Introdução

 

Entendido como uma atividade intencional e sócio-interacional, à medida que o falante, sob o uso de determinadas condições, tenta mostrar ao seu ouvinte o propósito de sua manifestação verbal e este, por sua vez, representa um elemento importante nos processos de elaboração e compreensão textuais, o texto (oral ou escrito) é, por assim dizer, parte da atividade comunicativa. Nesse sentido, pode-se dizer que, ao produzirem um texto oral, os falantes acionam algumas estruturações lingüístico-discursivas — os atos de fala, no dizer de Austin (1962) — “... dotados de certa força, que irão produzir no interlocutor determinado(s) efeito(s), ainda que não sejam aqueles que o locutor tenha em mira” (BENTES, 2001).

Sob essa perspectiva, o objetivo deste trabalho é apresentar uma discussão em torno da importância da Teoria dos Atos de Fala — postulada pelo filósofo inglês John Austin (1962) e divulgada pelo também filósofo J. R. Searle (2002) — para os estudos que encaram a linguagem como uma forma de ação, oferecendo ao professor de Lingüística/Língua Portuguesa uma sugestão de aplicação dessa teoria no contexto de sala de aula do Ensino Superior.

 

1. A Teoria dos Atos de Fala: história, taxonomias e formas de aplicação

             Remontando às bases históricas, pode-se dizer que ao lado das discussões sobre a importância de uma abordagem pragmática da linguagem emergiram, primeiro na Filosofia da Linguagem e depois na Lingüística propriamente dita, os conceitos de locução, ilocução e perlocução. Tais princípios decorrem das doze conferências proferidas pelo filósofo inglês John Austin (1962), cuja tônica incidia na análise das peculiaridades de verbos como jurar e batizar, considerados performativos, isto é, verbos que ‘fazem o que dizem’.

 Assim, no momento em que são proferidos, a ação correspondente a esses verbos também se realiza. Uma característica subjacente é que eles estão sujeitos a condições de felicidade e infelicidade. Ao lado dessa constatação, Austin também apontou a existência de verbos constativos, ou seja, aqueles que se referem a uma declaração. Por corresponderem a proposições, estes não se submetem a critérios de realização, mas aos princípios de “verdade” ou “falsidade”.

            Deparando-se com alguns problemas, à medida que procurou separar os limites entre performativos e constativos, Austin (1962) redimensionou tal dicotomia. Assim, primeiro buscou observar se os constativos também estavam sujeitos à avaliação da “felicidade” e/ou da “infelicidade” a que se submetem os performativos; em seguida, analisou o procedimento contrário, ou seja, até que ponto os performativos estão sujeitos ao

 julgamento de “verdade” ou “falsidade”.  É exatamente a análise desses dois aspectos que vai propiciar o nascimento da Teoria dos Atos de Fala.[1]

Conforme a referida teoria[2], todo texto — oral ou escrito — é sempre a realização de um ato de caráter locucionário, isto é, o falante produz algo com base em regras gramaticais, articuladas à combinação de sons e às relações sintáticas veiculadas pelas palavras escolhidas, um ato ilocucionário, posto que o dito visa a influenciar o comportamento do receptor, dizer é fazer algo, é uma promessa, um conselho, uma recusa, um elogio, um pedido, um aviso e tantas outras realizações possíveis, e ainda um ato perlocucionário, levando-se em consideração os efeitos que esses produzem no interlocutor.

Assim, um professor X, por exemplo, faz algo ao dizer para seus alunos “Eu gostaria que vocês fichassem o texto A”, posto que essa sentença não se esgota num mero jogo de regras gramaticais esvaziadas de sentido (o locucionário por si mesmo), mas é, antes disso, porta-voz de um pedido e/ou mandato do professor a seus alunos. Desse modo, há a evidência de um ato ilocucionário, entre os vários que o contexto pode revelar. Ora, esse dizer (pedido e/ou mandato) pode acarretar diferentes reações: os alunos fazerem a atividade proposta ou, quem sabe, recusarem o pedido como protesto são supostas respostas ao que fora dito. E, nesse caso, há a referência ao ato denominado por Austin de perlocucionário.

