A melancolia é um estado afetivo de difícil definição. Desde a Antigüidade
e até os dias atuais, encontramos referências ao sofrimento humano, expresso
através desse afeto, bem como a dificuldade em definir esse estado de
sentimento de maneira satisfatória. Muitas são as linhas
de pensamento elaboradas na tentativa de comportar a resposta adequada
que possa desmistificar esse “mal estar” do devir humano. Sua manifestação
tem sido objeto de estudo na
medicina, motivo de reflexão para os filósofos,
inspiração para os poetas e escritores.
A psicanálise se faz presente a essas formulações, e a partir das
teorias de Sigmund Freud novas contribuições vieram corroborar com as já
existentes, abrindo mais possibilidades de leituras sobre o afeto da melancolia
e suas manifestações.
Os variados estudos que situam ou conceituam a melancolia, a entendem
comumente como um estado de “tristeza vaga”, sem causa “bem” definida.
As tentativas de elucidar sua causa referem-na sempre a uma perda, seja esta
objetal ou ideal. A grande dificuldade, nas formulações freudianas, é que
mesmo quando esta perda é identificada, sua causa não fica elucidada. Há algo
perdido para além da perda, gerando questionamentos tais como: de que ordem então
seria esta perda? O que foi perdido além da realidade do objeto em si?
Neste ensaio, abordamos fragmentos das representações da linguagem
melancólica presentes no narrador de Machado de Assis em Memórias Póstumas
de Brás Cubas[1],
destacando a forma de expressão da linguagem melancólica atrelada à
ironia, revelada na imagem da morte, seja em sua vertente real, seja
simbólica. Partimos das elaborações freudianas, mas consideramos também
a vertente que “Lacan vai chamar de dor de existir desvelada pelos melancólicos,
ainda que própria a todo ser humano” (Quinet, 1999 p. 77).
A melancolia é um
conceito antigo, muito amplo e complexo. É parte do
existir humano desde remotas épocas. Seu registro
é encontrado desde os primórdios dos
escritos da Antigüidade. Homero descreve o sofrimento de Belerofonte, no canto
VI da Ilíada. (Kristeva, 1989:14). No texto bíblico,
o salmista também descreve nos versos dos salmos sua tristeza sem definição,
“Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro em mim?”
(Salmo 42:5; 42:11; 43:5, p. 580-581).
Independente do contexto e, da época encontramos referências ao
sofrimento humano, expresso através do afeto da melancolia, bem como a
dificuldade em definir este estado de sentimento de maneira satisfatória.
Muitas são as linhas de pensamento
elaboradas na tentativa de comportar a resposta adequada que possa desmistificar
esse “mal estar” do devir humano.
O médico grego Hipócrates
(460-377 a c.). foi o primeiro a
preocupa-se em formalizar uma definição para o termo. Ele considerou a
melancolia “como um estado de tristeza e medo de longa duração” (cf.
Ginzburg, 1999, p. 44). Enquadrou o estado da melancolia como estado patológico
conferindo-lhe um lugar na nosografia médica. A origem desta tinha relação
com a bile negra, ou melhor, com o excesso de bile negra (Melaina kole)
circulante no organismo. A teoria de Hipócrates é referente aos quatro líquidos
presentes no organismo (determinantes dos humores:
o sangue, a bile amarela, a bile negra e a fleuma). O equilíbrio entre
tais componentes determinava a vida saudável, assim como o seu desequilíbrio,
o estado patológico. Quando esse desequilíbrio ocorria com a bile negra, a
conseqüência era o surgimento do estado melancólico.
A teoria de Hipócrates teve boa sustentação e seguidores que a
aprofundaram. “Galeno, fixa a descrição e a definição da melancolia que
farão escola...” (cf. Viana, 1994, p. 32). Ao retomar a teoria hipocrática,
Galeno teorizou sobre a localização da melancolia
na organicidade do corpo e, dependendo desta
localização, estabeleceu sua forma de manifestação. “Burton... em
1621, (acrescenta) a melancolia amorosa (...) e a
melancolia religiosa, doença mais moderna”. (cf. Viana 1994, p.
32). Seguindo esta lógica de Burton
a divisão da “doença”, abre
espaço a duas possibilidades de reflexão: a melancolia pode
ser entendida afetando o corpo, sendo preocupação da ciência médica,
ou afetando a alma, sendo caso para consolo e reflexão filosófica. (cf. Viana
1994, p. 32). O saber médico,
desde sua primeira formulação com Hipócrates e seus seguidores e até os dias
atuais, tem reservado um espaço, à enigmática “doença” da melancolia.
A filosofia trouxe grandes contribuições sobre a maneira de se ver e
interpretar esta “doença”. Uma destas contribuições é
marcadamente a de Aristóteles. O pensamento de Aristóteles modifica a visão
patológica da melancolia. Conferindo-lhe um outro estatuto,
colocou-a na dualidade entre
a contemplação e a inquietação, inclusive, fator mobilizador da criação.
