O conto O ladrão, do livro Insônia, reflete diferentes momentos e influências pessoais de Graciliano Ramos. Neste conto sente-se haver uma espécie de afunilamento de sua estrutura, reduzindo assim o espaço da personagem central, obrigando-a a voltar-se para si mesma.
O
tempo da narrativa gira em volta da figura do pretenso herói. Este tenta
se equilibrar entre as influências e conselhos do amigo gaúcho e a desconfiança
que nutre, por si mesmo. A grande preocupação da personagem é não
decepcionar o amigo ladrão, de quem se mostra grande admirador. Entretanto, o
medo e a insegurança roubam da personagem a possibilidade de ir adiante na ilusão
de vir a tornar-se um herói, buscando auto-afirmação.
Sendo assim, conclui-se que o anti-herói só deixa de ser herói pelo fato de não se enquadrar no esquema de valores subjacentes do ponto de vista da narrativa (KOTHE, 1987).
O leitor habilitado com o estilo graciliânico capta os gestos vacilantes e inábeis do rapaz que tenta se projetar na imagem do outro, buscando com isso auto-afirmar-se.
O narrador lê o interior da personagem, desnudando-a. Neste conto, por exemplo, o leitor capta uma pesada atmosfera que, no prolongamento da história, torna-se cada vez mais densa em virtude da reiteração de idéias, que vão e voltam, insistem e resistem; ou ainda, pelas pancadas do relógio ou outro barulho, que aniquilam a ação da personagem, presa a uma obsessão qualquer que a paralisa e a torna inapta para desenvolver a ação que a eleve, tirando-a daquela posição irrelevante.
A nossas escolha para análise de conto, é possível até, que pareça estranha ,a alguns, haja vista ser o gênero conto, não tão considerado, quanto o romance e outros. Entretanto, deveu-se exato por esse motivo, ser este gênero, não tão lido, não tão estudado, que resolvemos trabalhá-lo. E , de modo específico do escritor Graciliano Ramos.
Aos nossos olhos, esse conto comporta em sua estrutura temática, temas por demais interessantes como: as questões sociais que envolvem, a marginalidade, e o desamparo dos jovens; questões econômicas que, na verdade geram outros tantos desajustes e desequilíbrios na vida dos cidadãos.
A personagem luta permanentemente consigo mesma para vencer suas fragilidades físicas e psicológicas. Enquanto isso, o narrador, consciente do seu papel, põe-se em estado de profundo gozo, no trabalho de desnudamento da personagem que está cada vez mais exposta ao exame interior.
A essa altura, a narrativa já vislumbra e referencia o anti-herói pleno e citado como tal, haja vista seu amedrontamento, sua pouca capacidade para se estabelecer na vida do crime. Dado esse movimento entre a ação da personagem e o regimento da narrativa, o herói não se recuperará: caminha para em definitivo deixar-se flagrar pela ação policial, desmascarando-se social e moralmente:
O resto se narra nos papéis da policia, mas ele zonzo, moído, só conseguiu dar informações incompletas e contraditórias. É em vão que o interrogam e machucam. Sabe que ouviu um grito de terror e barulho nos outros quartos[...](RAMOS,1983, p. 35).
Na essência do conto, está de modo diluído e intenso o prazer do narrador em penetrar introspectivamente no interior da personagem. Essa forma de narrar adensa a tensão em torno da personagem, como que para testar sua capacidade de reação momentânea.
A narrativa segue algumas normas estratégicas do modo de narrar de Graciliano, que visa atingir e aprofundar viagem ao interior de suas criaturas personagens, possibilitando ao leitor sentir intensamente o desenrolar da história.
Ao narrador compete saber atrair a atenção do leitor, comunicando com energia, sentimento e brevidade para seduzir a ação de quem lê.
O sentimento apreendido em todo texto e a falta de preparo da personagem para enfiar-se em empreitada de tal monta: assaltar residências. Algumas características faltam-lhe: frieza emotiva, descontração dos movimentos que deve ter alguém que deseje habilitar-se para tal função. O pensamento da personagem flui ao leitor pelo processo narrativo que é o do narrador onisciente.
Tinha
capacidade para aquilo? Não tinha. Um ventanista. Que é que sabia
fazer? Saltar janelas. Um
ventanista apenas. A vaidade
infantil murchou de repente. Se o
descobrissem, nem saberia o que fazer,
nem acertaria com a
saída (RAMOS, 1983, p. 28).
O narrador aqui presente é penetrante. Varre a alma, descortina os sentimentos mais recônditos, mais recolhidos, mais angustiantes. É esse o universo rico de que se compõe a arte de Graciliano. O contar graciliânico é singular. Passa pelo ambiente das secas do nordeste, seguindo cortante pela crítica e denúncia social. Entretanto, em O ladrão, a tese mais afirmativa e mais exposta é a visão psicológica do autor.