Na verdade, para Austin (1962), os atos de fala são enunciações caracterizadas pela presença de uma “força ilocucionária” capaz de determinar como a mensagem (o ato em si) deve ser entendida pelo interlocutor: um pedido, um mandato, uma possibilidade etc. De tal modo, o ato de fala só será tido como bem-sucedido se o interlocutor entender a intenção inerente à sua efetivação.

            Subjacente a essa caracterização dos atos de fala está o fato de que as mesmas palavras ditas por um mesmo falante podem suscitar diferentes significados, conforme o contexto de realização.Em outras palavras, pode-se dizer que “uma das principais idéias que emergem das reflexões desta teoria é a de que são múltiplas as formas de ação que podem ser efetivadas por meio da linguagem” (MÓIA E PERES, 1995).

A definição dos atos de fala trouxe à tona, entre outras, uma discussão acerca dos “atos de fala indiretos”, à medida que há “casos em que um ato ilocucionário é realizado indiretamente através da realização de um outro” (SEARLE, 2002). Gradativamente, então, surgiram estudos questionando “como” é possível ao falante emitir atos que podem ter mais de uma significação (um sentido literal e um sentido derivado ou contextualizado) e, reciprocamente, “como” é possível ao ouvinte depreender a significação desejada pelo falante na hora da emissão deste ato.

Trata-se, portanto, de um assunto extremamente delicado. Para Maingueneau (1996), a abordagem do sentido literal e do sentido derivado (indireto) de um determinado ato de fala suscita outras questões importantes — como a dos tropos — e, para respondê-las, faz-se necessária à recorrência a opções filosóficas pertinentes à natureza do sentido e da linguagem.

Searle (1969), ao questionar o fato de que muitas sentenças indiretas apresentam-se de uma maneira quase convencional (como em “Você pode alcançar o sal ? ”, por exemplo),  sugere que a emissão dessas sentenças explica-se em função das condições de realização feliz — condições preparatórias, condições de conteúdo e condições de sinceridade — dos atos de fala que costumam veicular indiretamente. 

O referido estudioso propôs algumas explicações para essa problemática, muitas delas envolvendo os “postulados conversacionais” e, ainda, estruturas profundas alternativas. Mais tarde, reconhecendo a incompletude das respostas dadas a suas perguntas, Searle passa a defender a hipótese de que 

 

 

em atos de fala indiretos, o falante comunica ao ouvinte mais do que realmente diz, contando com uma informação de base, lingüística e não lingüística, que compartilhariam, e também com as capacidades gerais de racionalidade e inferência que teria o ouvinte.  (SEARLE, 2002)

 

 

Mais objetivamente, para Searle (2002), explicar a “parte indireta” dos atos de fala indiretos prescinde não só da inclusão de uma teoria dos atos de fala, mas também da recorrência a princípios gerais de conversação cooperativa (alguns dos quais foram abordados por Grice (1975)), da informação fatual prévia comum ao falante e ao ouvinte e, ainda, da habilidade que permite ao ouvinte inferir os atos proferidos pelo falante.

Uma outra questão comumente associada ao estudo dos atos de fala diz respeito às condições de sucesso que lhes são inerentes. Isso porque, a partir dos próprios questionamentos de Austin (1962), sabe-se que um ato de fala não é verdadeiro ou falso, antes se define por ser bem ou mal-sucedido. Logo, além do mero respeito a normas estritamente gramaticais, parecem existir algumas condições de sucesso para que um ato de fala se realize, ganhando vez, então, a célebre máxima de que ‘qualquer um não pode dizer qualquer coisa em qualquer circunstância’.

Há estudiosos, entretanto, que põem em xeque a validade desse questionamento, apontando o fato de que um ato de fala pode se realizar sem que todas essas condições de sucesso estejam reunidas, ou seja, ainda que este seja recebido como nulo ou não ocorrido. A propósito, eis o comentário abaixo:

 

 

De fato, qualquer ato de linguagem tem pretensões, por sua própria enunciação, à legitimidade. Em outras palavras, aquele que profere um ato de linguagem não passa primeiro em revista o conjunto das condições exigidas para fazê-lo, mas o próprio fato de ele estar enunciando implica que essas condições estejam reunidas. (MAINGUENEAU,1996)

 

 

Com base nessa orientação, Maingueneau (1996) chama a atenção para o fato de que proferir um ato de fala define uma relação de ‘lugares’, em que os atuantes da comunicação se auto-questionam sobre os seus respectivos papéis interativos. O que, muitas vezes, passa despercebido ou, em alguns discursos, as expectativas não são confirmadas, havendo uma redistribuição dos lugares.