Júlia Kristeva faz as seguintes formulações sobre as contribuições
de Aristóteles:
Aristóteles
inova, extraindo a melancolia da patologia e situando-a na natureza, mas também
e, sobretudo, fazendo-a decorrer do calor, considerado como princípio regulador
do organismo, e da mesotes, interação controlada de energias
opostas.
[...]
Aristóteles associa exposição científica e referências míticas, ligando a
melancolia à espuma espermática e ao erotismo, e
referindo-se explicitamente a Dionísio e a Afrodite. A melancolia que
ele evoca não é uma doença do filósofo, mas sim sua própria natureza, o seu
ethos.
[...]
Com Aristóteles, a melancolia, equilibrada pelo gênio, é co-extensiva à
inquietação do homem no Ser. (Kristeva, 1989, p. 14).
Aristóteles considerou a melancolia como condição necessária à
inspiração, como excedente de sensibilidade, condição de ser do artista e do
filósofo. A visão aristotélica oferece uma certa sacralização para o estado
de melancolia.
Na idade média a escola de Salerno tem como seu principal representante
Constatinus Africanus e sua teoria prioriza a doutrina dos temperamentos,
fundamentada ainda na teoria dos humores. A melancolia é vista como resultado
das relações excedentes entre o elemento seco e frio dentro do organismo. O
melancólico era identificado como alguém avarento, medroso, desleal e de cor
terrosa.
A Idade Média é uma fase caracterizada pelo domínio do saber religioso
e por grande misticismo. A doutrina
cristã entra num choque de dualidade: condena
a melancolia e a reduz à condição de pecado e afastamento de Deus, ao mesmo
tempo em que os monges medievais a cultivavam.
De acordo com Kristeva, a
Idade Média faz um retorno ao pensamento cosmológico da Antiguidade e associa
a melancolia à influência de Saturno, planeta do espírito e do pensamento. A
influência astral de Saturno governa o humor melancólico. A teoria dos humores
associa-se à astrologia através da ciência árabe e seu principal
representante é Abû Ma Sar.
A influência de Saturno no temperamento melancólico é aprofundada nos
estudos de Panofsky e Saxl, segundo eles, Saturno lança uma influência ambígua,
“investe a alma, por um lado, com preguiça e apatia, por outro com a força
de inteligência e contemplação”
(cf. Benjamim, 1984). Essa influência só é exercida sobre pessoas extraordinários,
“divinos ou bestiais”, mais nunca comuns ou vulgares.
O mito de Cronos retrata a manifestação de Saturno como representação
de deus dos extremos. Essa concepção prolonga-se até a renascença.
No Renascimento a dualidade em torno do entendimento da melancolia
prossegue, através de uma analogia entre vulgar e sublime, corpo e alma. A obra
de Marsilius Ficinus, Da vita Tríplice,
é a obra de destaque deste período, traz como tema central o
engrandecimento da alma do melancólico, ele reúne
em sua obra o pensamento das quatro tradições anteriores, culminando no
reaparecimento da tese aristotélica da relação entre o gênio e a loucura.
(Peres, 1996, p. 23).
O movimento de Reforma da igreja opera profundas mudanças entre o
conceito de fé e a forma de externá-la,
entre a fé e a pratica da caridade. As idéias de Lutero são rígidas e
estabelece novos valores morais, dos quais, se estabelecem novas condutas e o
despertar de culpas entre o idealizar e o efetivar. Este impasse criou um
ambiente favorável para o cultivo da tristeza, para a proliferação da
melancolia. A Contra-reforma tenta corrigir esse impasse, mas o movimento
luterano se opõe mais incisivamente. Esta falta de vinculação entre a fé
(sentimento) e as obras (prática social), entre a vida terrena e o almejado
paraíso estabelece um grande vazio; estabelece uma distância entre o homem e
seu próprio ser. Como afirma Peres, “O barroco será herdeiro deste estado
d’alma melancólico: a melancolia domina o espírito do tempo, tempo de
auto-absorção, ensimesmamento, penetração em um abismo sem fundo” (Peres
1996, p. 24).
Resumindo os pensamentos dos séculos XVI, XVII e XVIII, encontramos a
grande contribuição de Michel Foucault na
obra História da loucura. Até o século XVII o tema da melancolia
esteve ainda compreendido sob o prisma da teoria dos quatro humores e suas
qualidades essenciais. A discussão vai acontecer na dualidade da transmissão
das qualidades do corpo para a alma e na análise deste conflito. Willis
descobre o ciclo mania-melancolia. Conforme Peres, “No século XVIII as análises
da doença dirigem-se cada vez mais para os dados qualitativos: tristeza, solidão,
amargura, inibição” (Peres, 1996, p. 27). Na Alemanha, Kraepelin destaca-se
em sua tentativa de separar a melancolia da loucura maníaco-depressiva.
O século XIX
é marcado pelo surgimento
da Psicanálise, Freud em sua correspondência a Wilhelm Fliess, e no texto Luto
e Melancolia[2],
apesar de reconhecer as limitações e dificuldades em conceitua-se a
melancolia, abre caminhos para uma nova perspectiva conceitual, sua teoria avança
em relação às já existentes. Freud direciona
a questão da melancolia para a relação da constituição humana frente a um
objeto que falta. Esse pressuposto freudiano conduz ao pensamento da melancolia
em relação a uma reação humana diante de suas perdas
reais ou simbólicas, objetais ou imaginárias.
