Este trabalho, que não descarta um enfoque da sociologia cultural, utiliza os recursos da poética, da lingüística e da semiótica, através de uma hermenêutica que destaca elementos sócio-culturais e históricos, na apreensão da visão de mundo do autor, João Cabral de Melo Neto. O poema estudado, Morte e vida severina, traduz poeticamente o universo pernambucano. É um poema dramático, que se caracteriza como poesia social, na qual a fusão de tons e ritmos da poesia popular se casa com a densidade estrutural e metafórica da poesia erudita. João Cabral de Melo Neto dizia não acreditar em inspiração. O fato poético, para ele, decorria do trabalho com a linguagem, tarefa que começa da seleção das palavras e a sua disposição na frase, incluindo aspectos sonoro, semântico e morfossintático.

Este poeta, senhor do seu mister, tem no título do poema signos que remetem a significados plurissignificativos. Morte e vida, desvinculado de um conteúdo antitético, estabelece uma completude, morte significando em função de vida e vice-versa, ao mesmo tempo que vida prenuncia a morte, logo morte sendo compreendida e narrada no plano da vida. Morte e vida, no entanto, não tem uma representação simples de morte e/ou vida porque é morte e vida severina, sendo o determinante severina que move o interpretante , estabelecendo a semiose, carregada de densidade, história, luta, sentimento, ao mesmo tempo que implica um contexto ideológico preciso. Como diz Bakhtin/Volochinov (1988) a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial e a situação social determina que modelo, que metáfora, que forma de enunciação servirá para exprimir a fome [ou situações semelhantes] a partir das direções inflexivas da experiência, e tudo isto se adapta muito bem à realidade representada na poesia cabralina. Neste poema, título, ponto de partida, leitmotives são inumeráveis. Suhamy (1988) diz que tudo pode figurar num poema: o tempo e o espaço, o mundo real e os mundos imaginários, a vida, a morte, o amor, a beleza, a feiúra, mas também uma usina, uma vassoura, um fato policial, um fiscal de impostos e, bem entendido um racum: a poesia é um inventário sem limites. O poema Morte e vida severina: auto de natal pernambucano está dividido em tópicos, como: 1. O retirante explica ao leitor quem é e a que vai; 2. Encontra dois homens carregando um defunto numa rede, aos gritos de: “Ò irmãos das almas! Não fui eu quem matei não!; 3. O retirante tem medo de se extraviar porque seu guia, o rio Capibaribe, cortou com o verão; 4. Na casa a que o retirante chega estão cantando excelências para um defunto, enquanto um homem, do lado de fora, vai parodiando as palavras dos cantadores; 5. Cansado da viagem o retirante pensa interrompê-la por uns instantes e procurar trabalho ali onde se encontra; 6. Dirige-se à mulher da janela que depois descobre tratar-se de quem se saberá; 7. O retirante chega à Zona da Mata, que o faz pensar, outra vez, em interromper a viagem; 8. Assiste ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto as amigos que o levaram ao cemitério; 9. O retirante resolve apressar os passos para chegar logo ao Recife; 10. Chegando ao Recife, o retirante senta-se para descansar ao pé de um muro alto e caiado e ouve, sem ser notado, a conversa de dois coveiros; 11. O retirante aproxima-se de um dos cais do Capibaribe; 12. Aproxima-se do retirante o morador de um dos mocambos que existem entre o cais e a água do rio; 13. Uma mulher, da porta de onde saiu o homem, anuncia-lhe o que se verá; 14. Aparecem e se aproximam da casa do homem vizinhos, amigos, duas ciganas, etc.; 15. Começam a chegar pessoas trazendo presentes para o recém-nascido; 16. Falam as duas ciganas que haviam aparecido com os vizinhos; 17. Falam os vizinhos, amigos, pessoas que vieram com presentes, etc.; 18. O carpina fala com o retirante que esteve de fora, sem tomar parte em nada.

Esta divisão, cujos títulos prenunciam o contexto, realmente confirma que tudo pode figurar num poema e a poesia é um inventário sem limites, podendo ser tematizado assim: Cantar a vida cotidiana sem descurar a cotidianidade da vida faz que a produção poética, saindo do âmbito de infraestrutura (o mundo real) alcance a superestrutura, (o poema) fazendo explodir o funcionamento do signo, uma vez que a realidade própria da experiência (seca, miséria, fome, crime, injustiça, latinfúndio...) está interligada ao signo.

