Na tentativa de projetar um robô com características essencialmente humanas[i], no filme “Inteligência Artificial”, os cientistas não se atêm unicamente a potencialidades como amar, procurar concretizar seus desejos, ser racional e ter respostas neurais; eles consideram que a capacidade de realizar associações metafóricas no mundo interior seja mais um traço da espécie humana. Sendo assim, indaga-se: será que a metáfora se encontra apenas no plano da linguagem, como tradicionalmente considerado?
Continuando
com a sessão de indagações, é pertinente fazer um outro questionamento que,
à primeira vista, parece um tanto contraditório: haverá algo mais real que as
metáforas? Ao respondermos baseados no conceito clássico de que a metáfora
está vinculada estritamente à literatura, naturalmente rejeitaremos a
possibilidade de ela ser de uso corrente. Contudo, a metáfora
“(...)
está infiltrada na vida cotidiana, não somente na linguagem, mas também no
pensamento e na ação. Nosso sistema conceptual ordinário, em termos do qual não
só pensamos mas também agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza”
(LAKOFF e JOHNSON, 2001).
Se prestarmos atenção ao que escutamos e falamos durante o dia, ou mesmo ao que escrevemos e lemos, perceberemos que nosso pensamento se expressa por meio de diversos fenômenos tradicionalmente denominados de uso figurativo.
Fundamentada no paradigma da Lingüística Cognitiva, surgida mais precisamente nos anos 80, na Califórnia, entendo que as metáforas e metonímias são um fenômeno da interação do sistema conceptual humano com a experiência cotidiana, cujo reflexo se dá na linguagem, e não um fenômeno exclusivamente da linguagem. Incluí as metonímias nesta investigação por comungar com a proposta de Lakoff e Johnson (op. cit., p.97), que afirmam que elas desempenham, da mesma forma que as metáforas, a função de proporcionar-nos compreensão a respeito do nosso cotidiano, estando calcadas em nossa experiência de mundo, estruturando tanto a nossa linguagem quanto os nossos pensamentos, atitudes e ações.
O que pontuarei da Lingüística Cognitiva para o desenvolvimento deste artigo diz respeito mais especificamente à identificação das metáforas e metonímias da Língua Espanhola, agrupando as expressões metafóricas às metáforas conceptuais, destacando as entidades de domínio origem e de domínio fonte e representando algumas correspondências ontológicas e epistemológicas; bem como correlacionando as expressões metonímicas às metonímias conceptuais e destacando as entidades de ponto de referência e de zona ativa. Tratarei ainda de aspectos envolvendo fatores culturais implicados na compreensão das expressões em espanhol pelos alunos falantes do português brasileiro.
Antes de conduzir este artigo à verificação do corpus em espanhol, convido-lhe, leitor, a saber o porquê da proposta deste trabalho. O fenômeno da significação foi o que me motivou a estudar “(...) a teoria da metáfora e metonímia como instrumentos de motivação da mudança significativa, aspectos estes fundamentais dentro dos princípios da Gramática Cognitiva” (CIFUENTES HONRUBIA, 2003).[ii]
Confesso-lhe, sem constrangimento, que o meu estímulo para realizar uma abordagem fundamentada na Lingüística Cognitiva se acentuou quando li a opinião da autora do texto citado a seguir. Chamou minha atenção identificar-me bem ali, dentro da leitura que fazia. Entremos no texto, afinal:
“Em
nosso ponto de vista, uma das grandes contribuições que os trabalhos dos
cognitivistas (lingüistas e psicólogos) têm trazido para a descrição
contemporânea das línguas naturais é terem deixado evidente que os processos
figurativos – a metáfora, a metonímia e a analogia – não
são desvios de linguagem (o grifo é meu), mas processos densamente
embutidos na construção da Gramática das línguas naturais” (CHIAVEGATTO,
2002).
Há vários anos, bem antes de conhecer os trabalhos de George Lakoff, Mark Johnson, Maria Cuenca, Joseph Hilferty, Cifuentes Honrubia, Emilio Rivano, estudiosos que me emprestam seus conhecimentos acerca da Lingüística Cognitiva para nortear esta investigação, eu já me preocupava com o fato de quase sempre me confundir na hora de arriscar uma expressão ou um provérbio. A proposta da Lingüística Cognitiva permite explicar os divertidos equívocos.
