Refletir acerca da relação entre língua falada e língua escrita é saber que a utilização de uma ou de outra modalidade está determinada pelas condições de produção do evento comunicativo e que ambas pertencem ao mesmo sistema lingüístico: no nosso caso, a língua portuguesa.

            Embora fala e escrita utilizem o mesmo sistema lingüístico, têm características próprias; algumas exclusivas de cada modalidade e outras que pertencem tanto a uma quanto à outra. O tema é bastante polêmico, e é visto sobre diferentes perspectivas.

Inicialmente, os estudiosos estabeleceram uma dicotomia entre a língua falada e a língua escrita, as diferenças mais marcantes podem ser resumidas da seguinte forma:

 

 

FALA

ESCRITA

Ø      Contextualizada

Ø      Redundante

Ø       Não-planejada

Ø      Fragmentada

Ø      Incompleta

Ø      Pouco elaborada

Ø      Predominância de frases curtas simples ou coordenadas

Ø      Transitória

Ø      Presença dos interlocutores

Ø      Dinâmica

Ø      Informal

Ø      Não normatizada

Ø      Descontextualizada

Ø      Condensada

Ø      Planejada

Ø      Não-fragmentada

Ø      Completa

Ø      Elaborada

Ø      Predominância de frases complexas, com subordinação abundante

Ø      Duradoura

Ø      Ausência do interlocutor

Ø      Estática

Ø      Formal

Ø      Normatizada

 

 

            Essas características foram estabelecidas a partir de um ideal de escrita. A língua falada era avaliada/olhada através de uma gramática elaborada para a escrita, surgindo daí uma visão preconceituosa em relação à fala. Só era considerado como “certo” o que a gramática normativa preconizava. Ora, sabemos que a gramática normativa e, conseqüentemente, a língua padrão, está a serviço do poder. E que poucos têm acesso a essa gramática, porque foi elaborada para atender a classe dominante.

 

            Gnerre (1994, p.6) afirma que

 

 A língua padrão é um sistema comunicativo ao alcance de uma parte reduzida dos integrantes de uma comunidade; é um sistema associado a um patrimônio cultural apresentado como um “corpus” definido de valores, fixados na tradição escrita.  

 

Além disso, a discussão da relação entre a fala e a escrita centrava-se apenas no código, predominando a noção de supremacia da escrita. Tanto é que nas sociedades modernas, a escrita se impôs. Para Marcuschi (2001, p.17), “(...) ela se tornou indispensável, ou seja, sua prática e a avaliação social a elevaram a um status mais alto, chegando a simbolizar educação, desenvolvimento e poder”.

Apesar da escrita ter-se tornado imprescindível nas sociedades modernas, os estudos acerca da relação entre a fala e a escrita não davam conta da interação verbal que acontece com os indivíduos em sua prática discursiva, pois não consideravam as condições de produção do evento comunicativo. Ora, são as condições de produção que determinam as formulações lingüísticas e apresentam os aspectos específicos do tipo de texto produzido.

            A partir dos anos 80, houve uma mudança de perspectiva no modo de se examinar a oralidade e a escrita, até então predominava a noção de superioridade da escrita.

Hoje, predomina a noção de que oralidade e escrita são atividades interativas, complementares. O que determina a utilização de uma ou de outra modalidade são as condições de produção e as formações discursivas em que o indivíduo está inserido.

            Mas, apesar de uma modalidade não ser superior à outra, conservam características inerentes. Na língua falada a interação acontece face a face, o planejamento é simultâneo à produção; a criação é coletiva; não há possibilidade de apagamento; torna-se difícil à consulta a outros textos; a reformulação pode ocorrer tanto pelo falante como pelo ouvinte; o acesso às reações do interlocutor é imediato, o que permite um redirecionamento do texto e o processo de criação é visível.

            Na escrita a interação acontece à distância; existe um planejamento antes da produção; a criação geralmente é individual; há possibilidade de revisão e de consulta a outros textos. Só o escritor reformula o texto, não há possibilidade de reação imediata do interlocutor, por isso o escritor elabora o texto a partir de possíveis reações do leitor. Nesse sentido, o processo de criação é ocultado, apenas o resultado aparece.

            A posição de Marcuschi (2001, p.17) é a de que

 

                                      Oralidade e escrita são práticas e usos da língua com características próprias, mas não suficientemente opostas para caracterizar dois sistemas lingüísticos nem uma dicotomia. Ambas permitem a construção de textos coesos e coerentes, ambas permitem a elaboração de raciocínios abstratos e exposições formais e informais, variações estilísticas, sociais, dialetais e assim por diante.