O texto enfatiza palavras fortes, tais como morte, vida, enterro, nascimento, terra, mar, sertão, litoral, criança, homem, vivo, defunto, o que, na medida do possível, pode nortear esta apresentação do poema.

Há, por exemplo, entre vida e morte uma fusão que integra os dois signos, fazendo-os ultrapassar suas próprias particularidades, encetados por outros signos, como severina e igual. Neste nível de igualdade os signos vivenciam o seu teor ideológico, o que justificando a semiose, pode ser respaldado pelo pensamento bakhtiniano: Tudo que é ideológico possui um valor ideológico (Bakhtin/Volochinov. Op. cit.).

E se somos Severinos/ iguais em tudo na vida,/ morremos de morte igual,/ mesma morte severina:/ que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia/ de fraqueza e de doença / é que a morte severina/ ataca em qualquer idade,/ e até gente não nascida.

 

O signo se expande na apreensão da cultura e a semiose, uma vez estabelecida através do interpretante, se realiza como signo, na medida em que ela (a semiose) amplia e se liga novamente com a semiose que estabelece a conexão entre os seres humanos, a natureza e os demais seres vivos (Deely, 1990), havendo um processo de identificação entre vivos/mortos, seres animados/seres inanimados, sertão/litoral, signos atuando como representação ou mesmo como encarnação material da violência, da pobreza e da degradação humana. Os signos, expandindo a consciência individual, interagem como semiose social, tendo por suporte ponte, rio, morte, quando o domínio dos signos e o domínio do ideológico coincidem, sendo mutuamente correspondentes, o signo como um fenômeno do mundo exterior (Bakhtin/Volochinov. Ibid.).

A quem estais carregando, / irmão das almas / A um defunto de nada, / (...) essa foi morte morrida / ou foi morte matada?(...) esta foi morte matada, / numa emboscada. / (...) E o que havia ele feito / irmão das almas (...) Ter uns hectares de terra, / irmão das almas / de pedra e areia lavada / que cultivar (...) – Tinha somente dez quadras/ irmão das almas / todas nos ombros da serra, / nenhuma várzea.

(...)

Essa gente do Sertão / que desce para o litoral, sem razão, / fica vivendo no meio da lama / comendo os siris que apanha; / pois bem: quando sua morte chega, temos de enterrá-lo em terra seca. / - Na verdade, seria mais rápido / e também muito mais barato / que os sacudissem de qualquer ponte / dentro do rio e da morte.

 

O nome Severino, de tão repetido, adquire significações variadas, fundadas na riqueza da imaginação criadora, o que promove a passagem do sensível para a experiência e desta para o pensamento, respaldando o que na visão de Peirce (1975) se caracteriza como primeiridade, secundidade, terceiridade. Por outro lado, repetir já é, em si, um recurso que sedimenta a significação e a abdução, procedimento pelo qual se chega a novas idéias, opera sempre com signos. No poema cabralino, tudo pode ser visto na ótica hermenêutica, pois as idéias desenvolvidas dedutivamente podem ser testadas indutivamente, remetendo para um novo ciclo. Os lingüistas concedem que o arbitrário do signo sofre algum transtorno no poético (Baudrillard, 1996). Isto não impede, no entanto, de aquilatar a importância da circularidade poemática, destacando os níveis básicos do poema. A mensagem se torna móvel e os componentes como signo, objeto, permeiam um interpretante fortalecido, para significar, permitindo uma reavaliação semiótica, na semiose prescritiva. Todo esse trabalho, que plasma a radicalidade do ato poético é (...) reduzido ao da ambigüidade, a certa flutuação das categorias lingüísticas (Baudrillard. Ibid.) para erigir a retórica do fazer poético. A retomada do já dito, funcionando como memória lingüística, tonaliza o efeito poético esperado, quando a inter-relação entre tema e significação possibilita à semiose adequar o interpretante ao nível de tensão morte em vida, vida em morte.    

Decerto a gente daqui / jamais envelhece aos trinta / nem sabe da morte em vida, / vida em morte, severina; e aquele cemitério ali, / branco na verde coluna, / decerto pouco funciona / e poucas covas aninha.