Em
todos os seus escritos, especialmente em Memórias do cárceres, Infância e
Angústia a preocupação com o psicologismo é algo quase aderente a sua
escritura.
Graciliano
contempla não apenas as coisas propriamente humanas, mas a própria consciência
das criaturas por ele criadas e vida dadas. Atento às intempéries do seu
tempo, verifica a situação conflitante em que o homem é o lobo do próprio
homem, e ao intelectual cabe o papel de pensar a angústia, a prisão, as
injustiças e transformá-las em arte. Em sua visão crítica, emprestada à
narrativa, não há espaço para festas, alegrias; há sombras, desespero e
agressão recontados e recolhidos na memória. Como ele próprio justificara em
sua vida. “Só me abalanço a expor a coisa observada e sentida”
(RAMOS, 1983, p. 44).
Retornemos
ao texto e suas margens, que vão sublinhando o contar do narrador, mostrando verdades
narraticas. O ritmo do texto nos diz cada passo do anti-herói, nos
conta dos seus medos, vacilos, revelando o fundo de suas emoções e pré-sentimentos.
Pouco
a pouco o mundo sombrio de sua infância vem à tona como em um túmulo recém-descoberto.
As margens seguem tênues ou fortes, belas ou feia, porém, revelando sempre o
confuso e triste mundo infanto-juvenil.
Durante
minutos, lembrou-se da escola do subúrbio. A professora
interrogava-o pouco, indiferente. O vizinho mal encarado, que espetava
com pontas de alfinetes, mais tarde virava soldado. A menina de tranças
era linda, falava apertando
as pálpebras, escondendo os olhos verdes (RAMOS, 1983, p. 24).
Neste,
como em outros contos, há uma ressonância de fatos e memórias de vida,
ligados à personagem enquanto ficção. Quem alerta para essa possibilidade é
Farias (1987) no texto Graciliano Ramos
e o sentido do humano.
Possível
haver de fato em suas personagens, resquícios da infância e adolescência do
próprio autor.
Diferentemente
de outros romancistas, Graciliano sempre primou em recuperar o passado em sua
literatura. Há, na verdade, um mostruário de vozes que dialogam com outros
textos e ressurgem em outros criadores. Compreendemos essa realidade de criação
literária graciliânica como sendo reflexo de experiências que se manifestam nos movimento
do herói e, conseqüentemente, na precipitação deste para o caminho do
crime.
A
personagem central do conto, ora em estudo, é incitada por lembranças e influências
que a estimulam a agir de lado contrário, até
mesmo ao que as suas mais secretas resistências procuram desestimulá-la a
prosseguir em busca da loucura maior, que é projetar-se na escola do crime. No
desejo desenfreado da auto-afirmação se expõe inutilmente. É ai que vemos um
traço desse herói com o herói de Dostoiévski, haja vista ser
este tipo de herói que é estimulado a agir em certa direção, mesmo
indo contrário ao que o seu mais fundo ego procura evitar: a aventura descabida
de adentrar-se à tragédia, ao crime.
O
conto nos revela ser as lembranças da menina de olhos verdes a motivadora para
encaminhá-lo ao crime. A propósito dessa personagem e outros que convergem
perigosamente para a tragédia, como é o caso de Luiz da Silva, personagem
problemática de Angústia, que por ciúmes comete loucuras, mata o
rival. Em São Bernardo, Paulo Honório, envolto em desesperada luta de
ascensão social, atropelou meio mundo, revelou-se um bruto, insensível,
desencadeando a tragédia que foi vítima Madalena. Disse Feldman (1987, p. 277)
em Reflexos de sua personalidade na obra “Graciliano conhece a força
que tem o crime para a auto-afirmação do indivíduo”.
A visão impiedosa do mundo, mostrada em seus livros, prima acima de tudo, pela feitura de personagens que expressem um pouco de sua própria insatisfação com o mundo, com os reveses das gentes do nordeste.
Ambiência urbana em que se desenvolve o enredo do conto, revela por sua vez, a miséria gritante dos grandes centros que se afiguram de outro modo, qual seja pela marginalização de menores, fato absolutamente corriqueiro no Brasil atual. A personagem de O ladrão, é um adolescente, perdido, desencaminhado, como tantos que vemos na mídia hoje.
Esses resquícios das memórias de Graciliano, estão revelados nas páginas de um conto, que além de representar um gênero literário – menos valorizado que o romance por exemplo, é também um objeto de comunicação e de denúncia social; traço forte em sua obra.
O tom do narrador, relata a aventura da personagem com precisão e ironia típica da literatura dita moderna. Aliás, bem presente nos textos do autor.
Aventura entremeada de incidentes, realçam a cada passo, a insegurança e dificuldades para o principiante de ladrão firmar-se naquela (des)ventura.
