Entendido como uma atividade intencional e sócio-interacional, à medida que o falante, sob o uso de determinadas condições, tenta mostrar ao seu ouvinte o propósito de sua manifestação verbal e este, por sua vez, representa um elemento importante nos processos de elaboração e compreensão textuais, o texto (oral ou escrito) é, por assim dizer, parte da atividade comunicativa. Nesse sentido, pode-se dizer que, ao produzirem um texto oral, os falantes acionam algumas estruturações lingüístico-discursivas — os atos de fala, no dizer de Austin (1962) — “... dotados de certa força, que irão produzir no interlocutor determinado(s) efeito(s), ainda que não sejam aqueles que o locutor tenha em mira” (BENTES, 2001).
Sob essa perspectiva, o objetivo deste trabalho é apresentar uma discussão em torno da importância da Teoria dos Atos de Fala — postulada pelo filósofo inglês John Austin (1962) e divulgada pelo também filósofo J. R. Searle (2002) — para os estudos que encaram a linguagem como uma forma de ação, oferecendo ao professor de Lingüística/Língua Portuguesa uma sugestão de aplicação dessa teoria no contexto de sala de aula do Ensino Superior.
Remontando
às bases históricas, pode-se dizer que ao lado das discussões sobre a importância
de uma abordagem pragmática da linguagem emergiram, primeiro na Filosofia da
Linguagem e depois na Lingüística propriamente dita, os conceitos de locução,
ilocução e perlocução. Tais princípios decorrem das doze conferências
proferidas pelo filósofo inglês John Austin (1962), cuja tônica incidia na análise
das peculiaridades de verbos como jurar e batizar, considerados performativos,
isto é, verbos que ‘fazem o que dizem’.
Assim,
no momento em que são proferidos, a ação correspondente a esses verbos também
se realiza. Uma característica subjacente é que eles estão sujeitos a condições
de felicidade e infelicidade. Ao lado dessa constatação, Austin também
apontou a existência de verbos constativos, ou seja, aqueles que se referem a
uma declaração. Por corresponderem a proposições, estes não se submetem a
critérios de realização, mas aos princípios de “verdade” ou
“falsidade”.
Deparando-se
com alguns problemas, à medida que procurou separar os limites entre
performativos e constativos, Austin (1962) redimensionou tal dicotomia. Assim,
primeiro buscou observar se os constativos também estavam sujeitos à avaliação
da “felicidade” e/ou da “infelicidade” a que se submetem os
performativos; em seguida, analisou o procedimento contrário, ou seja, até que
ponto os performativos estão sujeitos ao
julgamento
de “verdade” ou “falsidade”. É
exatamente a análise desses dois aspectos que vai propiciar o nascimento da
Teoria dos Atos de Fala.[1]
Conforme
a referida teoria[2],
todo texto — oral ou escrito — é sempre a realização de um ato de caráter
locucionário, isto é, o falante produz algo com base em regras gramaticais,
articuladas à combinação de sons e às relações sintáticas veiculadas
pelas palavras escolhidas, um ato ilocucionário, posto que o dito visa a
influenciar o comportamento do receptor, dizer é fazer algo, é uma
promessa, um conselho, uma recusa, um elogio, um pedido, um aviso e tantas
outras realizações possíveis, e ainda um ato perlocucionário, levando-se em
consideração os efeitos que esses produzem no interlocutor.
Assim,
um professor X, por exemplo, faz algo ao dizer para seus alunos “Eu gostaria
que vocês fichassem o texto A”, posto que essa sentença não se esgota num
mero jogo de regras gramaticais esvaziadas de sentido (o locucionário por si
mesmo), mas é, antes disso, porta-voz de um pedido e/ou mandato do professor a
seus alunos. Desse modo, há a evidência de um ato ilocucionário, entre os vários
que o contexto pode revelar. Ora, esse dizer (pedido e/ou mandato) pode
acarretar diferentes reações: os alunos fazerem a atividade proposta ou, quem
sabe, recusarem o pedido como protesto são supostas respostas ao que fora dito.
E, nesse caso, há a referência ao ato denominado por Austin de perlocucionário.
