o
protagonista segue a amada até o final do livro, sem poder entender as razões
de seus constantes afastamentos. No caso citado, o amor revela-se mais forte que dúvidas e
incertezas desencadeadas pelo contexto - até
que a verdadeira razão
manifeste-se no desfecho, inocentando a moça, vítima de uma grave doença. Em A
Viuvinha, apesar da fuga do marido, na noite de núpcias, e da hipótese de
suicídio suscitada por sua falência financeira, Carolina nutre esperança de
que o futuro dissipará as dúvidas, com a volta do amado. Dessa maneira, a
ambigüidade que paira sobre o enredo, desfaz-se com o rompimento do silêncio e
através das explicações necessárias ao retorno do equilíbrio inicial.
Isso
acontece porque Alencar dota seus protagonistas de inabalável força moral,
mesmo diante das mais extremas situações. A ambigüidade também possibilita
cenas hilariantes em A Pata da Gazela, com a insistente procura de um
mimoso pezinho por Horácio, que perscruta continuamente o arregaçado dos
vestidos das damas, nos salões, tornando-se inoportuno e inconveniente.
Dividido entre as simpatias das primas Amélia e Laura, ele jura eterno amor àquela
que apresentar, em dado momento, maiores evidências de ser a dona de tão
precioso e desejado pé. É importante observar que, salvo em Lucíola e O
Gaúcho, as fraquezas humanas acometem os rapazes e não as moças - e,
nesse sentido, percebemos a vigilância rígida da sociedade que apresenta
oportunidades ao homem de retomar o equilíbrio de sua vida, embora sujeito a
uma dura punição, como é o caso da personagem Fernando de Senhora, mas
não concede, em hipótese alguma, redenção à mulher pelas faltas cometidas,
a exemplo de Lúcia e Catita.
A
plasticidade descritiva do estilo de José de Alencar tem-lhe rendido freqüentes
elogios da crítica. A descrição de Iracema, calcada em comparações com pássaros,
árvores, frutos, etc. - enfim, com elementos da natureza - constitui uma das
mais belas páginas poéticas da literatura brasileira. O gosto por comparações,
metáforas e sinestesias forma estratégias que valorizam a apresentação da
personagem, exaltada através do entusiasmo hiperbólico de seu criador:
Iracema,
a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna,
e mais longos que seu talhe de palmeira.O favo da jati não era doce como o seu
sorriso; nem a baunilha rescendia no bosque como seu hálito perfumado.
Mais
rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu,
onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e
nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as
primeiras águas. (p. 14)
Iracema
saiu do banho; o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou
em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas do
seu arco; e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto
agreste.A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes,
sobe aos ramos das árvores e de lá chama a virgem pelo nome; outras, remexe o
uru de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do
crautá, as agulhas da juçara, com que tece renda, e as tintas de que matiza o
algodão. (p. 14-5).
Ao
lado das comparações, Alencar também desenvolveu o gosto pelo contraste,
em suas narrativas. Na caracterização das personagens, o escritor sempre compõe
tipos contrastantes, com a intenção de conferir maior visibilidade aos seus
traços distintivos. Tanto assim é que no romance O Guarani, o capítulo
que introduz as personagens femininas, recebe o título de "Loura e
Morena". Ceci, a protagonista, é assim descrita: "Os grandes
olhos azuis, meio cerrados, às vezes se abriam languidamente como para se
embeberem de luz, e abaixavam de novo as pálpebras rosadas" (p.
30). E mais: "Os longos cabelos louros, enrolados negligentemente em
ricas tranças, descobriam a fronte alva, e caíam em volta do pescoço preso
por uma rendinha finíssima de fios de palha cor de ouro, feita com uma arte e
perfeição admirável" (p. 30). Ou ainda: "A mãozinha afilada
brincava com um ramo de acácia que se curvava carregado de flores, e ao
qual de vez em quando segurava-se para imprimir à rede uma doce oscilação.
(p. 30). Isabel, a prima,
"Era um tipo inteiramente diferente de Cecília; era o tipo brasileiro em
toda a sua graça e formosura, com o encantador contraste de languidez e malícia,
de indolência e vivacidade" (p. 32). O contraste, na formação dos
elementos caracterizadores do rosto, também é evidente: "Os olhos
grandes e negros, o rosto moreno e rosado, cabelos pretos, lábios desdenhosos,
sorriso provocador, davam a este rosto um poder de sedução irresistível".
(p. 32).
