INTRODUÇÃO

 

Minha prática como professora de língua portuguesa está marcada pela constatação de um quadro que tem sido objeto de estudo para muitos especialistas que se dedicam a investigar os fenômenos envolvidos na leitura e compreensão leitora: a dificuldade dos alunos em compreender, construir sentidos, produzir inferências, ou seja, conseguir, na atividade de leitura, ir além do sentido literal, da mera repetição do que está explícito, da decodificação dos elementos lingüísticos ou não lingüísticos, presentes no texto.

            Sem dúvida, a leitura é um campo de pesquisa que tem muito ainda a ser explorado. E não são poucos os ramos da Lingüística Moderna que, aliados a outras ciências, têm avançado bastante nesse sentido. Entre esse ramos, destaco a Lingüística Textual (LT), que em sua evolução vem se preocupando com aspectos que envolvem a produção e a recepção de textos.

            Neste trabalho, partindo de minha preocupação em formar leitores competentes, críticos, capazes de construir e reconstruir os sentidos do texto, pretendo investigar o papel dos fatores de contextualização na leitura e compreensão do texto não verbal. Parto do pressuposto de que o texto não verbal, por não apresentar elementos lingüísticos na sua construção, necessita da presença dos contextualizadores, os quais servirão de pistas, de chaves, de sinalizadores para abrir as portas da compreensão, possibilitando ao leitor construir sentidos coerentes para o texto.

            A pesquisa fundamenta-se em Marcuschi (1983; 1996), Koch (1997; 2002), Koch e Travaglia (1993; 1997), Fávero (1991), Fávero e Koch (1994), Dell’Isola (2001) e Goodman (1994).

            Primeiramente, apresentarei breves considerações sobre os pressupostos fundamentais que norteiam esta pesquisa. A seguir, descreverei os horizontes da compreensão. Seguem-se comentários sobre os fatores de contextualização e de conexão conceitual-cognitiva. Por fim, é a vez de esclarecer os procedimentos metodológicos adotados na pesquisa, bem como os resultados nela obtidos.

 

2 PRESSUPOSTOS FUNDAMENTAIS: TEXTO, LEITURA E INFERÊNCIA

 

            Para concretizar meu objetivo, parti da concepção de texto de Marcuschi (1996, p. 8), segundo o qual

 

o texto não é um produto nem um simples artefato pronto; ele é um processo. Assim, não sendo um produto acabado, objetivo, como uma espécie de depósito de informações, mas sendo um processo, o texto se acha em permanente elaboração e reelaboração ao longo de sua história e ao longo das recepções pelos diversos leitores. Em suma, um texto é uma proposta de sentido e ele se acha aberto a várias alternativas de compreensão. Mas todo cuidado é pouco, pois o texto também não é uma caixinha de surpresas ou algum tipo de caixa preta. Se assim fosse, ninguém se entenderia e viveríamos em eterna confusão. 

 

            Considerei também a concepção de leitura de Goodman (1994, n. p.), para quem a leitura é

 

(...) um processo psicolingüístico cíclico, pois, após seu início, o cérebro recebe o “input” ótico e seleciona, mediante a percepção, o que foi mais relevante dentre toda informação disponível, utilizando, para isso, os sistemas ortográfico, sintático e semântico da língua. Há, portanto, quatro ciclos (ótico, perceptual, sintático e semântico) que, juntamente com as estratégias cognitivas, tornam possível a eficácia da compreensão. Por conseguinte, os leitores devem ser direcionados para os diversos tipos de texto, estilos, propósitos, e orientados para o uso de estratégias, enquanto aprendem a selecionar, predizer, confirmar e contestar hipóteses formuladas durante a leitura.”

 

Para definir inferência, parti de Dell’Isola (2001, p. 44), para quem

 

inferência é um processo cognitivo que gera uma informação semântica nova, a partir de uma informação semântica anterior, em um determinado contexto. Inferência é, pois, uma operação mental em que o leitor constrói novas proposições a partir de outras já dadas.