A breve narrativa vai se comprimindo e a personagem central permanece confusa. Às vezes mentindo para si mesma, querendo enganar-se quanto ao seu amanhã.
Os gestos nervosos, incontidos, parecem desejar o fim de tudo. Vê-se livre de todo aquele pesadelo representa no momento, seu maior anseio. O olhar inquieto, busca e tenta encontrar outros olhos ávidos, a flagrá-lo em fraquezas. Nessa busca inquietante, debruça o olhar sobre o casal de velhos a dormir. Esconde-se por entre os móveis, agacha-se, à luz solar parece perseguí-lo, focaliza-o, é quase uma forma de denunciar seus deslizes.
No vigésimo sétimo parágrafo do conto, o aventureiro personagem, ainda agachado por entre a mobília da casa, roda o olhar em volta e vê um braço caído – aí constatamos um certo repúdio e preconceito por pertencer a “velha rica de gordura nojenta”. Fala a personagem. Nessa fala, há toda uma ideologia contra a burguesia. Revolta, quando diz : “[...] Braço de velha rica [...] A mão era popuda e curta [...]” (RAMOS, 1983, p.28).
Aliás, ideologia é o que não falta nesse conto. Constatamos também, ideologia religiosa, quando na andança pela casa, na ânsia de realizar-se como ladrão-arrombador, o personagem diz: “Se não acontecesse uma desgraça, procuraria Gaúcho [Num pequeno gesto apressado – o menino] benzeu-se arrepiado” (RAMOS, 1983, p.27). Neste gesto está o medo de que algo não dê certo. Está contido também uma espécie de imunização; é como se, o simples gesto de benzer-se o livra-se de qualquer mal que pudesse ameaçá-lo.
A esse respeito, os estudiosos dizem:
[...]
Arte e ideologia não são elementos excludentes. Não há arte sem ideologia
nem ideologia sem arte; não há obra de arte que não seja também ideológica
e não há ideologia que não possa ser utilizada na produção artística (KOTHE,
1987, p.18).
Em sua modesta condição de aprendiz, reconhecia-se fraco. Não somava os anos de experiências de Gaúcho. “Aquele sim [...] Anos de prática, diversas entradas na casa de detenção” (RAMOS, 1983, p.29).
A
propósito de Gaúcho – esclareça-se, antigo amigo que Graciliano conhecera
na prisão e aquele, manifestara o desejo de aparecer em seus livros. A
personagem do conto, nascera das memórias do autor, ao lembrar de história
semelhante, que lhe fora revelada, sobre o aprendiz de ladrão-arrombador.
Além de personagem em Memórias do cárcere, é citado também em O
ladrão.
Como
já se disse, é a obra graciliânica fonte plena de imagens do passado. Memórias.
Memórias de vida e experiências que lhe marcaram a alma a ferro, a fogo. A
esse respeito, escreveu Sodré (1983, p. 16) em prefácio de Memórias do cárcere:
Escreveu,
realmente, com exatidão espantosa, com rigor excepcional. Tudo o que é negro,
em sua narração, é negro pela sua própria natureza, o que é sórdido porque
nasceu sórdido, o que é feio é mesmo feio. Não há pincelada do narrador, no
sentido de frisar traços, de agravar condições, de destacar minúcias
denunciadoras.
O tom corrosivo, irônico do texto, espelha de certo modo, a ideologia do autor, ou sua visão sobre o mundo. O texto contém, ou filtra reminiscências de uma sociedade histórica, economicamente e socialmente constituída, sob às leis do capitalismo, em que o ser humano é transformado em escravo do consumismo e, por isso mesmo, sujeito alienado dos seus reais valores. Imagem da personagem central.
Bosi (1988) em Interpretação da obra literária, enfatiza a perspectiva do tom no texto literário e diz:
Não
há grande texto artístico que não tenha sido gerado no interior de uma, dialética
de lembrança pura e memória social; de fantasia criadora e visão ideológica
da história de percepção singular das coisas e cadências estilísticas
herdadas no trato com pessoas e livros (BOSI, 1988, p. 278).
É, pois, nesse sentido que o texto graciliânico reflete um passado de consciência social e de Ser histórico, que interage: recolhimento de memória, que não deixa morrer, o sentido plural de vivências experimentadas e, repassadas a estrutura e forma do texto enquanto objeto de arte.
Olhando
o texto literário como forma simbólica, resultado inteligível, soma de vários
fatores e, portanto mensagem artística trabalhada também como objeto de
comunicação. Panofsky
apud Bosi (1988, p. 279) afirma:
[...]
O sujeito para o qual se abre o evento significativo, o sujeito que sente, pensa
e escreve, não é um eu abstrato, posto fora ou acima da história concreta dos
seus semelhantes. Ele percebe e julga as situações e os objetos através de um
prisma que foi construído e lapidado ao longo de anos e anos de experiência
social, com todas as constantes e surpresas que esse processo veio manifestando.