 

              Além disso, com o advento do computador, há a possibilidade de entrecruzamento da fala com a escrita. A noção da presença/ausência do interlocutor passa a ser relativa. Torna-se possível à utilização de uma linguagem escrita com características típicas da fala; podemos perceber, inclusive, o processo de construção do texto. Um exemplo dessa noção é a comunicação on-line (bate-papos).

            Percebemos, após essa breve explanação, duas tendências nos estudos lingüísticos quanto à noção de língua falada e língua escrita: a primeira analisa as relações entre as duas modalidades, estabelecendo diferenças de forma dicotômica; a segunda considera que as duas modalidades se integram dentro de um contínuo de práticas sociais.

            A tendência de maior tradição entre os estudiosos é a primeira; nesta, a relação entre a fala e a escrita tem como parâmetro a língua escrita, tida como a modalidade superior, adquirida sistematicamente em contextos formais e institucionais – a exemplo da Escola.

Dessa maneira, na análise o que prevalece é o código, as observações voltam-se para a imanência dos fatos lingüísticos. Foi esta tendência que deu origem ao prescritivismo da norma lingüística tida como padrão – a norma culta. A fala, tida como a modalidade inferior, adquirida de forma natural e informalmente nas relações sociais e dialógicas do dia-a-dia, passa a constituir o lugar do erro e da desordem gramatical. E a escrita constitui o lugar da norma e do uso correto da língua.

        Sendo assim, o indivíduo vai para a Escola para aprender a escrever e adquirir conhecimentos da gramática normativa, só então estará apto para usar a língua corretamente. A Escola parece esquecer que fala e escrita não constituem dois sistemas lingüísticos diferentes, mas modalidades de uso da língua diferenciadas. Fala e escrita não podem ser dissociadas, uma recebe influência da outra.

            A partir dessas considerações, pretendemos verificar a noção que os alunos, iniciantes do Curso de Letras, têm acerca da relação entre língua falada e língua escrita.

            Para tanto, aplicamos um teste de sondagem no primeiro dia de aula, contendo cinco questões que contemplavam conceitos básicos do ensino de Língua Portuguesa, dentre as quais uma que visava à relação entre língua falada e língua escrita. A pergunta feita aos alunos foi: “Há diferenças entre a língua falada e a escrita? Explicite-as”.

Analisaremos o dizer dos alunos utilizando as noções de interdiscurso e intradiscurso para compreender o que eles dizem. Orlandi (2001, p.59) define o interdiscurso como “o conjunto de dizeres já ditos e esquecidos que determinam o que dizemos, sustentando a possibilidade mesma do dizer. Para que nossas palavras tenham sentido é preciso que já tenham sentido”.

Todo dizer tem relação com essas duas noções, portanto, a formulação do sentido – o intradiscurso, está determinada pela constituição do sentido – o interdiscurso. Sendo assim, no discurso do aluno podemos perceber um outro discurso, que está na memória discursiva do aluno – o discurso da Instituição Escolar. O aluno ao formular seu discurso, o dito por ele, revela também um discurso maior que sustenta o seu.

        Verificaremos o discurso dos alunos em blocos de exemplos, separados por diferenças apresentadas. Iniciemos citando respostas em que os alunos utilizam como critério para essa diferença a obediência/desobediência às regras gramaticais:

(1)

a)      “Sim, pois falamos de ‘qualquer jeito’, mas na hora de escrever devemos tomar cuidado com as normas cultas da língua. Ex: Jamais devemos escrever do modo com que falamos com um amigo, exemplo, as girias”. (sic).

b)      “A língua escrita se processa diferente da fala, porque requer a obediência de normas e regras, ou seja, nem sempre é permitido escrever como se fala.