 

3 HORIZONTES DA COMPREENSÃO

 

            Embora não seja uma atividade com regras exatas, isso

 

(...) não quer dizer que a compreensão seja uma atividade imprecisa de pura adivinhação. Ela é uma atividade de seleção, reordenação e reconstrução, em que uma certa margem de criatividade é permitida. A compreensão é, além de tudo, uma atividade dialógica que se dá na relação com o outro. É uma via de mão-dupla (MARCUSCHI, 1996, p. 10).

 

            Ainda de acordo com o autor acima citado, a compreensão abarca cinco horizontes possíveis:

a)      Falta de horizonte – nesta perspectiva, o leitor repete ou copia o que está dito no texto; seu trabalho se reduz a mera atividade de repetição;

b)      Horizonte mínimo – neste caso, o leitor parafraseia o que está dito no texto, sua interferência é mínima;

c)      Horizonte máximo – essa é a perspectiva que considera a geração de inferências no processo de compreensão a partir da reunião de informações textuais e não textuais; possibilita ao leitor exercitar seu raciocínio lógico, prático, estético, crítico, etc.

d)      Horizonte problemático – neste horizonte, o leitor, a partir de uma grande inserção de conhecimentos bem pessoais, extrapola as informações contidas no texto, realizando, assim, uma leitura de “caráter idiossincrático” (MARCUSCHI, 1996, p. 11);

e)      Horizonte indevido – este é o horizonte da leitura indevida ou proibida; “É a área da leitura errada” (MARCUSCHI, 1996, p. 11). 

 

4 FATORES DE CONTEXTUALIZAÇÃO: OS CONTEXTUALIZADORES E OS PERSPECTIVOS

 

Os fatores de contextualização delimitam o texto em uma situação comunicativa determinada. Não são fatores pertencentes ao texto, mas “(...) elementos que contribuem para equacionar alternativas de compreensão” (MARCUSCHI, 1983, p. 16).

 

4.1. CONTEXTUALIZADORES

 

            Os contextualizadores propriamente ditos ajudam a situar o texto e, conseqüentemente, a estabelecer a coerência (data, local, assinatura, elementos gráficos).

 

 

 

 

 

4.1. PERSPECTIVOS

 

            Os perspectivos são fatores que permitem fazer previsões sobre conteúdo e forma do texto (título, autor, início do texto).

            Tanto os contextualizadores quanto as perspectivas ajudam na interpretação do texto e desempenham papel importante no estabelecimento da coerência.

 

4.2 FATORES DE CONEXÃO CONCEITUAL-COGNITIVA (COERÊNCIA): FRAMES, ESQUEMAS, PLANOS, SCRIPTS

 

            Segundo Koch e Travaglia (1997, p. 21),

 

(...) a coerência está diretamente ligada à possibilidade de se estabelecer um sentido para o texto, ou seja, ela é o que faz com que o texto faça sentido para os usuários, devendo, portanto, ser entendida como um princípio de interpretabilidade, ligado à capacidade que o receptor tem para calcular o sentido do texto.

 

            Para o estabelecimento da coerência, ou seja, para que o receptor construa um sentido para o texto, ele se apóia em duas fontes de informação bem diferentes: a visual (presente no texto) e a não visual (disponível em seu sistema cognitivo). Ambas se completam. A primeira fornece dados para que se levantem hipóteses, para que o leitor ative o seu conhecimento de mundo – fator decisivo no estabelecimento da coerência.

            Esse conhecimento, adquirido à medida que tomamos contato com o mundo e vivemos novas experiências, é armazenado em nossa memória através de blocos denominados modelos cognitivos globais, assim divididos (cf. MARCUSCHI, 1996 e KOCH; TRAVAGLIA, 1997):

 

4.2.1 FRAMES

 

Contêm conhecimento do senso comum sobre um conceito central (Natal, viagem aérea). Não há entre os componentes relação de ordem ou seqüência (lógica ou temporal).

 

4.2.2 ESQUEMAS

 

Diferem dos frames porque aqui os elementos são ordenados numa progressão, de modo que se podem estabelecer hipóteses sobre o que será feito ou mencionado a seguir no universo textual (comer em um restaurante, pôr um carro em movimento).