Já troquei “Não adianta chorar o leite derramado” por “Não adianta chorar o sangue derramado”, “Soltar os bichos” por “Liberar os animais”, “Deus escreve errado por linhas tortas”, “Não se deve meter os pés pelas pernas”, “Não seja ingrato. Não fale de boca cheia” e “Viajar é meu cano de escape”. Observemos esta última representada no quadro abaixo, em companhia da expressão “Viajar é minha válvula de escape”, corrente em língua portuguesa:
Expressão Metafórica: Viajar é minha válvula de escape. Viajar é meu cano de escape.
Metáfora Conceptual: SAIR É ALIVIAR AS PRESSÕES/TENSÕES Domínio Origem: ALIVIAR AS PRESSÕES/TENSÕES Domínio Destino: SAIR A Correspondência Ontológica destaca as relações analógicas que existem entre as partes mais relevantes de cada domínio. Conecta a ontologia aliviar as pressões/ tensões à ontologia sair. A Correspondência Epistêmica representa o conhecimento do que há de mais importante do domínio origem ao domínio destino. Domínio Origem: aliviar as pressões/tensões, deixando sair algo que está preso em um recipiente. Domínio Destino: o ato de viajar permite que alguém saia de um determinado ambiente. |
As expressões acima poderiam ser consideradas metáforas de recipiente, levando-se em conta a orientação dentro-fora: por meio da válvula de escape sai o vapor que está retido em um recipiente, por exemplo, a panela de pressão; bem como sai, pelo cano de escape, o gás que está preso no motor.
Para esquematizar e perceber a semelhança entre objetos e situações, recorremos a imagens esquemáticas que, ao longo do nosso desenvolvimento cognitivo, adquirimos de experiências sensório-motoras. Conforme Cuenca e Hilferty (1999, p.106 e 107), sem essas experiências, como por exemplo, as imagens esquemáticas, os processos conceptuais fracassariam por falta de uma base palpável na qual fundamentar-se.
Quanto à imagem esquemática ESCAPE, esta está subjacente a exemplos como o vapor da água pressurizada em uma panela de pressão saindo pela válvula que se encontra na tampa e os gases da combustão de um motor (hoje ecologicamente incorreto) saindo através do cano de escape de um veículo. Entendo que ESCAPE seja mais uma imagem esquemática que, igual a todos os esquemas, tem seu ponto central no corpo humano e na sua interação com o ambiente externo.
Embora a válvula de escape e o cano de escape sejam semanticamente diferentes, a imagem esquemática é semelhante, possibilitando-me, de uma certa maneira, em virtude da minha experiência de mundo, escolher o “cano de escape” para a expressão, uma vez que visualizava, em minha infância os canos de escape dos veículos que circulavam pelas ruas e escutava rotineiramente, sentada no banco traseiro do nosso carro, os discursos demorados e acalorados dos meus pais sobre a poluição do ar, enquanto comia o restante do lanche que havia levado para a escola. Eu vivia, então, o que Johnson e Lakoff denominaram de ‘experiencialismo’, segundo o qual o pensamento possui propriedades gestálticas e depende diretamente da experiência corporal, social e perceptual.
Na fase de aquisição do vocabulário “escape”, eu não sabia o que era uma “válvula de escape”. Ela não se encontrava nem em minha experiência corporal nem social, uma vez que, na cozinha da minha casa, havia mais preocupação em preparar prontamente as refeições na panela de pressão do que aprender e discutir os processos que levam a pressurização da água e sua conseqüente evaporação. Portanto, a válvula não poderia ser para mim o elemento da metáfora em questão, visto que, assim como os sistemas conceptuais (o pensamento), a linguagem se baseia nessas mesmas experiências.
Terminado o depoimento tão pessoal acerca da minha relação com as expressões, partamos para o que realmente se propõe esse artigo. Nos últimos anos a produção editorial dos materiais didáticos para ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras, sejam eles manuais, recursos áudio-visuais ou jogos, tem se preocupado em torná-los mais autênticos, ainda que com propósitos didáticos, levando a perceber que a língua é viva e faz parte da “vida real”.
Como docente de Língua Espanhola, recorro muitas vezes ao material didático Gente de la Calle, que possui como tema geral Documentos de la vida cotidiana. O uso que faz da linguagem coloquial e conotativa possibilita ao aluno fazer associações metafóricas e extrair, quando possível, a informação mais importante das metonímias da língua-alvo. Embora, trate-se de dois vídeos com fins didáticos, os diálogos que ali aparecem se dão entre interlocutores falantes do idioma espanhol em linguagem espontânea (entenda-se espontânea como não havendo um script a ser obedecido) e diversificada no que concerne às metáforas e metonímias, corroborando, assim, com os propósitos desta pesquisa.