No
texto Luto e Melancolia [1915],
Freud aponta a grande dificuldade em se definir a melancolia (inclusive na
psiquiatria descritiva), uma vez que ela assume várias formas clínicas de
expressão. Nesse texto, Freud estuda a natureza da melancolia traçando o seu
percurso em relação à natureza do luto, buscando as semelhanças e as diferenças
nelas existentes. Define o luto como um processo de afeto normal marcado por reações
específicas provocadas pela perda
de um objeto, tomado enquanto objeto de amor. Embora a melancolia também seja
um processo reativo, sofrido em função de uma perda objetal amorosa, este
objeto não está claramente delineado. O melancólico não sabe exatamente o
que perdeu com o objeto, ou
no objeto, mesmo quando este é
passível de identificação.
No
texto Extravios do desejo: depressão e melancolia, Antônio Quinet
retoma o estudo de Freud, no ponto em que ele situa a melancolia no quadro clínico das psicoses,
reafirmando: “Se os psicóticos, como nos diz Freud, têm o privilégio
de nos revelar aquilo que os neuróticos guardam em segredo, é sobre esta dor
que eles podem falar, e que será definida por Lacan como a dor de existir”
(Quinet, 1999, p.128).
Machado de Assis maneja com maestria, através de suas personagens, as
mais diversas vertentes da linguagem melancólica, revelando-nos a “dor de
existir” pertinente a todo ser humano. A narrativa da segunda fase de sua
escrita, além de expor, exacerba o cerne
da alma humana, sem censura e com tamanha sinceridade que lança o destino
humano num grande desamparo, apontando a “nossa melancólica humanidade”. No
texto machadiano, a linguagem da
melancolia sustenta-se e camufla-se
recorrentemente por um discurso permeado de ironias.
Massaud Moisés, em seu livro Machado de Assis: Ficção e Utopia, afirma que Machado construiu as Memórias Póstumas de Brás Cubas sobre a idéia de dualidade e paralelismo e que, essas “organizam-se dialeticamente, entre o sim e o não, a cara e a coroa, o falso e o verdadeiro, o visível e o ignoto, etc., numa permanente mutação, e não apenas porque se tratasse de um texto literário, por natureza metafórico, polissêmico”. (Moisés, 2001, p. 62).
Moisés considera que, a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas, a atenção de Machado está voltada para o que há de mais interior em suas personagens: problematizar os conflitos da alma.
Nas palavras de Moisés:
(...) o narrador faz o close-up
das personagens, visando a analisá-las de perto. Penetrar-lhe a alma e os
pensamentos, em busca, no mais recôndito da sua vida interior, da fonte dos
dramas e do seu posterior desenvolvimento, eis o seu objetivo maior. A sondagem
interior não se detém nas primeiras camadas, como de hábito no romance romântico,
segue em busca das regiões profundas, para além da consciência, onde se
escondem os conflitos mais densos. Numa palavra: sondagem no inconsciente, como
se a convite da Psicanálise (Moisés, 2001, p. 46).
Aceitando
o convite da psicanálise, começamos a observar a estrutura da narrativa de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, comparando o posicionamento do narrador
com o discurso que caracteriza a estrutura do pensamento melancólico. Passamos
a refletir sobre os elementos da estrutura do discurso. Que elementos são
relativos ao discurso melancólico, ou equivalentes à elaboração de luto?
O texto é narrado em primeira pessoa, através de reminiscências, um dos recursos discurso melancólico, que está sempre voltado ao passado e sem perspectiva futura, visto que a libido está presa ao que foi perdido. De que perda estaria um “defunto autor” a falar?
Nas palavras de Brás Cubas, sua escrita é “obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia...” (p. 97), uma melancolia que ele atrela à ironia, fino escárnio; aparentemente única maneira possível de falar do irremediável mal que avassala o saber humano: o encontro com a morte; o encontro com o inominável, posto que é impossível de ser representado. “Ao colocar que o inconsciente é regido pelo princípio de prazer Freud postula, com muita lógica, que não há representação da morte no inconsciente” (Kristeva, 1994, p.30). Nesta medida, o que existe é a resposta que é possível a cada ser humano elaborar diante deste impasse/passe certo e definitivo. O psicanalista Serge André diz que “o humano não para de querer falar daquilo que não pode dizer (a mulher, a morte, o pai, etc)” (André, 1994, p. 10).
Freud, no texto Reflexões para os tempos de guerra e morte [1915], defrontando-se com as questões da guerra e a alarmante realidade da morte, escreve sobre essa “desilusão”. Num artigo dentro desse texto chamado “Nossa atitude para com a morte”, ele afirma a dificuldade humana em enfrentar e aceitar a própria morte e a falta de representação no inconsciente para tal elaboração. Segundo ele, “A escola psicanalítica pode aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê em sua própria morte, ou, no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade” (Freud, p. 327). No mesmo texto Freud afirma também que:
A
tendência de excluir a morte de nossos projetos de vida traz em seu rastro
muitas outras renúncias e exclusões.