 

4.2.3 PLANOS

 

São modelos de acontecimentos e estados que conduzem a uma meta pretendida. Todos os elementos são organizados numa ordem previsível, para um fim planejado (texto instrucional).

 

4.2.4 SCRIPTS

 

Planos estabilizados, utilizados ou invocados com muita freqüência para especificar os papéis dos participantes e as ações deles esperadas. Difere dos planos por conterem uma rotina preestabelecida (um todo seqüenciado de maneira estereotipada, inclusive em termos de linguagem. Ex.: missa, batizado).

 

5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

 

            A fim de investigar o papel dos contextualizadores na leitura de um texto não verbal, utilizei uma charge publicada no Jornal do Commercio, em 16 de junho de 1996, que ilustrava uma matéria sobre a meia-entrada para estudantes. O texto foi lido por dez graduandos do curso de Letras da Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE). Alguns critérios nortearam a escolha desse texto:

 

 

·        Minha prática em sala de aula com o texto não verbal;

·        O desafio de trabalhar com o não-verbal, uma vez que as pesquisas sobre leitura e compreensão priorizam o texto verbal escrito ou oral;

·        A familiaridade e o interesse do sujeitos-leitores sobre o tema;

·        O fato de os contextualizadores, principalmente no texto não verbal, serem as pistas para ativar os conhecimentos armazenados na memória e impulsionar a geração de inferências.

 

O conjunto de textos que constitui o corpus de análise compõe-se de dez fichas elaboradas pelos alunos. Nelas, eles registraram suas predições e expectativas sobre a situação comunicativa configurada no texto lido. Não houve controle de variáveis nem critérios específicos para a escolha do sujeito-leitor. E a coleta de dados foi a mais assistemática possível. Para analisar os resultados, lancei mão do diagrama apresentado por Marcuschi (1996, p. 11-12) sobre os tipos de horizontes de compreensão possíveis.

Dividi a pesquisa em dois momentos. No primeiro momento, o texto foi entregue aos leitores sem os contextualizadores (ver Anexo A), ou seja, sem qualquer elemento lingüístico que contribuísse para que o leitor avançasse em suas expectativas a respeito do texto (cf. MARCUSCHI, 1983, p. 16-25). Já com o texto em mãos, os alunos receberam os seguintes comandos:

 

·        Observar cuidadosamente todos os elementos presentes no texto (espaço, figura, expressões, objetos, detalhes);

·        Relacionar esses elementos ao seu conhecimento de mundo, ou seja, ativar o sistema cognitivo (frames, esquemas, scripts, planos);

·        Anotar em ficha as expectativas e possíveis predições sobre a situação comunicativa que o texto configura.

 

No segundo momento, após a realização das atividades descritas, o mesmo texto – agora com os contextualizadores (título e subtítulo da notícia, fonte, data, localização, início do texto: ver Anexo B) – foi apresentado aos mesmos leitores. O objetivo era proceder a uma comparação entre as predições construídas com a leitura do não-verbal descontextualizado e as predições construídas com a leitura do não-verbal contextualizado, a fim de verificar o que mudaria, se acrescentaria e poderia ser inferido nas predições registradas no primeiro momento. Tentou-se, assim, ressaltar a importância dos contextualizadores para a compreensão e estabelecimento da coerência do texto. O resultado dessa comparação foi apresentado e discutido oralmente pelo grupo. Ressalte-se ainda que não investigamos, nesse momento, o porquê das predições registradas.

 

 

 

 

6 RESULTADOS E COMENTÁRIOS

 

            As predições apresentadas pelos sujeitos participantes da pesquisa quanto à situação comunicativa configurada pelo texto sem os contextualizadores foram:

 

SITUAÇÃO COMUNICATIVA

N.º

Predição

1

“Estudante tenta assistir a um peça imprópria para a sua idade”.

2

“Organizador de baile de máscaras exige credenciais para deixar mulher entrar”.

3

“Peça teatral com o objetivo de incentivar os estudantes a ir ao teatro”.