Ex: “Eu vou pra cidade” (fala)

       “Eu vou à cidade” (escrita)

Porém, ambas servem para comunicar-se”.

c)      “Há muita diferenças entre lingua falada e lingua escrita, pois na lingua falada nos expressamos expontâneamente, sem nos preoculpar com regras, já na lingua escrita é importante saber das regras e a forma culta da língua”. (sic)

d)      “Sim. A língua falada é bastante diferente da língua escrita, apesar de terem o mesmo sentido, o de comunicar. Na língua falada, nós explicitamos aquilo que aprendemos dentro e fora de casa, muitas vezes uma linguagem chula e sem os devidos cuidados que a nossa língua exige. Já a língua escrita, exige um cuidado muito especial, pois, ao escrever, devemos ter a habilidade de passar para o papel, aquilo que pensamos, com o dever de obedecer as normas que a língua portuguesa impõe”. (sic)

 

Nesses exemplos, percebemos, claramente, a diferenciação que os alunos fazem entre as duas modalidades. Para eles, é como se existissem duas línguas diferentes, uma que deixa o indivíduo livre para falar “(...) falamos de ‘qualquer jeito’(...)”; “(...) na lingua falada nos expressamos expontâneamente, sem nos preoculpar com regras(...)”; “(...) sem os devidos cuidados que a nossa língua exige. E outra que exige cuidado, e obediência às regras gramaticais e à forma culta da língua, como nessas passagens: “(...) devemos tomar cuidado com as normas cultas da língua”; “A língua escrita requer a obediência de normas e regras”; “Já a língua escrita, exige um cuidado muito especial”, o escritor tem “o dever de obedecer as normas que a língua portuguesa impõe”. (sic)

Visto dessa forma, a língua escrita torna-se sinônimo de norma culta.

Ocorre que apesar da escola priorizar o ensino da norma culta, e os alunos terem consciência disso, o efeito não é tão satisfatório. Percebemos isso na própria produção dos alunos, na maneira como grafam as palavras: girias, expontâneamente, preoculpar, obedecer as normas. Outra coisa que chama a atenção é o modo como os alunos se referem à modalidade falada: “(...) uma linguagem chula e sem os devidos cuidados que a nossa língua exige”. É como se a língua falada não tivesse nenhuma importância, fosse menor e não tivesse também a sua gramática.

Vale ressaltar, entretanto, que, apesar das regras da gramática normativa, há no exemplo dado uma passagem em que o aluno reconhece que em alguns momentos é possível escrever como se fala. A resposta b exemplifica bem “A língua escrita se processa diferente da fala, porque requer a obediência de normas e regras, ou seja, nem sempre é permitido escrever como se fala”. Entendemos que quando o aluno diz “nem sempre é permitido” está querendo dizer que em algumas ocasiões é possível.

Em outras respostas, ainda se mantém o critério anterior ao qual um outro é acrescido: língua falada hereditária e língua escrita adquirida.

(2)

a)      “A língua falada é passada de pai pra filho e adiquirida no meio em que se vive e a língua escrita é mais formal adiquirida no meio escolar”. (sic)

b)      “Sim, a língua escrita é bem mais rigorosa que a falada, pois exige muito mais esforço e impõe regras. A língua falada aprendemos naturalmente”. (sic)

 

Esta diferença parece ser consenso entre os estudiosos, realmente a língua falada é adquirida naturalmente, em contextos informais e nas relações dialógicas da vida cotidiana, no meio em que vive o indivíduo desde o seu nascimento. Já a escrita é adquirida sistematicamente e em contextos formais e institucionais – na escola. Esta passagem exemplifica bem a aquisição da escrita: “(...) a língua escrita é mais formal adiquirida no meio escolar”. (sic)

Dando continuidade à análise, encontramos respostas em que sobressai a distinção entre pronúncia (som) e grafia das palavras.

 

 

(3)

a)      “Sim. por ex. pronuncíamos eli, porém escrevemos ele, pronunciamos campu, porém  escrevemos campo”. (sic)

b)      “Certamente, há diferença entre a língua falada e a escrita. Enquanto que na falada o homem recorre do som da fala (linguagem oral) na escrita ele precisa e utiliza sinais chamados letras (linguagem escrita)”.

c)      “Sim. A língua falada é mais simples, se formos escrever do jeito que falamos, faremos tudo errado. Por exemplo a maioria de nós fala ‘Minina’ e não ‘Menina’ ”. (sic)

d)      “Há muitas diferenças, devido muitas pessoas saberem falar uma certa palavra, mas não sabe escreve-las. Ou então palavras pronunciadas de um jeito e escritas totalmente diferentes.”(sic)

 