(...)
Constitui resultado inevitável de tudo isso que passemos a procurar no mundo da
ficção, na literatura e no teatro a compreensão pelo que se perdeu na vida.
Ali encontramos pessoas que sabem morrer – que conseguem inclusive matar alguém.
Também só ali pode ser preenchida a condição que possibilita nossa
reconciliação com a morte...
(...)
No domínio da ficção encontramos a pluralidade de vidas de que necessitamos.
Morremos com o herói com o qual nos identificamos, contudo sobreviveremos a
ele, e estamos prontos a morrer novamente, desde que com a mesma segurança, com
outro herói (Freud, p. 329).
Na ficção, Machado, através de seu personagem-narrador, oferece vias de possibilidades para falar, ou para suportar a melancolia existencial da transitória condição humana. Brás Cubas, que se intitula um “defunto autor”, parece estar recorrentemente tentando elaborar o luto da própria morte. O acesso do narrador para falar da morte é através do domínio pelo paradoxo dos jogos de pares antitéticos. Só é possível falar num jogo lúdico entre o transitório e o eterno. Para aceitar a realidade factual da própria morte, os males da vida são narrados em maior evidência, fazendo um contra ponto imaginário com as vantagens favorecidas pela nova condição de morto. Nas palavras do narrador:
(...)
A solidão pesava-me, e a vida era para mim a pior das fadigas, que é a fadiga
sem trabalho (p. 298).
(...)
Se o leitor ainda se lembra do capítulo XXIII, observará que é agora a
segunda vez que comparo a vida a um enxurro; mas também há de reparar que
desta vez acrescento-lhe um adjetivo – perpétuo (p. 228).
(...)
Senhores vivos, não há nada tão
incomensurável como o desdém dos finados (p. 147).
A
narrativa é conduzida por um discurso que privilegia uma lógica própria e
atemporal. Uma lógica que se sustenta na ambigüidade divisória dos pares
antitéticos: começo-fim;
nascimento-morte; campa-berço; vida–morte; sandice–razão; entre outros,
intercalados pela figura recorrente da ironia. A ironia dá um revestimento
enganoso ao tema da morte, que por essa via aparece numa vertente menos
avassaladora. Segundo Coutinho Jorge, “A utilização da ironia ao evitar para
seu autor a dificuldade inerente à utilização da expressão direta, produz
prazer cômico no ouvinte” (Jorge, 2000, p. 11). A narrativa atemporal confere
ao “defunto autor” um poder lúdico, um saber imaginário mítico do
destino. Confere um domínio sobre a situação da morte, sobre as demais
personagens e sobre o leitor. A citação dos sentimentos de Vigília diante da
cena da morte de Brás Cubas evidencia bem esse jogo com o uso do tempo não
cronológico. Diz o narrador:
De
pé a cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste
senhora mal podia crer na minha extinção.
-
Morto! Morto! Dizia consigo.
E
a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo
desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, a
imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até
as ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá
iremos quando eu me restituir aos primeiros anos (p. 100).
Ao anunciar a comprovação de sua morte e o sofrimento da senhora (até
então anônima), Brás Cubas faz a insinuação de que tem algo a revelar e uma
revelação antagônica àquele momento de luto. O mistério aponta um retorno
à juventude. Antecipa uma trama, cujo segredo momentâneo aguça a curiosidade
do leitor e alivia o torpor fúnebre da narrativa que se segue, qual seja a
descrição da morte orgânica.
O par antitético vida-morte
é tema
privilegiado no texto. Dentre as reminiscências da vida, a temática da
morte é destacada, tanto como fato real, em referência à morte do corpo e
seus funerais, quanto como
representação simbólica em referência a perdas, desencanto, solidão e fim.
A primeira morte real narrada é a do próprio “defunto autor”, que, desde a
dedicatória do livro, já oferece
um impacto, que convida o leitor a prosseguir ou desistir da leitura, ironizar
junto ou desviar-se da crueza de seu anúncio:
Ao
verme
que
primeiro
roeu as frias carnes
do
meu cadáver
dedico
como
saudosa lembrança
estas
memórias
póstumas
(p.
92).
O
termo morte, ou palavras que tenham o mesmo sentido ou a mesma implicação como
morrer, morto(a), morreu, morrido, mortal, morro, morresse, morre, morrem,
morria, expirar, moribundo, matar, matava, matamos, matando, fatal, enterro, cadáver,
sepulcro, sepultura, cemitério, jazigo, pêsames, féretro, mortuária,
caveira, epitáfios, entre outros, aparecem do começo ao fim do texto. No prólogo
da 4ª edição, Machado de Assis faz uma advertência:
Há
na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero,
que está longe de vir dos seus modelos. É a taça que pode ter lavores de
igual escola, mas leva outro vinho. Não digo mais para não entrar na crítica
de um defunto, que se pintou a si e aos outros, conforme lhe pareceu melhor e
mais certo. (p.96).