4

“Nos eventos, por só pagar meia-entrada, o estudante é recebido com insatisfação”.

5

“Peça teatral, com dois atores, retrata o momento político brasileiro atual”.

6

“Exibição de uma peça de teatro com atores mascarados”.

7

“Exibição de uma peça de teatro cujo público é recepcionado pelos autores”.

8

“A diretora da peça mostra um espelho ao ator para que veja a sua imagem e perceba sua representação”.

9

“Na portaria do teatro, uma estudante é recepcionada pelo segurança que usa uma máscara para intimidá-la. Ela apresenta a carteira de estudante para provar que tem direito à meia-entrada”.

10

“Um diálogo entre uma moça e um gigante que usa uma máscara para disfarçar suas feições”.

 

            Das dez predições, apenas duas (4, em particular, e 9) chegaram ao horizonte máximo, ou seja, construíram sentidos a partir da reunião de várias informações do próprio texto, da introdução dos conhecimentos pessoais e de outros conhecimentos não contidos no texto.

Outras permaneceram no horizonte problemático, quer dizer, não são a princípio inadequadas, mas extrapolam o texto, uma vez que a inserção de elementos e conhecimentos de caráter estritamente pessoal é muito grande. Tomem-se por exemplo as predições 1, 3, 6 e 7.

No horizonte indevido, ou seja, o da leitura errada, não autorizada pelo texto, considerando ser o texto não verbal e a forma como foi apresentado aos leitores, estão as predições 2, 5, 8 e 10.

 

CONCLUSÃO

 

            Com base nessa breve pesquisa, foi possível constatar que , na atividade de leitura do não-verbal, os fatores de contextualização desempenham um papel decisivo na construção de sentido e no estabelecimento da coerência. Além disso, a ausência de elementos contextualizadores, se por um lado limita o horizonte da compreensão, por outro impulsiona o leitor a ativar maximamente seu conhecimento de mundo (modelos cognitivos globais). Contudo, isso não garante o estabelecimento de relações lógicas entre os modelos ativados e o sentido do texto. A ausência dos fatores de contextualização ainda impossibilita a leitura crítica e enseja a leitura e a geração de inferências não autorizadas pelo texto (pois, como lembra Marcuschi (1996), já citado na introdução do trabalho, o texto não é uma “caixinha de surpresas” ou algum tipo de “caixa preta” que permita toda e qualquer proposta de sentido ou alternativa de compreensão).

 

 

REFERÊNCIAS

 

DELL’ISOLA, Regina Lúcia Péret. Leitura: inferências e contexto sociocultural. Belo Horizonte: Formato, 2001. (Série Educador em Formação).

 

FÁVERO, Leonor Lopes. Coesão e coerência textuais. São Paulo: Ática, 1991. (Coleção Princípios, 206).

 

_____ ; KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Lingüística textual: uma introdução. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1994. (Série Gramática Portuguesa na Pesquisa e no Ensino, 9).

 

GOODMAN, Kenneth S. Reading, writing and written texts: a transactional sociopsychological view. In: RUDDELL, Robert B.; RUDDELL, Martha R.; SINGER, Harry. Theoretical models and processes of reading. Newark, Delaware: IRA, 1994.

 

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Lingüística textual: retrospecto e perspectivas. Alfa, São Paulo, v. 41, p. 67-78, 1997.

 

_____ . Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

 

_____ ; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Coerência textual. 8. ed. São Paulo: Contexto, 1997.

 

_____ ; _____ . Texto e coerência. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1993. (Biblioteca da Educação – Série 5 – Estudos da Linguagem, 4).

 

MARCUSCHI, Luiz Antonio. Lingüística textual: o que é e como se faz. Recife: UFPE, 1983. (Série Debates, 1).

 

_____ . Exercícios de compreensão ou copiação nos manuais de ensino de língua? Apostila de aula, 1996.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ANEXO A

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ANEXO B

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ANEXO A

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


ANEXO B

 

 

 

 

DESCONTO GERA POLÊMICA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


JC – 16/06/1996