Outro empenho que tem acompanhado os estudiosos no trato com a Teoria dos Atos de Fala é a tentativa de classificar esses atos ou, melhor dizendo, os verbos que os exprimem. Pode-se dizer que há inúmeras propostas nesse sentido e que não há um consenso da lista dos elementos envolvidos para cada uma das classificações que são (e foram) sugeridas, demonstrando a complexidade desse assunto.

Mentor da Teoria dos Atos de Fala, é o próprio Austin (1962) quem dá início ao desenvolvimento de uma classificação dos atos ilocucionários em certas categorias ou tipos básicos, a saber: vereditivos, expositivos, exercitivos, comparativos e compromissivos.

Os veriditivos representariam a pronúncia de um veredito, oficial ou não-oficial, acerca da evidência ou das razões relativas a valor ou fato. Eis alguns exemplos dessa classe de verbos: acquit (inocentar), hold (estatuir), calculate (calcular), describe (descrever), analyse (analisar), estimate (estimar), date (datar), rank (hierarquizar), assess (avaliar) e characterize (cararterizar).

Analogamente, os expositivos estariam ligados a atos em que predominam a explanação de concepções, o direcionamento de argumentos e, ainda, o esclarecimento de usos e referências. São listados, entre outros, os seguintes verbos: affirm (afirmar), deny (negar), emphasize (enfatizar), illustrate (ilustrar), answer (responder), acceptI (aceitar), object to (objetar), concede (conceder), describe (descrever), class (classificar), identify (identificar) e call (chamar).

Da mesma sorte, os exercitivos consistiriam em atos responsáveis por uma decisão favorável ou desfavorável a algo. Ou seja, uma decisão que preconiza uma determinada conduta. São alguns exemplos: order (ordenar), command (mandar), direct (instruir), plead (pleitear), beg (suplicar), recommend (recomendar), entreat  (rogar), advise (aconselhar), appoint (designar), miss (exonerar), nominate (nomear), veto (vetar), declare closed (declarar fechado), declare open (declarar aberto), announce (anunciar), warn (advertir), proclaim (proclamar) e give (dar).

Já a classe dos comportativos incluiria “... the notion of reaction to other people’s behavior and fortunes and of attitudes and expressions of attitudes to someone else’s past conduct or imminent conduct”[3] (AUSTIN, 1962). Eis alguns exemplos: apologize (desculpar-se), thank (agradecer), deplore (deplorar), commiserate (compadecer-se), congratulate (congratular), felicitate (felicitar), welcome (dar as boas-vindas), applaud (aplaudir), criticize (criticar), bless (abençoar), curse (amaldiçoar), toast (brindar), drink (beber à saúde), dare (afrontar), defy (desafiar), protest (protestar)e challenge (contestar).

Por fim, os compromissivos remeteriam a atos que comprometem o locutor com uma certa linha de ação futura. Alguns exemplos lógicos são: promise (prometer), vow (jurar solenemente, fazer voto), pledge (empenhar), guarantee (garantir), embrace (aderir) e swear (jurar).

Naturalmente, as propostas de outros estudiosos, via de regra, tomam a distribuição desses atos proposta por Austin como ponto de referência a uma classificação mais adequada sobre tal questão. Embora se reconheça a importância do trabalho de outros filósofos[4], há um interesse particular, neste trabalho, de apresentar algumas das considerações teóricas de Searle (2002) sobre a taxinomia dos atos ilocucionários.

Segundo a taxinomia proposta por Searle, os atos ilocucionários se classificam em: assertivos, diretivos, compromissivos e expressivos. Como não conseguiu incluir todos os atos ilocucionários nessas quatro classes, Searle fez valer uma quinta categoria — a das declarações — para comportar a inserção de determinados casos, “... em que o estado de coisas representado na proposição expressa é realizado ou feito existir pelo indicador de força ilocucionária, casos em que se faz existir um estado de coisas ao declarar-se que ele existe, casos em que “dizer faz existir”[5]  ” (SEARLE, 2002).