Na
verdade, para Austin (1962), os atos de fala são enunciações caracterizadas
pela presença de uma “força ilocucionária” capaz de determinar como a
mensagem (o ato em si) deve ser entendida pelo interlocutor: um pedido, um
mandato, uma possibilidade etc. De tal modo, o ato de fala só será tido como
bem-sucedido se o interlocutor entender a intenção inerente à sua efetivação.
Subjacente a essa
caracterização dos atos de fala está o fato de que as mesmas palavras ditas
por um mesmo falante podem suscitar diferentes significados, conforme o contexto
de realização.Em outras palavras, pode-se dizer que “uma das principais idéias
que emergem das reflexões desta teoria é a de que são múltiplas as formas de
ação que podem ser efetivadas por meio da linguagem” (MÓIA E PERES, 1995).
A
definição dos atos de fala trouxe à tona, entre outras, uma discussão acerca
dos “atos de fala indiretos”, à medida que há “casos em que um ato
ilocucionário é realizado indiretamente através da realização de um
outro” (SEARLE, 2002). Gradativamente, então, surgiram estudos questionando
“como” é possível ao falante emitir atos que podem ter mais de uma
significação (um sentido literal e um sentido derivado ou contextualizado) e,
reciprocamente, “como” é possível ao ouvinte depreender a significação
desejada pelo falante na hora da emissão deste ato.
Trata-se,
portanto, de um assunto extremamente delicado. Para Maingueneau (1996), a
abordagem do sentido literal e do sentido derivado (indireto) de um determinado
ato de fala suscita outras questões importantes — como a dos tropos — e,
para respondê-las, faz-se necessária à recorrência a opções filosóficas
pertinentes à natureza do sentido e da linguagem.
Searle
(1969), ao questionar o fato de que muitas sentenças indiretas apresentam-se de
uma maneira quase convencional (como em “Você pode alcançar o sal ? ”, por
exemplo), sugere que a emissão dessas sentenças explica-se em função
das condições de realização feliz — condições preparatórias, condições
de conteúdo e condições de sinceridade — dos atos de fala que costumam
veicular indiretamente.
O
referido estudioso propôs algumas explicações para essa problemática, muitas
delas envolvendo os “postulados conversacionais” e, ainda, estruturas
profundas alternativas. Mais tarde, reconhecendo a incompletude das respostas
dadas a suas perguntas, Searle passa a defender a hipótese de que
em
atos de fala indiretos, o falante comunica ao ouvinte mais do que realmente diz,
contando com uma informação de base, lingüística e não lingüística, que
compartilhariam, e também com as capacidades gerais de racionalidade e inferência
que teria o ouvinte. (SEARLE,
2002)
Mais
objetivamente, para Searle (2002), explicar a “parte indireta” dos atos de
fala indiretos prescinde não só da inclusão de uma teoria dos atos de fala,
mas também da recorrência a princípios gerais de conversação cooperativa
(alguns dos quais foram abordados por Grice (1975)), da informação fatual prévia
comum ao falante e ao ouvinte e, ainda, da habilidade que permite ao ouvinte
inferir os atos proferidos pelo falante.
Uma
outra questão comumente associada ao estudo dos atos de fala diz respeito às
condições de sucesso que lhes são inerentes. Isso porque, a partir dos próprios
questionamentos de Austin (1962), sabe-se que um ato de fala não é verdadeiro
ou falso, antes se define por ser bem ou mal-sucedido. Logo, além do mero
respeito a normas estritamente gramaticais, parecem existir algumas condições
de sucesso para que um ato de fala se realize, ganhando vez, então, a célebre
máxima de que ‘qualquer um não pode dizer qualquer coisa em qualquer
circunstância’.
Há
estudiosos, entretanto, que põem em xeque a validade desse questionamento,
apontando o fato de que um ato de fala pode se realizar sem que todas essas
condições de sucesso estejam reunidas, ou seja, ainda que este seja recebido
como nulo ou não ocorrido. A propósito, eis o comentário abaixo:
De
fato, qualquer ato de linguagem tem pretensões, por sua própria enunciação,
à legitimidade. Em outras palavras, aquele que profere um ato de linguagem não
passa primeiro em revista o conjunto das condições exigidas para fazê-lo, mas
o próprio fato de ele estar enunciando implica que essas condições
estejam reunidas. (MAINGUENEAU,1996)
Com
base nessa orientação, Maingueneau (1996) chama a atenção para o fato de que
proferir um ato de fala define uma relação de ‘lugares’, em que os
atuantes da comunicação se auto-questionam sobre os seus respectivos papéis
interativos. O que, muitas vezes, passa despercebido ou, em alguns discursos, as
expectativas não são confirmadas, havendo uma redistribuição dos lugares.