Verificamos, no dizer dos alunos, que a relação apresentada entre pronúncia e escrita revela que a ortografia, ditada pela gramática normativa, é a forma certa de escrever as palavras, podemos comprovar com esta passagem “(...) se formos escrever do jeito que falamos, faremos tudo errado”. Eles têm consciência de que pensar a escrita como representação da fala traz bastante complexidade e uma superioridade da escrita em relação à fala “(...) devido muitas pessoas saberem falar uma certa palavra, mas não sabe escreve-las. Ou então palavras pronunciadas de um jeito e escritas totalmente diferentes.”(sic). Ora, do ponto de vista da própria evolução da escrita, tornou-se necessária uma formulação homogênea e unificada para padronizar a forma de se grafar as palavras, a forma de se escrever, porque senão ninguém iria compreender a língua escrita. Em outras palavras, como o sistema da escrita não é fonético, houve necessidade de uma sistematização da própria escrita. Dessa forma, o sistema lingüístico é regulamentado por um código, e ele próprio é uma língua escrita, imposta pela tradição gramatical que ditou/impôs como nós deveríamos grafar as palavras de tal forma e não de outra, mesmo que pronunciemos diferente. Além disso, a escola prioriza o ensino através de livros (língua escrita), exigindo a aprendizagem e o uso de regras rigorosas de ortografia.

 

Já estas respostas distinguem a fala e a escrita pelo grau de formalidade:

(4)

a)      “Sim. A língua falada pode ser mais informal. Ela é tão flexível que cada dia aparecem palavras novas: gírias, neologismos, etc. Já a língua escrita requer mais formalidade, todas as palavras escritas corretamente. Tudo tem que estar em seu lugar”.

b)      “A língua falada é mais informal e comunicativa e a língua escrita exige mais formalidade”.

c)      “Há diferenças, porque a língua falada é mais fácil e a língua escrita precisa de regras da gramática.

Ex: A língua falada é o cotidiano, experiências.

      A língua escrita é a linguagem da literatura, dos livros, textos, poesias, contos e Histórias”.

d)      “A fala é mais fácil, além dos recursos da língua, podemos usar gestos em determinadas situações. Outra facilidade da língua falada é que pode ser realizada em forma coloquial. Já a escrita não. Ela requer cuidados especiais totalmente formal na produção de um texto usando todos os recursos da escrita como: Ortografia, pontuação, concordância e verbos, pois na escrita é fundamental que se tenha sentido para quem está lendo.

É através da escrita que formamos um texto elaborando idéias, conceitos e temos condições de finalizar um ponto de vista”. (sic)

 

O dizer dos alunos reflete uma noção unilateral do grau de formalismo. Para eles, uma situação de formalidade só pode ocorrer na língua escrita, isso parece ser reflexo do ensino de língua em que se utiliza apenas texto escrito e em uma única variedade (a padrão). Para o aluno, é como se houvesse duas línguas: uma que se usa fora da escola, tida como inculta, informal; e outra que se usa na escola, a língua correta e formal. Ou seja, nas palavras do aluno: “A língua falada pode ser mais informal. (...) Já a língua escrita requer mais formalidade, todas as palavras escritas corretamente”. Aqui, percebemos, também a idéia de liberdade na fala e imposição de regras na escrita, quando o aluno diz que a fala “é tão flexível que cada dia aparecem palavras novas: gírias, neologismos, etc”; “(...) a língua falada é mais fácil (...)”. Já em relação à língua escrita, afirma que: “Tudo tem que estar em seu lugar”; ”(...) a língua escrita precisa de regras da gramática”.

Visto dessa maneira é a exigência de regras imposta pela gramática normativa que inibe a elaboração de textos e dificulta o aluno de se comunicar através da escrita; enquanto que a fala possibilita e liberta o aluno para a comunicação. No dizer dos alunos: “A língua falada é mais informal e comunicativa”; “A fala é mais fácil (...) pode ser realizada em forma coloquial”; “(...) a língua escrita exige mais formalidade”; “(...) Ela requer cuidados especiais totalmente formal na produção de um texto”. Percebemos, também, que, apesar da dificuldade que eles demonstram em utilizar as regras impostas pela gramática normativa, acreditam ser a escrita que possibilita e que dá condições para “finalizar um ponto de vista”, como se a língua falada também não possibilitasse.

Outra distinção feita pelos alunos é quanto à presença do interlocutor, gestos e expressão facial.

(5)

a)      “Na língua falada utilizamos pausa entoação, gestos e até frases incompleta Já língua escrita empregamos sinais de pontuação e as frases são mais completas”. (sic)

b)      “A língua falada expressa um certo tipo de emoção do que a língua escrita, que por sua vez é uma linguagem mais formal e denotativa. Por exemplo: Talvez você estivesse entendendo melhor o que eu quero dizer nessa resposta, se você estivesse falando comigo, através de gestos e expressões”.

c)      “Sim. Na linguagem falada, há a possibilidade de explicar melhor o assunto em questão, onde podemos, com mais rapidez, sitar exemplos e discutir com outros o assunto.