A tendência natural dos alunos, em especial nos estágios iniciais de aquisição do espanhol como língua estrangeira, é a de traduzir literalmente as metáforas e metonímias usadas no português brasileiro ao idioma em construção. São momentos divertidos para todos porque às vezes, em sala de aula, surgem expressões inexistentes produzidas por eles e esse arriscar se torna interessante e satisfatório, pois faz parte do processo de aprendizagem de uma nova língua. Contudo, nessa fase intermediária entre a língua materna e a língua-alvo, ocorre o fenômeno lingüístico denominado ‘interlíngua’, ao qual o professor há de estar atento para que as expressões criadas pelos alunos não se fossilizem.
“Ulsh (1971) estabelece, por exemplo, que mais de 85% do vocabulário português tem cognatos em espanhol” (ALMEIDA FILHO, 1995). Logo, à medida que o aluno falante do português brasileiro avança em seus conhecimentos da língua castelhana, percebe que há grande semelhança lexical entre os dois idiomas e, valendo-se desta observação, emprega à deriva expressões que não existem na língua espanhola.
Ainda que as línguas castelhana e portuguesa sejam tidas como irmãs da mesma família lingüística - a das neolatinas -, não podemos afirmar que, por tal motivo, as expressões metafóricas e metonímicas sejam sempre iguais ou parecidas, embora muitas vezes coincidam. As semelhanças acontecem porque, grosso modo, os seres humanos experienciam as mesmas sensações e sentimentos. Entretanto, a história e os valores culturais de uma sociedade ativam e particularizam determinadas expressões.
E é exatamente por essas particularidades ou semelhanças que há entre os dois idiomas em questão é que se deve procurar despertar nos alunos a consciência lingüística para as expressões metafóricas e metonímicas.
Com poucos meses dedicados a esta pesquisa, ainda não possuo uma amostragem expressiva de exemplos para fazer uma análise mais detalhada das metáforas e metonímias da Língua Espanhola. Ainda que com um número reduzido de dados, procurei explorá-los ao máximo. Primeiramente, selecionei e distribuí em tabelas as metáforas e metonímias colhidas do Corpus Gente de la Calle 1 e Gente de la Calle 2 (Neus Sans, 2001), totalizando quatro metáforas conceptuais e quatro metonímias conceptuais, para em seguida especificar os aspectos teóricos da Lingüística Cognitiva.
Considerei desnecessário destacar, em tabelas, os elementos do domínio origem e do domínio destino das metáforas conceptuais, isto o fiz no decorrer do texto somente com a metáfora conceptual TEMPO É UM OBJETO DE VALOR. Tampouco reservei uma tabela para as projeções de correspondências ontológicas; procedendo como no caso anterior e tomando como modelo a mesma metáfora conceptual. O que me pareceu ser mais importante foi representar, nas tabelas, a correspondência epistêmica entre os dois domínios.
Tabela 1.
Metáforas Conceptuais 1. TEMPO É UM OBJETO DE VALOR 2. TEMPO É ESPAÇO 3. A VIDA É UM JOGO DE AZAR 4. O SIGNIFICATIVO É GRANDE
|
Expressões Metafóricas [iii] a) (...) cada minuto que pasa
es dinero. b) (...) si tenemos tiempo,
vamos a París. c) (...) dentro de dos días
empezamos a trabajar. d) (...) cuando estaba en el colegio
me ponían malas notas porque siempre estaba haciendo
monigotes, y luego, al final, me he ganado la vida haciendo
monigotes. e) Éste es nuestro guitarrista,
Chipi, gran maestro de la guitarra. f) (…) ahora todavía no está
maduro, pero mira, mira qué monstruo. Éstos son melocotones (…) |
Cada número referente ao domínio origem e ao domínio destino nas correspondências epistêmicas da tabela a seguir diz respeito às metáforas conceptuais igualmente numeradas na tabela 1.