Outro
empenho que tem acompanhado os estudiosos no trato com a Teoria dos Atos de Fala
é a tentativa de classificar esses atos ou, melhor dizendo, os verbos que os
exprimem. Pode-se dizer que há inúmeras propostas nesse sentido e que não há
um consenso da lista dos elementos envolvidos para cada uma das classificações
que são (e foram) sugeridas, demonstrando a complexidade desse assunto.
Mentor
da Teoria dos Atos de Fala, é o próprio Austin (1962) quem dá início ao
desenvolvimento de uma classificação dos atos ilocucionários em certas
categorias ou tipos básicos, a saber: vereditivos, expositivos, exercitivos,
comparativos e compromissivos.
Os
veriditivos representariam a pronúncia de um veredito, oficial ou não-oficial,
acerca da evidência ou das razões relativas a valor ou fato. Eis alguns
exemplos dessa classe de verbos: acquit (inocentar), hold (estatuir), calculate
(calcular), describe (descrever), analyse (analisar), estimate (estimar), date
(datar), rank (hierarquizar), assess (avaliar) e characterize (cararterizar).
Analogamente,
os expositivos estariam ligados a atos em que predominam a explanação de
concepções, o direcionamento de argumentos e, ainda, o esclarecimento de usos
e referências. São listados, entre outros, os seguintes verbos: affirm
(afirmar), deny (negar), emphasize (enfatizar), illustrate (ilustrar), answer
(responder), acceptI (aceitar), object to (objetar), concede (conceder),
describe (descrever), class (classificar), identify (identificar) e call
(chamar).
Da
mesma sorte, os exercitivos consistiriam em atos responsáveis por uma decisão
favorável ou desfavorável a algo. Ou seja, uma decisão que preconiza uma
determinada conduta. São alguns exemplos: order (ordenar), command (mandar),
direct (instruir), plead (pleitear), beg (suplicar), recommend (recomendar),
entreat (rogar), advise
(aconselhar), appoint (designar), miss (exonerar), nominate (nomear), veto
(vetar), declare closed (declarar fechado), declare open (declarar aberto),
announce (anunciar), warn (advertir), proclaim (proclamar) e give (dar).
Já a classe dos comportativos incluiria “... the notion of reaction to
other people’s behavior and fortunes and of attitudes and expressions of
attitudes to someone else’s past conduct or imminent conduct”[3]
(AUSTIN, 1962). Eis alguns exemplos: apologize
(desculpar-se), thank (agradecer), deplore (deplorar), commiserate
(compadecer-se), congratulate (congratular), felicitate (felicitar), welcome
(dar as boas-vindas), applaud (aplaudir), criticize (criticar), bless (abençoar),
curse (amaldiçoar), toast (brindar), drink (beber à saúde), dare (afrontar),
defy (desafiar), protest (protestar)e challenge (contestar).
Por
fim, os compromissivos remeteriam a atos que comprometem o locutor com uma certa
linha de ação futura. Alguns exemplos lógicos são: promise (prometer), vow
(jurar solenemente, fazer voto), pledge (empenhar), guarantee (garantir),
embrace (aderir) e swear (jurar).
Naturalmente,
as propostas de outros estudiosos, via de regra, tomam a distribuição desses
atos proposta por Austin como ponto de referência a uma classificação mais
adequada sobre tal questão. Embora se reconheça a importância do trabalho de
outros filósofos[4],
há um interesse particular, neste trabalho, de apresentar algumas das considerações
teóricas de Searle (2002) sobre a taxinomia dos atos ilocucionários.
Segundo
a taxinomia proposta por Searle, os atos ilocucionários se classificam em: assertivos,
diretivos, compromissivos e expressivos. Como não conseguiu incluir
todos os atos ilocucionários nessas quatro classes, Searle fez valer uma quinta
categoria — a das declarações — para comportar a inserção de
determinados casos, “... em que o estado de coisas representado na proposição
expressa é realizado ou feito existir pelo indicador de força ilocucionária,
casos em que se faz existir um estado de coisas ao declarar-se que ele existe,
casos em que “dizer faz existir”[5]
” (SEARLE, 2002).