Na linguagem escrita, temos que reduzir a explicação, pois não há com quem discutir o assunto em questão”.(sic)

d)      “Sim. Na língua falada não há grandes preocupações em sua formulação, pois o locutor está de frente para seu ouvinte que poderá perguntar-lhe o que não houver entendido.

Já na língua escrita, precisamos obedecer regras, pois, se não houver essa preocupação, poderemos ser mal interpretados e não teremos como consertar isso”. (sic)

            Nessas respostas, a diferença mais marcante apontada pelos alunos é a presença do outro na comunicação falada, que possibilita um melhor entendimento entre falante e ouvinte, sem grandes preocupações com a formulação do texto, como neste exemplo: “(...) Na língua falada não há grandes preocupações em sua formulação, pois o locutor está de frente para seu ouvinte que poderá perguntar-lhe o que não houver entendido”. E a ausência do outro na comunicação escrita, dificultando a compreensão entre ambos. No dizer do aluno: “Na linguagem escrita, temos que reduzir a explicação, pois não há com quem discutir o assunto em questão”. Para o aluno, devido à ausência física do interlocutor na língua escrita, deve permanecer a preocupação com a obediência às regras gramaticais para que o entendimento entre autor e leitor aconteça. Este trecho exemplifica bem: “Já na língua escrita, precisamos obedecer regras, pois, se não houver essa preocupação, poderemos ser mal interpretados e não teremos como consertar isso”. Apesar dele ter consciência da ausência do leitor, enquanto presença física no momento da produção escrita, ele sabe que tem um interlocutor e se preocupa com ele. Podemos comprovar com esta passagem: “(...) poderemos ser mal interpretados e não teremos como consertar isso”.

            Outra distinção marcante, nestas respostas, é que enquanto falamos, além da presença do interlocutor, podemos utilizar recursos extralingüísticos como: pausas, gestos, entonação, expressão facial, etc., o que possibilita ainda mais a compreensão. Estas passagens das respostas dos alunos são bem características: “Na língua falada utilizamos pausa entoação, gestos e até frases incompleta (...); Talvez você estivesse entendendo melhor o que eu quero dizer nessa resposta, se você estivesse falando comigo, através de gestos e expressões”.

            Em algumas respostas, os alunos diferenciam a língua falada da língua escrita pelas características de que uma é dinâmica (variável) e a outra é estática (invariável).

(6)

 

a)      “Sim. A língua falada varia de região para região, enquanto que a escrita é uniforme seguindo o padrão gramatical”.

b)      “A língua falada é muito variada e a escrita é invariável”

c)      Sim, a língua falada varia de região para região, já a língua escrita é igual em todas as regiões”.

d)      Sim, estas diferenças ocorrem principalmente provocado por questões regionais e principalmente por problemas histórico culturais da própria língua, os quais ao longo dos tempos acostumou-se a pronunciar palavras diferentes do que é escrito”. (sic).

e)      Sim. Na língua falada geralmente ou as vezes usamos contextos bem diferentes da língua escrita, existe coisas que falamos mas não tem necessidade de se escrever, observamos bem isso de região para região é o caso de sotaques regionalistas. Na língua escrita também podemos expressar as formas de linguagem de uma região, mas não com tanto êxsito, na escrita podemos ou não nos expressar formalmente”. (sic)

 

Nestas respostas, percebemos na diferenciação que os alunos fazem entre as duas modalidades que: a língua falada é dinâmica, sujeita a mudanças e a língua escrita é uniforme, segue padrões gramaticais rígidos – o padrão gramatical.

Mais uma vez o dizer dos alunos revela o jogo da liberdade da fala contra a castração da escrita,”(...) existe coisas que falamos mas não tem necessidade de se escrever,  observamos bem isso de região para região é o caso de sotaques regionalistas”.Ora, quando os alunos dizem isso, revelam que é permitido falar de qualquer jeito dentro de cada região, mas não é permitido escrever. A escrita é a censura. É invariável, porque está presa a regras e normas impostas pela gramática normativa.