Esses
traços apresentados pelo escritor refletem poderosos indícios na decifração
das personalidades, constituindo características indeléveis, do começo ao fim
da narrativa, numa espécie de determinismo imposto pela urdidura narrativa. Em
outros livros do autor, verifica-se o mesmo procedimento: Alice de O Tronco
do Ipê representa a menina brasileira, com habilidades domésticas e
autenticidade em suas atitudes, enquanto sua prima Adélia, influenciada pela
sociedade mundana do Rio de Janeiro e seus ares franceses, não consegue
adaptar-se aos costumes da fazenda, vivendo entediada naquele pequeno mundo.
Também fisicamente são tipos contrastantes - loura e morena - embora esse
contraste, repito, funcione como iluminador de personalidades e destinos
diversos e não como rivalidade - principalmente em relação às moças que
cultivam grande amizade entre si.
Não
poderíamos deixar de citar os prólogos dos romances alencarianos, como
estratégias discursivas que singularizam seu estilo: nesses paratextos, o autor
coloca suas intenções, ressentimentos, críticas, explicações, visões de
mundo, etc. Refletem o momento por que passa o escritor, as relações com seus
pares e com o Imperador Pedro II, a vibração nacionalista através da apologia
do índio, do amor à terra ou da defesa de uma língua com traços marcadamente
brasileiros, que se afastem dos cânones portugueses, como fica evidente em
"Bênção paterna", prólogo do romance Sonhos d'Ouro.
Em
Iracema, José de Alencar, ratificando seu amor ao berço cearense,
recomenda a um amigo anônimo:
Abra
então este livrinho, que lhe chega da corte imprevisto. Percorra suas páginas
para desenfastiar o espírito das coisas graves que o trazem ocupado. Talvez me
desvaneça amor do ninho, ou se iludam as reminiscências da infância avivadas
recentemente. Se não, creio que, ao abrir o pequeno volume, sentirá uma onda
do mesmo aroma silvestre e bravio que lhe vem da várzea. Derrama-o a brisa que
perpassou os espatos da carnaúba e a ramagem das aroeiras em flor. Essa onda é
a inspiração da pátria que volve a ela, agora e sempre, como volve de contínuo
o olhar do infante para o materno semblante que lhe sorri.
O
livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu de cristalino azul,
e depois vazado no coração cheio das recordações vivazes de uma imaginação
virgem. Escrevi-o para ser lido lá, na varanda da casa rústica ou na fresca
sombra do pomar, ao doce embalo da rede, entre os múrmuros do vento que crepita
na areia ou farfalha nas palmas dos coqueiros.
Com
relação à sintaxe narrativa, José de Alencar apresenta um molde que
prevalece nos romances: o encaixe de uma seqüência narrativa dentro de outra.
Essa estratégia tem o efeito de não dizer tudo de uma vez e de seguir adiando
as soluções; dessa forma, consegue espicaçar a imaginação do leitor e
aumentar a tensão narrativa. Por isso, observamos como o autor vai entremeando
narração e descrição, narração de um episódio paralelamente à narração
de outro episódio, etc., a fim de desenvolver vários núcleos narrativos em
torno do núcleo central e, assim, abrir amplas possibilidades ao desfecho.
Em
O Guarani, por exemplo, o livro começa com a apresentação do cenário,
das personagens, da religiosidade da família, seus costumes, etc., antes de
iniciar a narração: nesse ponto, vários acontecimentos vão ser entremeados,
tais como: a devoção absoluta de Peri por Ceci - defendendo-a de todo tipo de
perigo - o amor do nobre cavalheiro Álvaro e do aventureiro Loredano por Ceci
(este com implicações no seu passado que esclarecem atitudes do presente), a
iminência de ataque dos temíveis índios aimorés ao castelo de D. Antônio de
Mariz, pai de Ceci, os planos maldosos de Loredano e seus seguidores para
saquear a casa e raptar Ceci, o amor silencioso de Isabel por Álvaro, etc. As
seqüências narrativas vão sendo conduzidas de modo que o leitor tenha uma noção
abrangente dos acontecimentos, mas nunca receba todas as informações - que só
vão sendo reveladas à medida em que os episódios as exigem. Sendo romances
centrados em ação, apenas no desfecho desvendam-se os segredos que alimentam o
suspense da história, apazigüando, por fim, os ânimos das vozes
inscritas no discurso e, conseqüentemente, dos leitores.
Ao
finalizar este capítulo, temos a certeza de aqui focalizarmos apenas uma
pequena amostra das singularidades e especificidades do discurso alencariano -
seus procedimentos e estratégias mais recorrentes - que se renovam e se
atualizam a cada leitura, tornando a tarefa do pesquisador sempre limitada e
incompleta. Outras recepções contribuirão, com outros olhares e saberes, para
enriquecer o acervo dessas estratégias discursivas, atualizando precariamente
um repertório de natureza sempre inesgotável.
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