 

As imagens da morte concentram-se nas imagens da terra. Poema telúrico, que num registro mais profundo, capta o desenvolvimento de critérios objetivos da identidade regional.  É como diz Bourdieu (1998): uma nova definição de fronteiras, (...) fazer conhecer e reconhecer a região assim delimitada contra a definição dominante e desconhecida enquanto tal (...) que a ignora. O contexto narrativo que fala do que já se conhece sai do campo da memória lingüística para dar um relevo especial às imagens superpostas: povo lá de riba, rio lá de cima, caixão macio de lama, coroas de baronesa, flores de aninga, mortalha macia e líquida. A semiose no plano externo, Agreste, Caatinga e Mata, dá-se num aspecto unificador de sentido. Num plano interiorizado os elementos sígnicos provocam o próprio interpretante, estabelecendo a plurissignificação.

Mas não senti diferença / entre o Agreste e a Caatinga, / e entre a Caatinga e aqui a Mata / a diferença é a mais mínima. (...) E esse povo lá de riba / de Pernambuco, da Paraíba, / que vem buscar no Recife / poder morrer de velhice, / (...) a solução é apressar / a morte a que se decida / e pedir a este rio, / que vem também lá de cima, / que me faça aquele enterro / que o coveiro descrevia: / caixão macio de lama, / mortalha macia e líquida, / coroas de baronesa / junto com flores de aninga, /...

 

Há um corte hermenêutico, novo tipo de captar as imagens, como busca de ampliação do sentido de morte e vida, no âmbito da natureza, fisiossemiose, pois, num poema em que o domínio semiótico é o domínio do social, na produção de sentidos. A fisiossemiose estabelece o nexo antropossemiose e zoosemiose, criando o elo indissolúvel entre as três realidades, no seu embricamento com os roçados da morte, para onde tudo converge, ressaltando, na duplicidade sígnica, a impotência do plano do real.   

 (Será que a água destes poços / é toda aqui consumida / pelas roças, pelos bichos, / pelo sol com suas línguas? (...) ) Sei também tratar de gado, / entre urtigas, pastorear: gado de comer do chão / ou de comer ramas no ar / (...) Só os roçados da morte / compensam aqui cultivar, / e cultivá-los é fácil: simples questão de limpar; / não se precisa de limpar, / de adubar nem de regar; / as estiagens e as pragas / fazem-no mais prosperar; / e dão lucro imediato; / nem é preciso esperar / pela colheita: recebe-se / na mesma hora de semear.

 

Na perspectiva de uma semiótica generalizada, em que todo fato de cultura é visto como um fato de comunicação, pode-se admitir que a independência do primeiro significante, enquanto unidade cultural, só aparece e só existe em sua relação (Carontini / D. Peraya, 1979), e neste poema, especificamente, relação com a própria vida. Mas o signo é, naturalmente, plurivalente. E esta condição plurissignificativa, também fortalece o interpretante, permitindo que a dialética perceptiva se relacione  com a situação social determinada pelo tecido poético, na captação do real. Aqui o espaço é o símbolo da desintegração da esperança. Vida que apodrece no lamaçal, vida comprada a retalho, está em descompasso de ser de qualquer forma vida, sinal de que o interpretante pode designá-la como morte, encarnação da não-vida, metáfora da degenerescência, signo em oposição a si mesmo.

Seu José, mestre carpina, / que lhe pergunte permita: / Há muito no lamaçal / apodrece a sua vida? / e a vida que tem vivido / foi sempre comprada à vista? / - Severino, retirante, / sou de Nazaré da Mata, / mas tanto lá quanto aqui, / jamais me fiaram nada: / a vida de cada dia / cada dia hei de compra-la / (...) mas o que compro a retalho / é, de qualquer forma, vida. / - Seu José, mestre carpina, que diferença faria / se em vez de continuar / tomasse a melhor saída: / a de saltar, numa noite, / fora da ponte e da vida?