Na
“alma” do livro, além do sentimento amargo e áspero, há a “galhofa”,
ou o que sobra entre o par melancolia–ironia, uma tristeza permeada de gozo.
Ao relatar sua morte, o narrador circula num discurso indeciso, alternado pela
melancolia, ironia, tristeza, negação... Nos diz o narrador:
Agora,
quero morrer tranqüilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas...
(...)
Juro-lhe que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia
parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me
no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu
descia a imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e
lodo, e coisa nenhuma... (p. 100).
Se
fizermos ponto na declaração “Agora quero morrer”, encontraremos expresso
um desejo articulado ao puro gozo, pois “no inferno de gozo de tristeza
desvelado pelo melancólico, o desejo é mal-dito; banido” (Quinet, 1999. p.
11). Citando Espinosa, Quinet
questiona: “Que desejo nos resta na melancolia? O desejo de morte”.
(Quinet, 1999, p. 11).
Esse
desejo do narrador é afirmado e negado num mesmo parágrafo, numa substituição
que alterna uma afirmativa e uma negativa, recurso que dá à afirmação um
valor irônico, intensificado. Ao dizer que a experiência da morte “de
certo ponto em diante chegou a ser deliciosa”, forma um contra ponto com a
experiência da realidade, que ao mesmo tempo o reduzia a um esvaziamento,
“imobilidade física e moral”, “a pedra, e lodo, e coisa nenhuma”.
(grifo nosso).
O
termo “coisa” já é da ordem do inominável e acompanhado de “nenhuma”
é a redução extrema ao nada (ou à falta de possibilidade de nomear o
sentimento experimentado). Mesmo nas palavras de um narrador que afirma ter
chegado “ao outro lado do mistério” (p. 301), nenhuma palavra exata foi
possível dizer sobre o mistério. Nem relatando seus próprios sentimentos na
experiência com a morte nem como observador da morte de um outro. Vejamos suas
palavras diante da morte de sua mãe:
Longa
foi a agonia, longa e cruel, de uma
crueldade minuciosa, fria
repisada, que me encheu de dor e estupefação. Era a primeira vez que
via morrer alguém. Conhecia a morte de oitava; quando muito, tinha-a visto já
petrificada no rosto de algum cadáver, que acompanhei ao cemitério, ou
trazia-lhe a idéia embrulhada nas amplificações de retórica dos professores
de coisas antigas, - a morte aleivosa de César, a austera de Sócrates, a
orgulhosa de Catão. Mas esse duelo do ser e não ser, a morte em ação
dolorida, contraída, convulsa, sem aparelho político ou filosófico, a morte
de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a pude encarar. Não chorei;
tinha os olhos estúpidos, a garganta presa, a consciência boquiaberta. (...)
Confesso que tudo aquilo me pareceu obscuro, incongruente, insano... (p.145).
Nessas reflexões, percebe-se a angústia provocada em função de um não
saber dizer com precisão o que se passa na morte e para além dela. A morte
quando se manifesta ausente do aparato “político ou filosófico” ou ainda
religioso, invalida todo revestimento imaginário dogmatizado a seu respeito.
Apresenta-se na crueza da carne; desnuda
a precária relação humana com a temporalidade de sua existência, deixa a
“garganta presa”, sem palavras que a possam definir.
A
morte como condição da existência humana é estruturante, à medida que é
porque a morte é certa, que o viver é significado e re-significado muitas
vezes. Seguindo o pensamento de Espinosa, Freud e Lacan, Quinet conclui que a
questão se coloca intransponível para o melancólico porque diante de uma
perda ocorre um extravio do desejo, impedindo a libido de circular e investir em
novos objetos, porque o melancólico não quer saber do seu desejo e nem agir em
direção a ele. Nas palavras de Quinet:
Enquanto
o desejo, por ser ativo, leva à ação e se reporta ao espírito, a tristeza é
algo passivo e indica uma perda de potência no agir. Assim se o poeta,
melancolicamente, diz que a tristeza não tem fim, a clínica psicanalítica
mostra, a partir de Freud, que a tristeza tem uma história: esta se inicia com
uma perda, se constitui como covardia moral e rejeição do saber e termina a
partir de sua transmutação em gaio saber e desejo de existir.
Sendo
assim, a tristeza é correlata à confrontação com a falta quando há uma
queda, abalo ou perda de significantes vinculados ao Ideal do eu. (Quinet, 1999,
p. 09).
Apesar
de começar o texto pela narrativa da própria morte, privilegiando a descrição
fúnebre da morte orgânica, não é a morte nessa vertente de realidade
que revela traços de melancolia no discurso de Brás Cubas, mas a morte na sua
vertente simbólica; a morte do desejo de viver; o desencanto diante do
desnudamento humano. O discurso é atravessado pelo pensamento caótico,
fragmentado, marcado por elementos inconstantes, disfarçados e sustentados pela
figura recorrente da ironia. O narrador brinca com a ordem não-cronológica na
disposição dos fatos, usa recursos de escrita intercalados por pontos de
interrogação, exclamação e reticências, colocando o leitor, em alguns
momentos, diante desse vazio do não dizer. Confronta o leitor apresentando um
capítulo inteiro escrito com reticências, e tentando se explicar
no capítulo posterior, justificando: “Há coisas que melhor se dizem
calando...” (p. 211). Há uma
amargura recorrente por mais que seja usada uma linguagem de roupagem lúdica.