Tabela 2
Correspondências epistêmicas das metáforas conceptuais |
|
Domínio Origem 1. Um objeto de valor não deve ser desperdiçado porque é caro 2. O conceito espacial de ‘dentro’ estabelece que um ou vários elementos se encontram reunidos no interior de um determinado local, não incluindo nenhum outro que esteja do lado de fora. 3. Ao arriscar-se em um jogo de azar, mesmo que o apostador perca, sua meta é ganhar.
4. Grande é intensificador, ressalta positiva ou negativamente a força e/ou o tamanho de algo ou alguém. |
Domínio Destino 1. O tempo não pode ser desperdiçado, portanto deve-se planejá-lo. 2. O conceito temporal de ‘dentro’ também faz referência ao que está na parte interna. Estabelece o período para que se cumpra uma ação, não incluindo nenhum outro prazo que esteja fora do que foi enunciado. 3. Ao arriscar-se na vida, mesmo que se perca, a meta é ter bom êxito. 4. Grande ressalta a importância/ significância de algo ou alguém. |
O que constitui uma metáfora não acontece no âmbito das palavras, e sim no dos conceitos. Para melhor esclarecimento das generalizações que podem comprometer a compreensão das expressões metafóricas, a Lingüística Cognitiva agrupa estas expressões em esquemas abstratos, como as metáforas conceptuais. Nos casos a) e b) da tabela 1, os elementos não estão isolados, pois pertencem à mesma metáfora conceptual (esta já estabelecida por convenção), ou seja, possuem subjacente a mesma idéia metafórica em que o TEMPO É UM OBJETO DE VALOR.
Na estrutura interna das metáforas conceptuais, projetam-se, no domínio destino (aquele que precisa ser comunicado), facetas do domínio origem, ou seja, do domínio que, segundo Chiavegatto, (2002, p.138); é a base para a representação das experiências mais abstratas.
Quando falamos sobre a metáfora conceptual O TEMPO É UM OBJETO DE VALOR, nos referimos ao domínio origem - objeto de valor – que projeta características suas no domínio destino – o tempo. De acordo com a teoria cognitivista, essa projeção de um domínio sobre outro nos faz compreender o domínio destino e raciocinar sobre este em termos da estrutura de relações conceituais do domínio origem, ou seja, entendemos e produzimos metáforas mediante analogia.
As projeções estão divididas em correspondências ontológicas e correspondências epistêmicas. As primeiras ligam subestruturas entre os dois hemisférios de domínio (origem e destino), e, para representá-las sucintamente, selecionei três analogias para exemplificação:
a. o tempo corresponde a um objeto de valor,
b. a pessoa que preza por um objeto de valor corresponde à pessoa que quer ser ágil ao realizar um empreendimento financeiro e
c. gastar um objeto de valor corresponde a esgotar o tempo que se tem.
“É a partir dessa perspectiva que se entende a grande variedade de expressões cunhadas e emergentes que responde a esta espécie de lógica de fundo” (RIVANO, 2003). [iv]
Os alunos costumam não sentir dificuldades para compreender as expressões sob enfoque porque a metáfora conceptual TEMPO É UM OBJETO DE VALOR está presente na cultura e no cotidiano do brasileiro.
Ainda sobre a metáfora conceptual, tomemos como modelo O SIGNIFICATIVO É GRANDE e o exemplo f) da tabela 1, no que tange as correspondências entre os domínios. Vejamos que apenas parte da informação é projetada, a característica de GRANDE sobre o SIGNIFICATIVO. Neste sentido, se projeta sobre o domínio destino unicamente o tamanho do pêssego (melocotón), sendo irrelevantes os demais traços de “monstro” para tal interpretação, como “ser perverso” e “assustar as criancinhas de tão feio que é”.
No que se refere às correspondências epistêmicas, elas representam o conhecimento do que há de mais importante do domínio origem ao domínio destino, já indicado na tabela 2.
Tabela 3
Metonímias Conceptuais 1. O produtor pelo produto 2. A parte pelo todo 3.
O continente pelo conteúdo 4. O lugar pelos habitantes |
Expressões
Metonímicas[v] a) Yo echo aproximadamente cuatro
tomates, un pepino… el pan también. Lo corto todo primero y luego lo
paso por la turmix. b) _Y para beber, ¿qué queréis?
_ Yo, vino con Casera. c) _Hay buen besugo hoy, ¿eh?
_Tiene buenos ojos. d) El gazpacho… es un plato
muy exquisito. e) Es una ciudad que trata muy
bien, en general, a los extranjeros. |
Tabela 4
Entidades conceptuais contíguas das metonímias |
|
Ponto de referência 1.a. Marca Turmix 1.b.