Genericamente,
diz-se que os assertivos referem-se a atos que comprometem o falante com
a verdade expressa, de modo que todos os membros dessa classe são avaliados
como “verdadeiro” ou “falso”.
Searle
(2002) chama a atenção, ainda, para o fato de que essa classe contém a
maioria dos atos expositivos de Austin (1962) e também muitos dos seus
vereditos, à medida que estes têm em comum o propósito ilocucionário e
apenas se diferenciam por outras características da força ilocucionária.
Grosso modo, para o estudioso supracitado, um assertivo se definiria em
função de poder se caracterizar literalmente como verdadeiro ou falso.
Delineiam-se
como da segunda classe — a dos diretivos — atos cujo propósito
ilocucionário representam tentativas do falante de levar o ouvinte a fazer uma
dada ação. Entre os verbos caracterizados como dessa classe, estão os
seguintes: ask (pedir, convidar), order (ordenar) e command (mandar).
Basicamente,
a definição adotada por Searle para os compromissivos é a mesma de
Austin, ou seja, a de que estes são os atos ilocucionários caracterizados por
um certo grau de comprometimento do falante com alguma linha de ação futura. A
única ressalva feita é que, para Searle, Austin lista como compromissivos
alguns verbos que não o são, a exemplo de shall (haver de), intend (ter a
intenção de) e favor (favorecer).
A
quarta categoria a que se refere Searle — a dos expressivos — engloba
atos cujo propósito ilocucionário é a expressão de um estado psicológico. A
verdade da proposição é pressuposta. São exemplos nítidos dessa classe:
thank (agradecer), congratulate (congratular), apologize (desculpar-se), condole
(dar pêsames), deplore (deplorar) e welcome (dar as boas-vindas).
Fundamentalmente,
a principal característica das declarações é que, quando realizadas
de forma bem-sucedida, elas garantem a correspondência entre o conteúdo
proposicional e a realidade. Ao nomear com sucesso X para um determinado cargo
(de secretário de uma empresa), por exemplo, X é o secretário[6].
É
necessário frisar, entretanto, que a classificação de Searle (2002) não
representa uma contraproposta ao modelo apresentado por Austin, antes a
redimensiona em alguns aspectos. Na verdade, parece mais adequar afirmar que
Searle “... destacou a necessidade de uma formulação mais abrangente,
mostrando que ela representaria, como instrumento conceitual, uma tentativa de
justificativa para diversidade de atos socialmente reconhecidos, já
contemplados nas primeiras versões da teoria”(MARI, 2001).
Uma vez comentadas as taxionomias propostas por Austin (1962) e Searle (2002) para os atos de fala, convém ressaltar, agora, uma sugestão de aplicação dessa teoria no contexto de sala de aula. Sem negligenciar o texto escrito, mas, antes disso, dando especial atenção à língua falada como um processo discursivo, o professor de Lingüística/ Língua Portuguesa pode fazer valer uma abordagem lingüística que, tomando os pressupostos da Teoria dos Atos de Fala — notadamente, a idéia de que a língua é uma forma de ação — como norte para o desenvolvimento analítico, traduza os diferentes atos de fala (e os efeitos de sentido deles decorrentes) que são gerados em função da exposição oral a que os alunos são constantemente submetidos.
Desse
prisma, o texto é visto como uma unidade semântica global que funciona numa
dada situação comunicativa, realizando-se por meio de uma seqüência de
proposições portadoras de sentido. Particularmente, a sugestão aqui
referendada evidencia o trato com estruturações lingüísticas do tipo dar
chute, bater as botas, tomar banho etc. (denominadas por Alves (1998) de Construções
Lexicais Complexas — doravante CLCs), que, constituídas de verbo + nome
(ou variações), expressam um todo significativo.
Sabe-se que, num contexto de interação face-a-face (a exemplo de uma conversação), falante e ouvinte co-produzem o texto, à medida que interagem entre si. Nesse ínterim, pressões de caráter pragmático freqüentemente se impõem às normas sintáticas, levando o falante a atropelar essas regras e, em favor da interação, usar de repetições, paráfrases, correções, truncamentos etc. Além dessas estratégias, os falantes costumam se valer de elementos lingüísticos que, dotados de uma força X, são capazes de produzir num dado texto diferentes efeitos de sentido. Entre esses recursos, estão as CLCs.