È facilmente comprovado que, apesar da liberdade que a fala permite, o indivíduo pode ser estigmatizado pelo seu modo de falar. Existe preconceito de uma região para outra. Os centros mais desenvolvidos exigem uma uniformidade no falar, comparada à exigência da escrita. Isso gera preconceito e discriminação. É uma cultura imposta por poucos a uma grande maioria. “(...) estas diferenças ocorrem principalmente provocado por questões regionais e principalmente por problemas histórico culturais da própria língua,(...)”.

Após a análise, percebemos que todas as respostas, sem exceção, relacionam-se com a primeira tendência exposta anteriormente, ou seja, estabelecem diferenças de forma dicotômicas:

 

 

FALA

ESCRITA

 

Ø      Espontânea

Ø      Hereditária

Ø      Fonética (som)

Ø       Informal 

Ø      Presença do interlocutor

Ø      Dinâmica(variável)                                    

 

 

Ø      Obediência às normas gramaticais

Ø      Adquirida

Ø      Ortográfica (grafia)

Ø      Formal

Ø      Ausência do interlocutor

Ø      Estática (Invariável)

 

 

 


Todas as diferenças formuladas pelos alunos estão permeadas por uma característica: obediência rigorosa às regras da gramática normativa. Para escrever e falar bem o indivíduo precisa dominá-las. É como se tivéssemos dois sistemas lingüísticos diferentes, duas línguas: uma correta e outra incorreta.

Essas características demonstram a superioridade da escrita em relação à fala. É como se a língua escrita fosse homogênea, uma língua pronta, sem defeitos, que todos cobiçam, mas poucos têm acesso. Enquanto que a língua falada é tratada de maneira negativa, sem importância, inferiorizada como dizem os alunos: “uma linguagem chula e sem os devidos cuidados que a nossa língua exige”.

Sabemos que o lugar de acesso a essas normas é a Escola. Se o aluno se posiciona desta forma, isso significa que a escola está privilegiando uma modalidade em detrimento da outra. Ora a escola precisa mostrar que uma modalidade não é superior à outra. O que o indivíduo faz é utilizar uma ou outra de acordo com sua necessidade comunicativa, levando em conta as condições de produção e as formações discursivas do discurso.

Os alunos desconhecem que temos diferentes graus de formalismo tanto na fala como na escrita. O que o indivíduo tem que fazer é saber adequar os registros nas diferentes situações discursivas.

Vale ressaltar que os alunos se posicionam desta forma porque estão reproduzindo o discurso da escola, veiculado através dos livros didáticos e das gramáticas. Por exemplo, quando tratam de variações lingüísticas, que podem apresentar-se tanto na modalidade escrita como na falada, o fazem apresentando-as como duas modalidades distintas: “(...) A fala e a escrita também implicam profundas diferenças na elaboração de mensagens. A tal ponto chegam essas variações, que acabam surgindo dois códigos distintos, cada qual com suas especificidades: a língua falada e a língua escrita”. (PASQUALE & ULISSES, 1998). Além disso, privilegiam a variedade padrão – língua culta. Essa concepção está presente neste trecho da gramática Português instrumental, de Dileta S. Martins e Lúbia S. Zilberknop, 1999.

 

                         Língua culta é a língua falada pelas pessoas de instrução, niveladas pela escola. Obedece à gramática da língua-padrão. É mais restrita, pois constitui privilégio e conquista cultural de um número reduzido de falantes.

 

A escola, enquanto instituição social, reprodutora de um saber não pode privilegiar apenas uma modalidade em detrimento da outra, gerando com isso preconceito e discriminação. Deve sim trabalhar tanto a fala como a escrita adequando seu uso de acordo com as necessidades do indivíduo no momento do evento comunicativo, possibilitando ao aluno competência discursiva. A escola deve tratar fala e escrita, não de forma dicotômica, mas deixar claro que elas se influenciam mutuamente, que a questão não é a noção do que está certo ou errado, mas a adequação dessas formas nas diferentes situações comunicativas.

 

 

REFERÊNCIAS

 

FÁVERO, Leonor Lopes et ali. Oralidade e escrita: perspectiva para o ensino de língua materna. São Paulo: Cortez, 1999.

GALLO, Solange Leda. Discurso da escrita e ensino. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995.

GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

MARCUSCHI, Luiz Antonio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.

MARTINS, Dileta S. & ZILBERKNOP, Lúbia S. Português instrumental. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e texto: formação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2001.

PASQUALE & ULISSES. Gramática da língua portuguesa. São Paulo: Scipione, 1998.