Repetidamente, o narrador joga o leitor a se confrontar com a fugacidade da
vida, com a impossibilidade das palavras dizerem com exatidão o que é a dor
humana.
Brás
Cubas introduz seu texto de modo bastante incomum,
mudando de fisionomia recorrentemente. Apresenta-se a princípio como um
narrador com contornos visíveis numa narração figurativa. Pausa momentânea e
retoma a ironia ao narrar o número dos participantes no cortejo fúnebre: (...)
“fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não
houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – uma chuvinha miúda,
triste e constante...” (p.99). Faz
referência ao discurso do amigo, que oportunamente acrescentou de última hora
à chuva como reação da natureza à perda do ilustre finado
(discurso merecedor da inclusão no testamento). Continuando o relato do
enterro, sustenta a ironia na insinuação envolvida de mistério sobre o choro
mais sofrido da terceira senhora,
ao mesmo tempo em que nega a intensidade desse sofrimento por sua morte não ser
causadora de “coisa altamente dramática...” (p. 100).
Seguindo
uma lógica narrativa que privilegia a dualidade, há uma alternância
recorrente entre melancolia e ironia, o que faz lembrar o par que a melancolia
faz com a mania. Apesar da fase maníaca
continuar sendo melancólica, a base que enquadra ambas, é a mesma. Tanto
quanto a ironia, a mania é uma via de possibilidade do discurso melancólico se manifestar, embora
a ironia seja uma possibilidade
apenas de retórica, enquanto que a mania se expressa também no afeto.
Ambas, a ironia e a mania, oferecem uma possibilidade de expressão da
melancolia pela via lúdica, mas dentro da mesma estrutura amarga pertinente ao
discurso melancólico.
Freud trata do conceito de ironia no texto Os chistes e sua relação com o inconsciente [1905]. Ele a situa muito próxima ao chiste e diz que
Sua
essência consiste em dizer o contrário do que se pretende comunicar a outra
pessoa, mas poupando a esta uma réplica contraditória fazendo-lhe entender –
pelo tom da voz, por algum gesto simultâneo, ou (onde a escrita está
envolvida) por algumas pequenas indicações estilísticas - que se quer dizer o
contrário do que se diz (Freud,
p. 199).
A ironia aponta à divisão
do sujeito. Situa-se no ponto de
duplicidade da palavra, que
possibilita transmitir uma coisa
que não foi dita exatamente. É uma forma de discurso que faz escansão entre
enunciação e enunciado.
A narrativa de Memórias Póstumas de Brás Cubas é rica em
expressões antitéticas, seja pelo uso
da figura da ironia em que diz uma coisa querendo dizer outra, seja pelo jogo
antitético de retórica da própria antítese, em que as oposições são colocadas no contraste das palavras ou ainda, pelo uso
paradoxal das idéias, onde ambas se contrapõem com a mesma
força de intensidade, uma coexiste pela outra, a exemplo destacamos os
pares: flagelos e delícias; glória e miséria; o amor multiplicando a miséria;
tristes e alegres; sombra e luz; apatia e combate; verdade e erro (p. 113),
entre outras. A expressão da ironia se encaixa bem ao discurso melancólico,
reflete uma amargura dissimulada. É tentar dizer ludicamente algo que faz
sofrer, é uma forma de negar a realidade.
O discurso melancólico é representado na imagem da morte enquanto perda de uma “coisa” não possível de identificar e nomear. Na fase de moribundo o narrador vive a angústia do prenúncio da morte, marcado em referência a algo perdido que o tempo não devolve. No capítulo VI, recebendo a visita de Virgília[3], o narrador rememora:
Havia
já dois anos que nos não víamos, e eu via-a agora não quem era, mas qual
fora, quais fôramos ambos, porque um Ezequias misterioso fizera recuar o
sol até os dias juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e este
punhado de pó, que a morte ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais que o
tempo, que é o ministro da morte. Nenhuma água de juventa igualaria ali a
simples saudade. (grifo nosso). (p.
105-6).
Quem
diria? De dois grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia
ali, vinte anos depois: havia apenas dois corações murchos, devastados pela
vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mais enfim saciados.(p. 106).
Aparentemente,
há um luto elaborado de um amor vivido e saciado, no entanto o tempo é evocado
como tendo o domínio sobre todas as coisas, é evocado como guardião do desejo
trancado no passado. As reminiscências são típicas do pensamento melancólico,
que não suporta a realidade presente e fica amargamente envolto nas lembranças
passadas.