Ora,
analisar uma CLC como um item lexical passível de veicular diferentes efeitos
de sentido na caracterização de um dado texto parece implicar a determinação
dos atos de fala gerados em função de seu uso. Isso porque, como afirmava
Austin (1962), os atos de fala são enunciações que têm como principal
característica a presença de uma ‘ força ilocucionária’ e é exatamente
essa força que conduz a maneira como a mensagem (o ato em si) deve ser
interpretada pelo ouvinte.
Nesse sentido, poder-se-ia
afirmar que é a força ilocucionária inerente aos variados atos de fala
decorrentes da contextualização discursiva que perpassa o uso de uma CLC que
vai ocasionar a pluralidade de sentidos (e de seus respectivos efeitos
discursivos) facilmente evidenciada em textos orais.
Sob essa ótica, é possível, a partir do verbo ilocucionário depreendido do uso de uma CLC identificada no texto do aluno, esboçar o perfil dessa ocorrência, no sentido de classificar o tipo de ato ilocucionário que fora emitido pelo informante ao usá-la como recurso lingüístico-discursivo e, ao mesmo tempo, buscar os efeitos de sentido que esses atos podem veicular no momento da fala registrada. Tomando a classificação dos atos ilocucionários proposta por Searle (2002) como fio condutor de análise, segue, como forma de ilustração, uma contextualização discursiva (extraída do corpus oral VALPB (2001), com a respectiva explicitação do efeito de sentido gerado a partir das propriedades discursivo-pragmáticas do uso de uma CLC:
(1)
E: Que história de amor lhe marcou mais?
I: História de amor (risos) é ruim...
[ de-] é desse [ home] que eu gostei dele aqui em João Pessoa,
que por sinal ainda trabalha comigo, que eu passei cinco ano0 cum ele,
mais ao mesmo tempo me causou uma grande decepção, né? *Porque quando eu tava
cum ele numa boa, pensando que tava abafando, né? Que ele feiz? * Me deu um
belo chute no traseiro, né? E arrumou outra lá. * Uma mais novinha, mais
sem mais jeitosa, e pronto. *Foi um [a-] foi o meu primeiro amor, porque eu
posso de dizer, de namorado, de marido, de amante, de tudo, foi o meu primeiro
amor, e a minha primeira grande decepção. * O que eu posso dizer do amor é
isso. *Agora eu não desacredito no amor. *Eu acredito no amor. *Eu sei, eu sei
que existe. *Mas, eu sei que [ixi —] eu sinto assim, num sabe. *Eu acho bonito
a pessoa um casal ser unido e tal, mais pra mim no momento tá neutro, tá
neutro. (HORA E PEDROSA, 2001)
Submetido a um questionamento sobre algo substancialmente particular ( a propósito de se referir à história de amor que marcou mais), a informante tende a procurar a melhor forma de partilhar um conhecimento acerca de si mesma. Entra em jogo, portanto, a exposição de idéias tomadas como verdadeiras, como asserções. Ao relatar que a história de amor que mais a marcou estava ligada a uma decepção, a informante faz valer o uso da CLC(D) dar um belo chute (no traseiro), trazendo para a sua fala uma possível evidência acerca do que expõe. Na verdade, a real intenção da informante consiste em endossar, para o (a) entrevistador (a), o teor da decepção amorosa por ela vivida. Assim, a emissão de dar um belo chute (no traseiro) se apresenta, pela expansão metafórica que remete à agressividade (tendo em vista o sentido literal: X apanhar de Y), com um efeito de sentido mais intenso, capaz de explicitar melhor a dor da perda de um amor, tal como a de uma pessoa que foi surrada. Traduzindo: a força ilocucionária relativa ao emprego da CLC(D) dar um belo chute (no traseiro) acentua a idéia de a informante ter sido abandonada e trocada por outrem, acarretando um efeito de sentido explicitamente mais forte.
Diante
de tal amostra analítica (ainda que superficial), a hipótese de consolidação
de uma análise que apresente, com base na identificação dos atos ilocucionários
inerentes às CLCs, os diferentes efeitos de sentido que essas estruturações
podem gerar em um dado texto se mostra bastante fértil, mormente em se tratando
da utilização de textos orais, para fins de investigação das propriedades
semânticas globais do fenômeno lexical aqui tratado, que, sem sombra de dúvida,
evidencia a célebre máxima austiniana de que ‘dizer é fazer’.