Marca Casera 2.c.
Buenos ojos 3.d.
El plato 4.e.
Ciudad |
Zona ativa 1.a. Batedeira. 1.b. Bebida. 2.c. O peixe está fresco. 3.d. O conteúdo do prato. 4.e. As pessoas que moram na cidade. |
As expressões cotidianas, sejam elas metafóricas ou metonímicas, nem sempre são compreendidas em virtude de fatores culturais ou mesmo por falta de conhecimento do interlocutor sobre as entidades em questão. As expressões metonímicas a) e b) da tabela 3 acabam sendo difíceis de serem compreendidas se não soubermos que Casera é a marca de uma bebida parecida com a soda, que os espanhóis costumam acrescentar ao vinho, e que Turmix foi uma das primeiras marcas de batedeira comercializada na Espanha.
Conforme a Lingüística Cognitiva, a metonímia “utiliza o mesmo mecanismo conceptual de projeção que a metáfora, só que tal operação é interna a um domínio conceptual” (RUIZ DE MENDOZA, 2001)[vi]. Ao passo que entendemos a metáfora via um processo de analogia, concebemos a metonímia via contigüidade, ao recorrermos a uma entidade que se refere à outra relacionada com ela, como nos exemplos 1.a) e 1.b) da tabela 3, que se agrupam na metonímia conceptual O PRODUTOR PELO PRODUTO.
Aqui temos a associação do ponto de referência (PR) à zona ativa (ZA), entidades conceitualmente contíguas pertencentes ao mesmo domínio, conforme Cuenca e Hilferty (1999, p.111). As ZAs das metonímias em questão são bebida e batedeira, que participam direta e implicitamente nas relações – a de beber e a de misturar os ingredientes, respectivamente. As entidades explícitas que correspondem aos PRs são a marca Casera, vinculada ao tipo de bebida, e a marca Turmix, vinculada à batedeira.
Quanto ao corpus em questão, os elementos culturais intervêm na compreensão de algumas expressões metafóricas, porém é possível perceber que os alunos levam mais tempo em decodificar a metonímia, uma vez que requer conhecimentos sobre a cultura espanhola. Até o momento, tenho observado que isso ocorre com mais freqüência na Metonímia Conceptual O PRODUTOR PELO PRODUTO e em expressões metonímicas que envolvem alimentos, em razão dos diferentes hábitos alimentares do brasileiro e dos produtos comercializados no Brasil.
Na expressão metonímica c) da tabela 3, temos um forte indício do que estou afirmando. Ao comentar, no mercado, que o “peixe tem bons olhos”, o cliente está querendo dizer que o peixe está fresco. Como este alimento é de grande importância na dieta dos espanhóis, a maior parte dos consumidores sabem reconhecer quando o pescado está fresco e,dependendo da experiência de mundo, o brasileiro pode entender a metonímia, visto que, mesmo que nós não usemos a expressão, os freqüentes compradores de pescado têm, como primeira reação, examinar os olhos do peixe.
Mesmo em se tratando de alimento, a metonímia “El gazpacho es un plato muy exquisito” é de fácil compreensão porque há uma correspondente no português brasileiro. Notemos que, nesse exemplo, a substituição de “sopa” por “plato” não provocou nenhum prejuízo de significado, houve apenas uma mudança de domínio cognitivo.
Dando seguimento ao tema alimentação, “Qual o brasileiro ou o francês que comeria cachorro, mesmo num restaurante chique da China? Pois o cachorro não é o melhor amigo do homem?” (DRAVET, 2003). Se, porventura, nas culturas espanhola e brasileira, houvesse a tentativa de criar expressões baseadas no costume de comer cães, possivelmente seriam improdutivas, visto que careceriam de fundamento experiencial na vida cotidiana das pessoas de tais sociedades.
Grande parte dos exemplos de metonímia aqui apresentados envolve alimentação, bebidas e eletrodomésticos utilizados no preparo de alimentos. Mas quem ensina a língua espanhola no Brasil tem ciência de o quanto esse elemento cultural desperta a atenção dos alunos, pois sabe-se que a culinária dos países de cultura hispânica em geral é famosa mundialmente por sua qualidade.
