Este trabalho se vincula aos apresentados pelos meus orientandos no Doutorado da UERJ, Lúcia Helena L. de Matos e Jorge Moutinho. São estudos que se situam na perspectiva em que venho atuando; a integração de Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura. Os trabalhos incorporam a mudança de corpus na nossa área: além da linguagem literária, a não-literária (jornalística, publicitária, letras de música, charge etc). Apresentam um viés cultural e referências sociopolíticas, partindo da premissa de que “A aula de Português é, sempre, aula de língua, de linguagem, de comunicação” (Fonseca, p. 153).
Quanto aos estudos sobre metáfora, cabe destacar que eram mais freqüentes na área de Literatura. Com a integração das disciplinas, surgiram conteúdos comuns aplicados a um corpus ampliado, do qual constituem aqui meu objeto de estudo as metáforas nas letras musicais. Valho-me de considerações de S. Ullmann, M. Cressot. E. Lopes, R. Jakobson, Lakoff/Johnson, Greimás/Courtés, W. de Castro e Aristóteles na constituição de suporte teórico.
A estrutura básica da metáfora é a comparação de um termo (A) a um outro termo (B) com base num elemento comum. Há variação terminológica na denominação desses termos:
E.
Lopes |
S.
Ullmann |
M.
Cressot |
Termo
A comparado |
teor |
objeto
evocado |
Termo
B comparante |
veículo |
objeto-referência |
Na distinção entre metáfora e metonímia, costuma-se enfatizar o caráter subjetivo da primeira e o caráter objetivo da segunda. Enquanto a metáfora se caracteriza pela similaridade, a metonímia vem marcada pela contigüidade.
Para Roman Jakobson, são duas as figuras arquitrópicas. E ele as aborda com base nos eixos paradigmático e sintagmático, respectivamente eixos de seleção e combinação.
METONÍMIA contigüidade/proximidade SINTAGMA
Símile |
|
comparação explícita (com conectivo) |
metáfora |
|
comparação implícita (sem conectivo) |
metáfora impura |
|
com dois termos da comparação |
metáfora pura |
|
com apenas um termo da comparação |
Greimas e Courtés, a respeito da metáfora, afirmam que:
Do âmbito da retórica, a metáfora designava uma das figuras (chamadas Tropos) que modificam o sentido das palavras. Atualmente, esse termo é empregado em semântica lexical ou frasal para denominar o resultado da substituição – operada sobre um fundo de equivalência semântica –, num contexto dado, de um lexema por outro.
A metáfora pura é a mais requintada de todas. Para Walter de Castro, as metáforas por substituição são denominadas “puras” por alguns lingüistas e constituem o mais alto grau a que pode chegar o processo metafórico.
A distinção entre metáfora e comparação feita por Cressot contém o mesmo espírito da anterior. Para ele, não é a brevidade que mais profundamente as distingue. Destaca a transferência de sentido, a alteração semântica existente no processo metafórico e conclui:
A comparação é a mais analítica: pormenorizada, explica. A metáfora é mais sintética: assenta numa impressão que se esforça por transmitir globalmente. Comporta, necessariamente, uma certa dose de exagero e, por aí, constitui um instrumento particularmente adequado à expressividade e à impressividade (Cressot, 1947, p. 67).
Não obstante ser ponto quase pacífico que as figuras são, na essência, duas apenas, há quem privilegie a metáfora. Aristóteles já a considerava a rainha das figuras. Ulmann afirma que a metonímia não tem a mesma originalidade e a potência expressiva da metáfora. Diz-nos – e com ele concordo – que a imensa maioria das imagens é metafórica.
Nos últimos anos, o estudo de Lakoff e Johnson, “Metáforas da vida cotidiana”, vem sendo incorporado às leituras de textos metafóricos. Ressaltam os autores que “... a metáfora é usualmente vista como uma característica restrita à linguagem, uma questão mais de palavras do que de pensamento ou ação”. Lakoff e Johnson discordam de tal visão e, após diversas pesquisas, trilhando o caminho aberto por Michael Reddy, concluem que:
Nós descobrimos, ao contrário, que a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não somente na linguagem, mas também no pensamento e na ação. Nosso sistema conceptual ordinário, em termos do qual não só pensamos mas também agimos é fundamentalmente metafórico por natureza (p. 45).
Lakoff e Johnson trabalham, então, com metáforas conceituais como “Discussão é guerra”, “Tempo é dinheiro”, entre outras. Poder-se-iam acrescentar metáforas do cotidiano que envolvem temas como “violência” e “medo”. Às vezes, o próprio termo “metáfora” aparece na imprensa ligado a tais termos. No artigo de João Trajano Sento-Sé, “A metáfora da guerra” (O Globo, 12/4/03), o autor discorda das autoridades políticas que defendem a tese de que o Rio de Janeiro e outros grandes centros vivem uma situação de guerra. Argumenta o autor que, diferentemente dos povos europeus, pouco sabemos sobre a guerra.