 

O signo tem o estatuto de algo que vale por, como algo que emana de uma nova realidade. O poema é bem isso. Há um vislumbre de mudança que, na perspectiva de Baudrillard (op. cit.), é visto como a metafísica da lingüística: este é o seu imaginário, e sua interpretação do poético é assombrada por este pressuposto. Aplicado ao poema cabralino, acrescenta-se ainda que na esteira de Peirce metafísica é a ciência da realidade e que a realidade é signo (Santaella, 1996). Daí o destaque ao signo terra, numa visão utópica, incongruente, se localizado no campo da sociologia da cultura. Sob este aspecto, percebe-se a influência da semiótica do real sobre a semiótica literária. A terra branda é macia, fácil, doce, rica por ser do litoral. Numa semiose discriminatória, a dialética sígnica como processo polarizado: terra se opondo a si mesma na sedimentação contextual.

Bem me diziam que a terra / se faz mais brande e macia / quanto mais do litoral / a viagem se aproxima / (...) ... que nesta terra / tão fácil, tão doce e rica / não é preciso trabalhar / todas as horas do dia, / os dias todos do mês / os meses todos da vida.

 

Há uma tensão dialética quando a referência se desvia do estabelecido. A vida é realmente severina. E o poeta utiliza o herói retirante como vetor de sua visão de mundo, quando se estabelece continuamente a tensão crítica e sua poesia se manifesta como contestação, no plano da desordem do mundo real. E o poético, transformado em informação, possibilita um desdobramento de semioses que, voltando continuamente aos signos, que se enriquecem com novas possibilidades, como ambigüidade, polissemia, polivalência, polifonia de sentidos, atingindo uma simultaneidade de significações.  A cova não é grande, é medida, mas assim mesmo é grande para a carne pouca, a terra que deveria ser dividida, agora é dada; o chão se abre para fechar e envolver. Os signos repetidos apontam para evoluções semióticas. A engrenagem do estilo contribui para a socialização da semiose, num amálgama consistente da própria cadeia verbal.

Não é cova grande / é cova medida, / é a terra que querias / ver dividida / (...) é uma cova grande / para tua carne pouca, / mas a terra dada / não se abre a boca / (...) – Se abre o chão e te fecha, / dando-te agora cama e coberta./ - Se abre o chão e te envolve, / como mulher com quem se dorme.

 

Não se pode negar neste poema uma busca de identidade, como marca regional, superando a oposição entre a representação e a realidade. Severino, enquanto retirante, atua como um ser social e, como o mundo social é também representação e vontade; existir socialmente é também ser percebido, aliás, percebido como distinto (Bourdieu, 1998), marca de identificação regional, representada pela fome e pela miséria, o que permite dizer com Bakhtin/Volochinov (Op. cit.): o signo e a situação social em que se inserem estão indissoluvelmente ligados. Observar braços de mar e braço de mar miséria como se o segundo, distinto do primeiro, a este se unisse para ampliar o seu significado, no desdobramento da semiose.

- Seu José, mestre carpina, / e quando ponte não há?/ quando os vazios da fome / não se tem com que cruzar? / quando este rio sem água / são grandes braços de mar? / (...) Seu José, mestre carpina, / e em que nos faz diferença / que como frieira se alastre, / ou como rio na cheia, / se acabamos naufragados / num braço de mar miséria?

 

O tema da viagem sempre esteve presente na literatura sob várias modalidades, funcionando a viagem como metáfora, freqüente e diferenciada, ela adquire várias conotações. Ianni (2000) lembra que a medida que viaja, o viajante se desenraiza, solta, liberta. (...) No curso da viagem há sempre alguma transfiguração, de tal modo que aquele que parte não é nunca o mesmo que regressa. Severino, que é a representação do pobre em busca de melhoria de vida, é uma personagem que se insere no topo da cultura da miséria. Ele não é apenas um eu em busca do outro, mas é um nós em busca dos outros. O eu poético transitando do social/épico para o universal. O seu despojamento é total e no seu caminhar reafirma seu modo de ser, observar, sentir, pensar ou imaginar (Ibid.). Pela experiência vivida o eu do retirante se coletiviza, se socializa e nele, a palavra revela-se no momento de sua expressão, como produto da interação viva das forças sociais (Bakhtin/ Volochinov, op. cit.). Nesta comunicação consigo mesmo, Severino reconhece não esperar muita coisa. Partilha o seu sentir com Vossas Senhorias, seres fictícios brotados do imaginário. Mas a busca é a defesa da vida que ele pensa em estender. O signo como retenção de vida dá sentido à viagem. Há um processo de aculturação. Severino impregna-se do que vê e do que vivencia. Ele realmente se transcende em defesa da vida. Neste contexto, a cultura da morte está centrada na situação social que determina ser a palavra adequada para exprimir a reconstrução da visão de mundo do poeta.