Virgília
deu-me longas notícias de fora, narrando-as com graça, com um certo travo de má
língua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo, sentia um
prazer satânico em mofar dele, em persuadir-me que não deixava nada
(grifo nosso). (p.106).
A amargura dissimulada pela ironia faz da tristeza algo cômico, suaviza
a gravidade da enfermidade presente. A angústia frente à morte expressar-se em
maior evidência no capítulo VII
intitulado “O delírio”, esse é o maior capítulo e o que melhor resume a fragilidade, a incerteza e a
melancolia frente ao desamparo da efêmera condição humana. Usando a linguagem
do delírio, o narrador viaja mitologicamente através dos séculos, montado num
hipopótamo, guiado por uma imagem transfigurada em mulher,
sendo ela própria a encarnação da face da morte.
O encontro com a misteriosa aparição acontece como uma confrontação
frente à vida e a morte. O poder
sobrenatural do vulto personificado na mulher conduz o
narrador numa viagem igualmente sobrenatural, viagem no túnel do tempo;
um passado sem datas através dos séculos; através de uma existência
indefinida. O anúncio desse capítulo já se faz conduzido pela ironia.
Afirma-nos o narrador que narrar o próprio delírio é um fato inusitado,
portanto, devedor da gratidão da ciência.
A
imagem da mulher é representada por Pandora (mitológica figura grega guardiã
da caixa que porta todos os males e também a esperança). Sua aparição é
relatada numa dimensão que avassala. É narrada
em atitudes que a tornam incompreensível como figura humana, com
atributos de caráter sobrenatural. O primeiro momento do encontro é marcado
pelo espanto e pelo silêncio. O diálogo que se segue referente à apresentação
de Pandora como sendo mulher-mãe-inimiga forma a tríade simbólica apresentada
por Freud no texto O Tema dos três Escrínios [1913], onde
alegoricamente o feminino encarna a representação da morte. Nas palavras de
Freud:
Poderíamos
argumentar que o que se acha representado aqui são as três inevitáveis relações
que um homem tem com uma mulher – a mulher que o dá à luz, a mulher que é a
sua companheira e a mulher que o destrói; ou que elas são as três formas
assumidas pela figura da mãe no decorrer da vida de um homem – a própria mãe,
a amada que é escolhida segundo o modelo daquela, e, por fim, a Terra Mãe, que
mais uma vez o recebe (Freud, p.379).
Na narrativa machadiana, a figura da mulher
encarna essas vertentes apontadas por Freud: a mulher–mãe, santa; a
mulher–companheira e a mulher–amante, pecadora, a que conduz à morte, à perdição. Brás Cubas vive todas essas
nuanças de mistérios possíveis de encarnar-se numa mulher.[4]
Refletindo diante da cena da morte de sua mãe, ele expressa:
“Que? Uma criatura tão dócil, tão meiga, tão santa, que nunca
jamais fizera verter uma lágrima de desgosto, mãe carinhosa, esposa imaculada,
era força que morresse assim...” (p.145). Relembrando seu primeiro contato
com uma mulher, o seu encontro com “a dama espanhola Marcela”, ele afirma:
“a verdade é que Marcela não possuía a inocência rústica, e mal chegava a
entender a moral do código. Era boa moça, lépida, sem escrúpulos... luxuosa,
impaciente, amiga do dinheiro e dos rapazes” (p. 127). No que diz respeito a
Virgília, a mulher eleita como sua amada, Brás Cubas a recorda e a define em
dois momentos: na adolescência ele a percebe como: “Era bonita, fresca, saía
das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo
passa a outro indivíduo, para os
fins secretos da criação. Era isto Virgília...” (p.152). No reencontro com
ela, na vida adulta, ele reelabora
sua definição e diz: “vi
assomar a distância, uma mulher esplêndida. Era ela; só a reconheci a poucos
passos, tão outra estava, a tal ponto a natureza e a arte lhe haviam dado o último
apuro” (p.179).
Na vivência do delírio, Pandora é a imagem que vem cumprir o papel da “Terra Mãe”, a última mulher a recebê-lo nos braços. Os termos “vulto”, “imagem” e “figura” reforçam o aspecto mitológico da aparição: na gargalhada, há a força que produz efeitos fenomenais; no diálogo e na face, a dualidade que aterroriza e fascina. A própria encarnação de Pandora se dá em forma dual como vida e morte; mãe e inimiga; fugaz e eterna; portadora do mal e da esperança. Ao apresentar-se, a mulher diz: (...) “- chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga” (p. 110). (...) “eu não sou somente a vida; sou também a morte” (p. 111). A ambigüidade é também o fio condutor do delírio: elaborar o luto da morte para escapar à melancolia da vida. O capítulo é repleto de figuras e expressões que representam simbolicamente a morte. Na percepção do delírio, Brás Cubas diz que “O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das coisas ficara estúpida diante do homem” (109). O efeito retrospectivo dos séculos vislumbrado através de um nevoeiro, é apenas um, entre os inúmeros significantes que representam a morte e que são parte da visão sobrenatural conferida ao delirante. É uma antecipação à morte como condição material de existir, porém relacionando a morte física com a morte do sentido de viver.