Genericamente, diz-se que os assertivos referem-se a atos que comprometem o falante com a verdade expressa, de modo que todos os membros dessa classe são avaliados como “verdadeiro” ou “falso”.

Searle (2002) chama a atenção, ainda, para o fato de que essa classe contém a maioria dos atos expositivos de Austin (1962) e também muitos dos seus vereditos, à medida que estes têm em comum o propósito ilocucionário e apenas se diferenciam por outras características da força ilocucionária. Grosso modo, para o estudioso supracitado, um assertivo se definiria em função de poder se caracterizar literalmente como verdadeiro ou falso.

Delineiam-se como da segunda classe — a dos diretivos — atos cujo propósito ilocucionário representam tentativas do falante de levar o ouvinte a fazer uma dada ação. Entre os verbos caracterizados como dessa classe, estão os seguintes: ask (pedir, convidar), order (ordenar) e command (mandar).

Basicamente, a definição adotada por Searle para os compromissivos é a mesma de Austin, ou seja, a de que estes são os atos ilocucionários caracterizados por um certo grau de comprometimento do falante com alguma linha de ação futura. A única ressalva feita é que, para Searle, Austin lista como compromissivos alguns verbos que não o são, a exemplo de shall (haver de), intend (ter a intenção de) e favor (favorecer).

A quarta categoria a que se refere Searle — a dos expressivos — engloba atos cujo propósito ilocucionário é a expressão de um estado psicológico. A verdade da proposição é pressuposta. São exemplos nítidos dessa classe: thank (agradecer), congratulate (congratular), apologize (desculpar-se), condole (dar pêsames), deplore (deplorar) e welcome (dar as boas-vindas).

Fundamentalmente, a principal característica das declarações é que, quando realizadas de forma bem-sucedida, elas garantem a correspondência entre o conteúdo proposicional e a realidade. Ao nomear com sucesso X para um determinado cargo (de secretário de uma empresa), por exemplo, X é o secretário[6].      

É necessário frisar, entretanto, que a classificação de Searle (2002) não representa uma contraproposta ao modelo apresentado por Austin, antes a redimensiona em alguns aspectos. Na verdade, parece mais adequar afirmar que Searle “... destacou a necessidade de uma formulação mais abrangente, mostrando que ela representaria, como instrumento conceitual, uma tentativa de justificativa para diversidade de atos socialmente reconhecidos, já contemplados nas primeiras versões da teoria”(MARI, 2001).

Uma vez comentadas as taxionomias propostas por Austin (1962) e Searle (2002) para os atos de fala, convém ressaltar, agora, uma sugestão de aplicação dessa teoria no contexto de sala de aula. Sem negligenciar o texto escrito, mas, antes disso, dando especial atenção à língua falada como um processo discursivo, o professor de Lingüística/ Língua Portuguesa pode fazer valer uma abordagem lingüística que, tomando os pressupostos da Teoria dos Atos de Fala — notadamente, a idéia de que a língua é uma forma de ação — como norte para o desenvolvimento analítico, traduza os diferentes atos de fala (e os efeitos de sentido deles decorrentes) que são gerados em função da exposição oral a que os alunos são constantemente submetidos. 

Desse prisma, o texto é visto como uma unidade semântica global que funciona numa dada situação comunicativa, realizando-se por meio de uma seqüência de proposições portadoras de sentido. Particularmente, a sugestão aqui referendada evidencia o trato com estruturações lingüísticas do tipo dar chute, bater as botas, tomar banho etc. (denominadas por Alves (1998) de Construções Lexicais Complexas — doravante CLCs), que, constituídas de verbo + nome (ou variações), expressam um todo significativo.

Sabe-se que, num contexto de interação face-a-face (a exemplo de uma conversação), falante e ouvinte co-produzem o texto, à medida que interagem entre si. Nesse ínterim, pressões de caráter pragmático freqüentemente se impõem às normas sintáticas, levando o falante a atropelar essas regras e, em favor da interação, usar de repetições, paráfrases, correções, truncamentos etc. Além dessas estratégias, os falantes costumam se valer de elementos lingüísticos que, dotados de uma força X, são capazes de produzir num dado texto diferentes efeitos de sentido. Entre esses recursos, estão as CLCs.