- Pois fui sempre lavrador, / lavrador de terra mar; / não há espécie de terra / que eu não possa cultivar / (...) – Já velei muitos defuntos, / na serra é coisa vulgar; / mas nunca aprendi as rezas, / sei somente acompanhar / (...) Nunca esperei muita coisa, / Digo a Vossas Senhorias. / o que me fez retirar / não foi a grande cobiça; / o que apenas busquei / foi defender minha vida / da tal velhice que chega / antes de se inteirar trinta; / se na serra vivi vinte, / se alcancei lá tal medida, / o que pensei, retirando / foi estende-la um pouco ainda.

 

Vernier (1977) vê o texto literário como fazendo parte do real e esta função de representação é determinada em cada época, em cada sistema social, pelas relações efetivas, variáveis, que a linguagem, por um lado, e as normas estéticas, por outro, mantêm com o conjunto da realidade social. Esta relação com o estético deve ser apreendida como uma função social específica e a linguagem funciona como modalidade de conhecimento e de transformação do real. Há no poema cabralino um trabalho sério, no sentido de apreender os elementos do estilo que forjam o plano estético, jogando com a variação rítmica, com os recursos rímicos, com a seleção de palavras, com os arranjos morfossintáticos, numa estrutura frásica compatível com a visão de mundo popular, ficando a cargo da linguagem, como a construção de que se faz o literário, o conhecimento da realidade, apontando para a sua transformação.

Todo o céu e a terra / lhe cantam louvor / e cada casa se torna / num mocambo sedutor / - Cada casebre se torna, / num mocambo modelar / (...) – E este rio de água cega / ou baça, de comer terra, / que jamais espelha o céu, / hoje enfeitou-se de estrelas.

 

O poema Morte e vida severina tem um efeito contraditório pois, desvelando um tema épico, o poeta se embrenha numa teia lírica, no que se refere à forma. Poema circular, com movimento complexo, marcado por rupturas significativas, com recorrências efetivas, frente às desigualdades sociais. É o poeta engajado numa tradição, como representação de vida, na sociologia da cultura, marca de identidade no tempo e no espaço.

Hall (1999) chama a atenção para as identidades culturais que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais (...) e que são cada vez mais comuns num mundo globalizado (...). [As pessoas] carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas, tudo funcionando como construção sígnica da realidade, apontando para semioses diversificadas.

Minha pobreza tal é / que não trago presente grande; / trago para a mãe caranguejos / pescados por estes mangues;/ mamando leite de lama / conservará nosso sangue (...) Atenção peço, senhores, / para este breve leitura:/ somos ciganas do Egito, / lemos a sorte futura / vou dizer todas as coisas / que desde já posso ver / na vida deste menino / acabado de nascer: / aprenderá a engatinhar, / por aí com aratus / aprenderá caminhar / na lama, com goiamuns, / e a correr o ensinarão, os anfíbios caranguejos, / pelo que será anfíbio / como a gente daqui mesmo. (...) Atenção peço, senhores, / também para minha leitura: / (...) Outras coisas que estou vendo / é necessário que eu diga: / não ficará a pescar / de jererê toda vida / (...) Enxergo daqui a planura / que é a vida do homem de ofício,/ bem mais sadia que os mangues, / tenha embora precipícios.

 

O poema estabelece a dialética morte/vida, ao mesmo tempo que ressalta o ritual em torno da criança nascida, ritual mediatizado por signos, símbolos e emblemas que povoam a cultura e o imaginário, como figurações de linguagem. Esta dialética atua também no plano formal pelo jogo incessante das transformações rítmicas e pelo arranjo adequado da morfologia do poema. Impossível deixar de captar o efeito das rimas em – ia, como uma epifania de uma nova realidade, pormenor revelador do domínio artístico da linguagem. A socialização de termos díspares como novo/velho, oásis/deserto, vento/calmaria enfatiza a vida, apesar da introdução de Agreste de cinza, realidade emblemática que contraria os sinais da mudança. A porta, símbolo de passagem de uma realidade para outra, se aberta, atua ainda em associações outras, quando contextualizada na semiose dialética do poema, como um todo. Mais saídas, fenômeno ideológico por excelência, dispensa qualquer tipo de dedução para aferir o teor plurissignificativo, signo de abertura para semioses diversificadas, refletindo mudanças e alterações sociais. E se o destino da palavra é o da sociedade que fala a poética cabralina se manifesta como evolução da verdade na arte (Bakhtin/Volochinov. Op. cit.), realizando-se, no plano literário, como compromisso com a vida.