Além do próprio idioma, outros fatores culturais básicos são de interesse dos alunos: estilo de vida, festas tradicionais, costumes, relações pessoais, produção artística, organização social e urbana. Enquanto comento a respeito de aspectos culturais e sociais e narro episódios da minha experiência na Espanha, percebo que olhos se dilatam, audição se aguça, mentes passeiam por paisagens como se fossem cenas de um filme. De repente, essa magia se desfaz quando me ouvem dizer, por exemplo: “Eso de tener que levantarme temprano se me hacía cuesta arriba”, ou seja, “Esse negócio de ter que me levantar cedo era muito difícil para mim”.
É justamente nessa situação em que o professor tem que atuar no “mundo” das expressões, sejam elas metonímicas ou metafóricas, sem deixar que os alunos se desesperem por não haverem entendido o que ele disse ou, pior, percam o interesse em escutar o restante da explicação ou narração. Ao invés de prosseguir com o que estava falando, vale muito mais dar uma pausa e tentar solucionar a dúvida quanto à expressão utilizada. Com essa atitude, os alunos se sentirão mais confiantes e, quem sabe, a partir daí comecem a ativar mais produtivamente os conhecimentos retidos na memória individual em consonância com aqueles compartilhados com o outro, posto que “...a cognição emerge e é continuamente revivenciada, quando o indivíduo interage com o mundo cultural” [vii] (LAKOFF e JOHNSON, 2002).
A proposta de Lakoff e Johnson sobre as metáforas conceptuais pode auxiliar o professor de espanhol a tratar, em sala de aula, de expressões metafóricas como “se me hacía cuesta arriba”, estimulando os alunos a fazerem correspondências baseadas nas projeções da experiência concreta (domínio origem) à experiência (o domínio destino).
O domínio origem cuesta arriba (ladeira acima) é a experiência concreta que se traduz no esforço de subir uma ladeira. Esse domínio projeta, no domínio destino, a dificuldade em realizar algo como por exemplo levantar-se cedo. Obviamente que, ao ajudar na compreensão das expressões, o professor não precisaria dar uma aula sobre a teoria da Lingüística Cognitiva e seus postulados. Bastaria que trabalhasse com as questões de significado, sem a utilização da terminologia “domínio origem” e “domínio fonte”, podendo substituí-las por, por exemplo, “experiência concreta” e “abstrata”, termos mais próximos da realidade do aluno.
Do corpus analisado, exceto as expressões metonímicas “(...) lo paso por la turmix”, “(...) vino con Casera” e “Tiene Buenos ojos”, as demais expressões metonímicas e metafóricas não apresentam dificuldade em ser compreendidas, uma vez que correspondem às existentes no português brasileiro. Ainda que um brasileiro não costume dizer com admiração que uma fruta é um monstro, a expressão metafórica “(...) mira que monstruo”, referindo-se ao tamanho do pêssego, pode ser recuperada pelo aluno por intermédio do domínio origem GRANDE da metáfora conceptual O SIGINIFICATIVO É GRANDE.
O professor de Língua Espanhola, tendo, pelo menos, um bom nível entendimento a respeito dos fatores cognitivos, pragmáticos e socioculturais, pode ajudar a esclarecer de maneira satisfatória as dúvidas dos alunos a respeito das metáforas e metonímias castelhanas. Desse modo, se evitaria, em sala de aula, respostas do tipo: essa expressão da língua espanhola é assim porque, por algum motivo, os falantes passaram a usá-la. E nada mais.
Neste artigo expus alguns conceitos da Lingüística Cognitiva que dão suporte a um dos objetivos de minha pesquisa, ou seja, sugerir estratégias didático-pedagógicas no contexto de ensino-aprendizagem das metáforas e metonímias da Língua Espanhola. Um exemplo é a sugestão de ajudar aos alunos a compreenderem as expressões que sentem dificuldade, lançando mão das correspondências entre as projeções da experiência de domínio origem sobre as de domínio destino.
Como já foi mencionado, apesar do fato de que cerca de 85% das palavras em português possuem cognatos em castelhano, não podemos deduzir que, por essa aproximação, as metáforas e metonímias coincidam na maioria das vezes. Ora, se os homens experienciam sensações e sentimentos parecidos, não há nada mais natural que daí surjam expressões também parecidas ou iguais. Todavia, as culturas ativam e particularizam determinadas expressões, e o que em uma sociedade pode ser produtivo em termos de metáforas ou metonímias, em outra pode não receber destaque. Claro que expressões não coincidentes entre dois idiomas não são impossíveis de ser compreendidas, pois podem ser capturadas graças a nossa experiência de mundo.