Ora, analisar uma CLC como um item lexical passível de veicular diferentes efeitos de sentido na caracterização de um dado texto parece implicar a determinação dos atos de fala gerados em função de seu uso. Isso porque, como afirmava Austin (1962), os atos de fala são enunciações que têm como principal característica a presença de uma ‘ força ilocucionária’ e é exatamente essa força que conduz a maneira como a mensagem (o ato em si) deve ser interpretada pelo ouvinte.

            Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que é a força ilocucionária inerente aos variados atos de fala decorrentes da contextualização discursiva que perpassa o uso de uma CLC que vai ocasionar a pluralidade de sentidos (e de seus respectivos efeitos discursivos) facilmente evidenciada em textos orais.

Sob essa ótica, é possível, a partir do verbo ilocucionário depreendido do uso de uma CLC identificada no texto do aluno, esboçar o perfil dessa ocorrência, no sentido de classificar o tipo de ato ilocucionário que fora emitido pelo informante ao usá-la como recurso lingüístico-discursivo e, ao mesmo tempo, buscar os efeitos de sentido que esses atos podem veicular no momento da fala registrada. Tomando a classificação dos atos ilocucionários proposta por Searle (2002) como fio condutor de análise, segue, como forma de ilustração, uma contextualização discursiva (extraída do corpus oral VALPB (2001), com a respectiva explicitação do efeito de sentido gerado a partir das propriedades discursivo-pragmáticas do uso de uma CLC:

 

 

(1) E: Que história de amor lhe marcou mais?

   I: História de amor (risos) é ruim...

     [ de-] é desse [ home] que eu gostei dele aqui em João Pessoa,    que por sinal ainda trabalha comigo, que eu passei cinco ano0 cum ele, mais ao mesmo tempo me causou uma grande decepção, né? *Porque quando eu tava cum ele numa boa, pensando que tava abafando, né? Que ele feiz? * Me deu um belo chute no traseiro, né? E arrumou outra lá. * Uma mais novinha, mais sem mais jeitosa, e pronto. *Foi um [a-] foi o meu primeiro amor, porque eu posso de dizer, de namorado, de marido, de amante, de tudo, foi o meu primeiro amor, e a minha primeira grande decepção. * O que eu posso dizer do amor é isso. *Agora eu não desacredito no amor. *Eu acredito no amor. *Eu sei, eu sei que existe. *Mas, eu sei que [ixi —] eu sinto assim, num sabe. *Eu acho bonito a pessoa um casal ser unido e tal, mais pra mim no momento tá neutro, tá neutro. (HORA E PEDROSA, 2001)

 

            Submetido a um questionamento sobre algo substancialmente particular ( a propósito de se referir à história de amor que marcou mais), a informante tende a procurar a melhor forma de partilhar um conhecimento acerca de si mesma. Entra em jogo, portanto, a exposição de idéias tomadas como verdadeiras, como asserções.  Ao relatar que a história de amor que mais a marcou estava ligada a uma decepção, a informante faz valer o uso da CLC(D) dar um belo chute (no traseiro), trazendo para a sua fala uma possível evidência acerca do que expõe.                                                                                                                                    Na verdade, a real intenção da informante consiste em endossar, para o (a) entrevistador (a), o teor da decepção amorosa por ela vivida. Assim, a emissão de dar um belo chute (no traseiro) se apresenta, pela expansão metafórica que remete à agressividade (tendo em vista o sentido literal: X apanhar de Y), com um efeito de sentido mais intenso, capaz de explicitar melhor a dor da perda de um amor, tal como a de uma pessoa que foi surrada. Traduzindo: a força ilocucionária relativa ao emprego da CLC(D) dar um belo chute (no traseiro) acentua a idéia de a informante ter sido abandonada e trocada por outrem, acarretando um efeito de sentido explicitamente mais forte.          

Diante de tal amostra analítica (ainda que superficial), a hipótese de consolidação de uma análise que apresente, com base na identificação dos atos ilocucionários inerentes às CLCs, os diferentes efeitos de sentido que essas estruturações podem gerar em um dado texto se mostra bastante fértil, mormente em se tratando da utilização de textos orais, para fins de investigação das propriedades semânticas globais do fenômeno lexical aqui tratado, que, sem sombra de dúvida, evidencia a célebre máxima austiniana de que ‘dizer é fazer’.