De sua formosura / já venho dizer: / é um menino magro, / de muito peso não é, / mas tem o peso de homem, / de obra de ventre de mulher: / (...) De sua formosura / deixai-me que diga: / belo como o aveloz / contra o Agreste de cinza / (...) Belo porque é uma porta / abrindo-se em mais saídas. / - Belo como a última onda / que o fim do mar sempre adia. / (...) – Belo porque tem do novo / a surpresa e a alegria. / (...) – E belo porque com o novo / todo o velho contagia. / - Belo porque corrompe / com sangue novo a anemia. / - Infecciona a miséria / com vida nova e sadia. / - Com oásis, o deserto, / com ventos, a calmaria.

 

O signo deve ser esclarecido por outros signos, segundo lição de Bakhtin/ Volochinov (Ibid.). É o que se depreende do poema de João Cabral de Melo Neto. Severino faz uma pergunta ao mestre carpina, se a melhor saída não seria: A de saltar, numa noite, / fora da ponte da vida? Após o intervalo para a celebração do nascimento, o retirante ouve a resposta. O signo é contextualizado num tempo e espaço específicos, o que impede de o signo perder a sua natureza semiótica. É como se o poema, na sua produção, acenasse para esse desfecho, e a semiose de cada signo, individual, se coletivizasse, no seu processo de socialização. E tudo isso possibilita que a palavra [leia-se sempre signo] com seu tema intacto, a palavra penetrada por uma apreciação social segura e categórica, a palavra que realmente significa e é responsável por aquilo que diz (ibid.), transmigre para o plano semiótico, em desdobramentos semiósicos diversificados, numa explosão vivencial entre morte e vida.

- Severino, retirante, / deixe agora que lhe diga: / eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia / se não vale mais saltar / fora da ponte da vida; / nem conheço essa resposta / sequer mesmo que lhe diga; / é difícil defender, / só com palavras a vida, / ainda mais quando ela é / esta que vê severina; / mas se responder não pude, / a pergunta que fazia, / ela, a vida, a respondeu / com sua presença viva // E não há melhor resposta / que o espetáculo da vida: / vê-la desfiar seu fio, / que também se chama vida, / ver a fábrica que ela mesma, / teimosamente, se fabrica, / vê-la brotar como há pouco / em nova vida explodida; / mesmo quando é assim pequena / a explosão, como a ocorrida; / mesmo quando é uma explosão / como a de há pouco, franzina; / mesmo quando é a explosão / de uma vida severina.

 


 

REFERÊNCIAS

 

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SUHAMY, H. A poética. Trad. W. Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1988.

 

DEELY, J. Semiótica básica. Trad. J.C. M. Pinto. São Paulo: Ática, 1990.

 

PEIRCE, C.S. Semiótica e filosofia: textos escolhidos. Int., sel. E trad. O. S. da Mota e L. Hegenberg. São Paulo: Cultrix: EDUSP, 1975.

 

BAUDRILLARD, J. A troca simbólica e a morte. Trad. M. S. Gonçalves e A. U. Sobral. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

 

BOURDIEU, P. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. Trad. S. Miceli e outros. 2.ed. São Paulo: EDUPS, 1998.

 

CARONTINI, E. & PERAYA, D. O projeto semiótico: elementos de semiótica geral. Trad. A. D. Lima. São Paulo: Cultrix: EDUSP, 1979.

 

SANTAELLA, L. Produção de linguagem e ideologia. 2.ed. rev. e ampl. São Paulo: São Paulo: Cortez, , 1996.

 

IANNI, O. Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

 

VERNIER, F. A escrita e os textos: ensino sobre o fenômeno literário. Trad. L. M. Almeida e N. Ariztia. Lisboa: Estampa, 1977.

 

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. T. T. da Silva e G. L. Louro. 3.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.