O delírio é uma
possibilidade apontada por Freud, no texto Luto e Melancolia. Quando o
trabalho de luto exige que o teste de realidade seja reconhecido pelo ego, ou
seja, que o objeto amado não mais existe, essa exigência provoca uma oposição
reconhecida como compreensível, porque não se abandona de bom grado uma posição
libidinal. “Essa oposição pode ser tão intensa, que dá lugar a um desvio
da realidade e a um apego do objeto por intermédio de uma psicose alucinatória
carregada de desejo” (Freud, p. 278). Através do delírio, é possível a Brás
Cubas conhecer a origem de todas as coisas e observar a fragilidade da estrutura
humana. Nas palavras do delirante:
(...)
Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a
enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a
melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até
destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a
víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de
arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à
indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor
bastarda. Então o homem flagelado e rebelde corria diante da fatalidade das
coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho
de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto
precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, nada menos que a quimera
da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda,
e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se,
como uma ilusão (p. 112).
A vida é apresentada frente a um real devastador. Não há qualquer
possibilidade de sustentação satisfatória no transcorrer dos séculos. O
homem é mostrado frente às misérias, flagelos e destruições, completamente
entregue à fatalidade do acaso sem perspectivas. A narrativa toma um rumo de
extremo pessimismo e se conduz por uma vertente que leva o delirante ao
convencimento de entregar-se a morte, pois o destino e perspectiva humana são
pura calamidade ou, seja qual for a circunstância apresentada no delírio, a
possibilidade que resta é aceitar e elaborar que a morte é o melhor saldo da
vida. A retrospectiva é pertinente à reação melancólica que busca no
passado a ancoragem que está perdida no
momento presente. O delírio
possibilita ao moribundo a experiência do inexplicável e a tentativa de aceitação
do que não é possível de aceitar na plenitude da racionalidade.
Brás Cubas encarna com muita propriedade a fragilidade constante do
advir humano. Seu desejo circula
com muita rapidez, não tendo sustentação prolongada em nenhuma causa ou
objeto específico. Seu modo de vida reflete uma constante insatisfação que o
conduz sempre a um eterno recomeço, expresso num discurso irônico e amargo.
Narrando seus préstimos numa instituição de caridade, o mesmo afirma:
“Os quadros eram tristes; tinham a monotonia da desgraça, que é tão
aborrecida como a do gozo, e talvez pior” (p. 298).
Urania Peres afirma, no texto Dúvida melancólica, dívida melancólica,
vida melancólica, que “o melancólico caminha guiado pela perda.
Sentido-se ele próprio um objeto perdido, o seu vínculo com objetos é frágil
e a sustentação de seu desejo vacilante” (Peres. 1996. p. 66). A dor de Brás
Cubas revela-se na descrença pelo potencial humano e pelo mundo que o cerca. A
melancolia evocada em seu discurso ao mesclar-se
com a ironia, dá um revestimento ilusório,
aparece como se aquela fosse a condição natural dos viventes. Tal
facticidade o leva a concluir a vida, dizendo ter
como saldo o não ter transmitido a nenhuma criatura o legado da miséria
humana (p. 301). Seu sonho era produzir “um emplasto anti-hipocondríaco,
destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade” (p. 101), ironicamente
foi sua causa mortis, impedindo-o de realizar tão grande feito.
Segundo ele, não dispondo a humanidade do milagre do emplasto,
(...) “ai vos ficais eternamente hipocondríacos” (p.301).
Nessa relação escapa um
saber, que a condição da
melancolia encarnada por Brás Cubas é inerente à condição da criatura
humana, marcada em sua perda original, marcado na “dor de existir em suas
diferentes gradações, que vão do luto à melancolia”
(Quinet, 199, p. 7). Nas palavras do próprio Brás cubas: “Cada estação
da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também,
até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes” (p.152). Na
perspectiva de Brás Cubas há uma errância generalizada nas relações humanas
e seja qual for o esforço humano feito em direção a correção dessa
precariedade, será sempre ineficaz. Brás Cubas vive a representação de que não
há um significante possível de designar o desejo humano em sua totalidade,
apenas em sua parcialidade; em semblante. Chegar à “edição definitiva” é
encontrar-se com a morte. Seu descrédito ante a vida varia como um pêndulo
entre elaborar o luto das perdas e a impossibilidade de assimilar a falta como
condição estrutural da existência humana, ficando então aprisionado em sua
“melancólica humanidade”.
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O tema dos três escrínios. Obras Completas, v. XII, p. 367-79.
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[1] Todas as citações do texto de Machado de Assis são das Ed. Críticas. 2. ed. 1977.
[2] Todas as citações dos textos de Sigmund Freud são da 3ª ed. da Imago, 1990.
[3] Nome da misteriosa senhora referida na cena do enterro.
[4] As três mulheres mais marcantes na vida de Brás Cubas e que podem ser compreendidas dentro dessa interpretação freudiana estão representadas na figuras de sua mãe, de Marcela e de Virgília.