Na matéria “Metáfora do medo” (Jornal do Brasil, 13/6/03), o repórter Rodrigo Fonseca entrevista Ang Lee, diretor de “Hulk”, que considera o personagem s ímbolo dos Estados Unidos que “precisam domar sua força interior”, uma vez que podem esmagar qualquer coisa.
Só
dói quando eu rio
Moacyr Luz e Aldir Blanc
Só fico à vontade
na minha cidade.
Volto sempre a ela,
feito criminosa...
Doce e dolorosa,
a minha história escorre aqui.
Há quem não se importe
mas a Zona Norte
é feito cigana
lendo a minha sorte:
sempre que nos vemos
ela diz quanto eu sofri.
E Copacabana,
a linda meretriz-princesa.
Loura Mãe de Santo
com sua gargantilha acesa...
ela me ensinou pureza e pecado,
a respiração do mar revoltado...
Rio de Janeiro, favelas no coração.
Na letra de “Só dói quando eu rio”, merece destaque inicial o uso do símile com a utilização de “feito” com valor comparativo nos versos 4 (feito criminosa) e 9 (é feito cigana). A seguir, a metáfora se impõe em construções densamente poéticas.
a) No verso 16, “com sua gargantilha acesa”, Aldir Blanc remete-nos à praia de Copacabana iluminada à noite; o aspecto geográfico lembra-nos uma gargantilha;
b) No verso 14, “a linda meretriz-princesa”, ocorre uma metáfora antitética que é retomada, coesivamente, no verso 17 (“Ela me ensinou pureza e pecado”). Pode-se dizer que “meretriz” está para “pecado” assim como “princesa” está para “pureza”. A metáfora antitética, como se fosse uma regra-de-três, corresponde a um quiasmo:
meretriz |
princesa |
|
|
pureza |
pecado |
c) Além dos símiles e das metáforas, chama a atenção o jogo intertextual do título da canção com a máxima dos grandes humoristas, que fazem o chamado humor filosófico, cuja máxima é “só dói quando eu rio”. Destaca-se, ainda, o caráter polissêmico e homonímico do título, que permite associação com a “dor” da cidade do Rio de Janeiro, consubstanciada na trágica metáfora do verso 19 (“Rio de Janeiro, favelas no coração”), reveladora do miserável cotidiano carioca.
d) O uso do símile com “feito”, recurso pouco destacado nos compêndios gramaticais, fora utilizado pelo mesmo Aldir em “O bêbado e o equilibrista”, no verso “Caía a tarde feito um Viaduto”. Aparece, também, em “Tatuagem”, de C. Buarque e R. Guerra, no verso “Quero ficar no teu corpo feito tatuagem” e em “Sei lá, Mangueira”, de P. da Viola e H. B. de Carvalho, nos versos “Em Mangueira a poesia / feito um mar se alastrou”. A Música Popular Brasileira é excelente manancial para os estudos de Língua Portuguesa.
Nos trabalhos e nas aulas de Língua Portuguesa, a metáfora pode ser, então, abordada tanto lingüística como conceitualmente. Do nosso corpus musical, destacam-se, no 1º caso, os versos da canção “Duas contas”, de Garoto:
Teus olhos são duas contas pequeninas
Qual duas pedras preciosas
Que brilham mais que o luar
São eles guias do meu caminho escuro.
Há metáforas impuras nos versos 1 e 4 e símiles nos versos 2 e 3.
No 2º caso, a canção “Vai passar”, de Francis Hime e Chico Buarque, é uma metáfora para a transição do governo militar da ditadura para o governo civil, em 1985, como comprovam os versos “Vai passar nesta avenida um samba popular” (...) “Página infeliz da nossa história” (...) “Meu Deus, vem olhar/ vem ver de perto uma cidade a cantar/ a evolução da liberdade/ até o dia clarear”.
Assim o estudo de metáforas – lingüísticas ou conceituais – é mais uma ferramenta de que dispõe professores de Português para o trabalho de leitura e produção de textos, quer literários, quer não literários.
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Edições de ouro, 1969.
CASTRO, Walter de. Metáforas machadianas. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico S. A., 1978.
CRESSOT, Marcel. O estilo e suas técnicas. Lisboa: Edições 70, 1947.
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, 1979.
FONSECA, Fernanda Irene & FONSECA, Joaquim. Pragmática e ensino do português. Coimbra: Almedina, 1977.
JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo, Cultrix, 1969.
LAKOFF, George & JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. São Paulo: educ/ Mercado das Letras, 2002.
LOPES, Edward. Metáfora: da retórica à semiótica. São Paulo: Atual, 1987.
ULLMANN, Stephen. Semântica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1964.
VALENTE, André C. A linguagem nossa de cada dia. Petrópolis: Vozes, 1997.
____(org.). Aulas de português: perspectivas inovadoras. Petrópolis: Vozes, 1999.
____. “Texto pra que te quero”. IN: BASTOS, Neusa Barbosa (org.). Língua Portuguesa uma visão em mosaico. São Paulo: educ, 2002.