Logo, é importante que o professor de Lingüística/Língua Portuguesa se conscientize da existência de distintas forças ilocucionárias (e de seus respectivos efeitos de sentido) relacionadas aos atos de fala que são produzidos por seus alunos nas exposições a que são submetidos e, mediante essa consciência, torne viva para esses alunos a identidade entre dizer e fazer, porque “... nisso consiste a essência do pacto social e sua garantia é exatamente o ato através do qual assume a lei da linguagem como sua” (ARAÚJO LEITE, 1996).

 

 

 

Considerações finais

 

            Evidentemente, outras observações poderiam ser feitas, da mesma forma que muitas outras reflexões e sugestões de aplicação podem ser desenvolvidas em função da Teoria dos Atos de Fala — a exemplo do tratamento dispensado por Araújo Leite (1996) a esse assunto —, mas a efetivação da proposta de trabalho outrora salientada já representa uma abordagem possível e frutífera, uma vez que os falantes recorrem, com bastante freqüência, ao uso de CLCs e estas, graças a propriedades semântico-pragmáticas que lhes são inerentes, podem imprimir o grau de adesão desses falantes ao que ora está sendo enunciado. O que, mais do que evidenciar a máxima de que ´dizer é fazer`, vivifica a idéia de que a linguagem é texto e é também ação. 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

ALVES, Eliane Ferraz. Construções Lexicais Complexas com o verbo levar. Tese de doutorado. Recife: Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFPe, 1998.

ARAÚJO LEITE, Nina Virgínia de. Ato e dizer. In: RAJAGOPALAN, Kanavilll (org.).  Cadernos de estudos lingüísticos (Pragmática).Campinas, SP: Unicamp, 1996.

AUSTIN, J. L. How to do things with words. Oxford: Clarendon Press, 1962.

BENTES, Anna Christina. Lingüística Textual. In: MUSSALIM, Fernanda e BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à lingüística: domínios s fronteiras.  V.2 . São Paulo: Cortez, 2001.

HORA, Dermeval da e PEDROSA, Juliene Lopes Ribeiro (Orgs.). Projeto Variação Lingüística no Estado da Paraíba- VALPB. Volumes I, II, III, IV e V. João Pessoa: Idéia, 2001.

MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso literário.(Tradução de Marina Appenzeller. Revisão da tradução: Eduardo Brandão). São Paulo: Martins Fontes, 1996.

MARI, Hugo. Atos de fala: notas sobre origens, fundamentos e estrutura. In: MARI, Hugo et al. Análise do discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: Núcleo de Análise de Análise do Discurso, FALE / UFMG, 2001.

SEARLE, John R.  Expressão e significado: estudos da teoria dos atos de fala. (Tradução de Ana Cecília G. A. de Camargo e Ana Luiza Marcondes Garcia). 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

 

 

 


[1] Pode-se encontrar também os termos atos de linguagem, atos de palavra e atos do discurso.

[2] Muitos estudos costumam identificar as origens dessa teoria com uma série de contribuições que apontam para o centro de sua atenção — as palavras em ação —, à medida que destacam alguns aspectos que foram tratados em seu desenvolvimento conceitual. Dessa forma, é bastante comum, na história da Teoria dos Atos de Fala, a identificação de suas origens aos jogos de linguagem abordados por Wittgenstein (1979). Há estudos, ainda, que apontam as contribuições de Peirce para a formulação da referida teoria. Sobre esse assunto, é aconselhável a leitura do texto “Atos de fala: notas sobre origens, fundamentos e estrutura”  (MARI, 2001).

[3] “...a noção de reação ao comportamento e à sorte de outras pessoas, e a noção de atitude e expressão de atitude diante da conduta passada ou iminente de alguém”.

[4] Entre as propostas de classificação dos atos ilocucionários estão as de J. Habermas (1971), D. Wunderlich (1970),  N. Luhmann (1971) e F. Récanati (apud Maingueneau, 1996).

[5] Grifos do autor

[6] Searle chama a atenção, entretanto, para o fato de que muitas sentenças ocultam essa característica, não estando nítida a diferença entre conteúdo proposicional e força ilocucionária.