Por fim, lembro leitor, que a abordagem sobre o assunto feita aqui foi parcial, posto que inicial. No entanto, o pouco que apresentei talvez contribua com os que têm interesse em desenvolver algum trabalho sobre metáforas e metonímias da Língua Espanhola, com base na Lingüística Cognitiva. Se isso acontecer, me sentirei gratificada pelo esforço que dediquei ao construir esse pequeno trabalho.
ALMEIDA
FILHO, J. C. P. de. Uma metodologia específica para o ensino de línguas próximas?
In: ALMEIDA FILHO, J. C. P. (Org.) Português para estrangeiros:
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CIFUENTES HONRUBIA, José Luis. Locuciones prepositivas sobre la gramaticalización preposicional en español. Alicante, Espanha: Universidad de Alicante, 2003.
CHIAVEGATTO,
Valéria C. Gramática: uma perspectiva sociocognitiva. IN: CHIAVEGATTO, Valéria
C. (org.) Pistas e travessias II. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2002. Cap.
6, p.131-212.
CUENCA, Maria Josep.; HILFERTY,
Joseph. Introducción a la lingüística cognitiva. Barcelona: Ariel,
1999.
DRAVET, Florence. Vozes do sabor. IN: ALMEIDA, Maria da Conceição (Org.) Polifônicas Idéias – por uma ciência aberta. Porto Alegre: Sulina, 2003.
LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metáforas da vida cotidiana. Trad. Mara Sophia Zanotto. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2002.
RIVANO FICHER, Emilio. Metáfora y Lingüística Cognitiva. [artigo científico]. Disponível em: <http://www.udec.cl/~prodocli/Rivano/metaf2.html>. Acesso em: 1 mar. 2003.
RUIZ DE MENDOZA IBÁÑEZ, F. J. Lingüística Cognitiva: semántica, pragmática y construcciones, 2001. Disponível em: <http://www.ucm.es/info/circulo/no8/ruiz.htm>. Acesso em: 1 de mar. 2003.
[i] Quando me refiro a características “essencialmente humanas”, não estou defendendo, em particular, nenhuma corrente. O importante da citação do filme diz respeito a um dos pilares da Lingüística Cognitiva que é a metáfora internalizada.
[ii]
“(...) la teoría de la metáfora y metonimia como instrumentos de
motivación del cambio significativo, aspectos estos fundamentales dentro de
los principios de la Gramática Cognitiva” CIFUENTES HONRUBIA, J.L. Locuciones
prepositivas sobre la gramaticalización preposicional en español.
a) (...) cada minuto que passa é dinheiro.
b) (...) se tivermos tempo, vamos a Paris.
c) (...) vamos começar a trabalhar daqui a dois dias.
d) (...) quando estava no colégio tirava nota ruim porque sempre estava rabiscando bonecos e, ¿no final?, tenho ganhado a vida rabiscando bonecos.
e) Este é o nosso violonista Chipi, grande maestro do violão.
f) (...) ainda não está maduro, mas olha, olha que monstro. Estes são pêssegos (...)
[iv] “Es desde esa perspectiva que se entiende la gran variedad de expresiones acuñadas y emergentes que responde a esta suerte de lógica de fondo” RIVANO FICHER, E. Metáfora y Lingüística Cognitiva. Disponível em <http://www.udec.cl/~prodocli/Rivano/metaf.2.html>.
a) Eu ponho aproximadamente quatro tomates, um pepino... o pão também. Primeiro corto tudo e em seguida bato na turmix.
b) E para beber, o que querem?
Eu, vinho com Casera.
c) Hoje parece que há um bom besugo, né?
Tem bons olhos.
d) O gazpacho... é um prato delicioso.
e) É uma cidade que trata muito bem, em geral, aos estrangeiros.
[vi] “utiliza el mismo mecanismo conceptual de proyección que la metáfora, sólo que dicha operación mental es interna a un dominio conceptual”. RUIZ DE MENDONZA, F.J.I. Lingüística Cognitiva: semántica, pragmática y construcciones. Disponível em: <http://www.ucm.es/info/circulo/no8/Ruiz.htm>
[vii]
Opinião de Gibbs sobre a metáfora conceptual mencionada na apresentação
da edição brasileira de Metaphors we life by. LAKOFF,
G. e JOHNSON, M.