Logo,
é importante que o professor de Lingüística/Língua Portuguesa se
conscientize da existência de distintas forças ilocucionárias (e de seus
respectivos efeitos de sentido) relacionadas aos atos de fala que são
produzidos por seus alunos nas exposições a que são submetidos e, mediante
essa consciência, torne viva para esses alunos a identidade entre dizer e
fazer, porque “... nisso consiste a essência do pacto social e sua garantia
é exatamente o ato através do qual assume a lei da linguagem como sua” (ARAÚJO
LEITE, 1996).
Evidentemente, outras observações poderiam ser feitas, da mesma forma que muitas outras reflexões e sugestões de aplicação podem ser desenvolvidas em função da Teoria dos Atos de Fala — a exemplo do tratamento dispensado por Araújo Leite (1996) a esse assunto —, mas a efetivação da proposta de trabalho outrora salientada já representa uma abordagem possível e frutífera, uma vez que os falantes recorrem, com bastante freqüência, ao uso de CLCs e estas, graças a propriedades semântico-pragmáticas que lhes são inerentes, podem imprimir o grau de adesão desses falantes ao que ora está sendo enunciado. O que, mais do que evidenciar a máxima de que ´dizer é fazer`, vivifica a idéia de que a linguagem é texto e é também ação.
ALVES,
Eliane Ferraz. Construções Lexicais Complexas com o verbo levar. Tese
de doutorado. Recife: Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da
UFPe, 1998.
ARAÚJO
LEITE, Nina Virgínia de. Ato e dizer. In:
RAJAGOPALAN, Kanavilll (org.). Cadernos
de estudos lingüísticos (Pragmática).Campinas, SP: Unicamp, 1996.
AUSTIN,
J. L. How to do things with words. Oxford: Clarendon Press, 1962.
BENTES,
Anna Christina. Lingüística Textual. In: MUSSALIM, Fernanda e BENTES, Anna
Christina (Orgs.). Introdução à lingüística: domínios s fronteiras.
V.2 . São Paulo: Cortez, 2001.
HORA,
Dermeval da e PEDROSA, Juliene Lopes Ribeiro (Orgs.). Projeto Variação Lingüística
no Estado da Paraíba- VALPB. Volumes I, II, III, IV e V. João
Pessoa: Idéia, 2001.
MAINGUENEAU,
Dominique. Pragmática para o discurso literário.(Tradução de Marina
Appenzeller. Revisão da tradução: Eduardo Brandão). São Paulo: Martins
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MARI,
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MARI, Hugo et al. Análise do discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: Núcleo
de Análise de Análise do Discurso, FALE / UFMG, 2001.
SEARLE,
John R. Expressão e
significado: estudos da teoria dos atos de fala. (Tradução de Ana Cecília
G. A. de Camargo e Ana Luiza Marcondes Garcia). 2ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
[1] Pode-se encontrar também os termos atos de linguagem, atos de palavra e atos do discurso.
[2] Muitos estudos costumam identificar as origens dessa teoria com uma série de contribuições que apontam para o centro de sua atenção — as palavras em ação —, à medida que destacam alguns aspectos que foram tratados em seu desenvolvimento conceitual. Dessa forma, é bastante comum, na história da Teoria dos Atos de Fala, a identificação de suas origens aos jogos de linguagem abordados por Wittgenstein (1979). Há estudos, ainda, que apontam as contribuições de Peirce para a formulação da referida teoria. Sobre esse assunto, é aconselhável a leitura do texto “Atos de fala: notas sobre origens, fundamentos e estrutura” (MARI, 2001).
[3] “...a noção de reação ao comportamento e à sorte de outras pessoas, e a noção de atitude e expressão de atitude diante da conduta passada ou iminente de alguém”.
[4] Entre as propostas de classificação dos atos ilocucionários estão as de J. Habermas (1971), D. Wunderlich (1970), N. Luhmann (1971) e F. Récanati (apud Maingueneau, 1996).
[5] Grifos do autor
[6] Searle chama a atenção, entretanto, para o fato de que muitas sentenças ocultam essa característica, não estando nítida a diferença entre conteúdo proposicional e força ilocucionária.