Entre anseios e devaneios da personagem central do texto, evidencia-se o que alguns estudiosos do gênero conto já disseram:
O
conto é uma narrativa breve; desenrolando um só incidente predominante e uma só
personagem principal, contém um assunto cujos detalhes são tão comprimidos e
o conjunto do tratamento tão organizado, que produzem uma só impressão
(MATHEWS apud GOTLIB, 1985, p. 60).
A personagem do conto em análise, se move numa circularidade própria da estrutura do conto como também do foco de suas intenções. É, pode-se dizer, possuidora de um mundo autônomo.
Personagem pesada pelo acúmulo de problemas criados incidentalmente por sua inabilidade em conduzir-se satisfatoriamente a um alvo não realizável.
Dentre as várias definições sobre como deveria ser a estrutura do conto e, elementos que o formam, há divergências em alguns pressupostos, convergências entre outros. Há entretanto, consenso pela estrutura do conto de boa qualidade literária, o que com certeza, contempla Graciliano pelo esmero e estética de que se compõe toda a sua obra.
Para
Gardime apud Battella (1985, p. 55):
O
conto representa o real, através de flashes de luz, intermitentes como o piscar
de vagalumes[...] [E, acrescenta:] [...] Assim concebido, o conto seria um modo
moderno de narrar, caracterizado por seu teor fragmentário, de ruptura com o
princípio da continuidade lógica, tentando consagrar este instante temporário.
A nós, o que parece definir, ser o conto ruim ou bom, é o procedimento do autor e não propriamente este ou aquele elemento isolado. Alguns elementos, e o modo como o autor se empenha para estruturá-lo, podem encaminhar o conto e torna-lo significativo.
Por exemplo: em O ladrão, o autor escolhe a expressão, “Sim, não, sim, não” (RAMOS, 1983, p. 16) e a usa como recurso, marcando bem o momento de hesitação e insegurança que movem aquele aprendiz.
No plano do significante, amplia-se o sentido da incerteza, de franqueza demonstrados pelo anti-herói. Ele não se mostra em nenhum momento – inteiro, convicto de alguma ação mais objetiva. A postura é sempre ambígua, incerta; de quem não sabe que caminho seguir, quando e de que modo, conseguia ser firme.
Há dois caminhos. O caminho do bem, e o caminho perigoso, ondulante, incerto, sem nem ao menos saber, se capaz será de realizar alguma ação que lhe valha elogio. Falta a sua trajetória, reconhecimento, afirmação de Gaúcho, legitimando-lhe o talento. A chave do segredo está com Gaúcho. Levantar-lhe o ânimo, elevar sua auto-estima; se possível, às nuvens.
De outro modo sim. Desse jeito furtivo, inseguro, esse quase ladrão não mais iria a lugar nenhum.
Ter Gaúcho como modelo, espelhar-se em suas ações, não o fez progredir; ao contrário, não lhe permitia ir adiante, caminhar com as próprias pernas. O outro, era uma sombra a empanar-lhe às vistas. Observe-se que o pensamento da personagem ávida, sôfrega de desejo de que Gaúcho possa enfim, salientar-lhe alguma habilidade:
[...]
arrecadou objetos miúdos. Queria penetrar no quarto iluminado, mas não
conseguia saber o que o empurrava para lá. Boiavam-lhe no espírito dois esboços
de projetos: contar o dinheiro, coisas que não poderia fazer no corredor, e
descrever a Gaúcho a aventura (RAMOS, 1983, p. 29).
A personagem central do conto, aos poucos têm todas as suas ideologias reveladas pelo narrador, ativo, arguto. Em sua fala projeta –se a ideologia de que as coisas difíceis Têm um valor absoluto, são mais valiosas que outras mais fáceis de realizar-se. Essa imagem vai tomando corpo, quando de repente, em estado de quase êxtase -, na falsa ilusão que Gaúcho perceba nele um diferenciador, ou desempenho digno de menção, consegue apanhar algumas cédulas – sem grande esforço. No fragmento do texto percebe-se o pouco valor, que a personagem dera a seu feito. [..] o maço de notas, adquirido facilmente, nem lhe dava prazer (RAMOS, 1983, p. 34).
A ação advinda do pequeno furto, não lhe fazia sentir-se importante, caminhado para ser um Gaúcho no futuro. Entretanto, para aquele maço de notas, ele ousara planejar o futuro. Procuraria, botar botequim na periferia da cidade, fugiria daquele perigoso deslumbramento de vir a torna-se um segundo Gaúcho; procuraria ser um homem decente, honesto, esqueceria tudo. Libertar-se-ia daqueles sonhos perversos. Tudo aquilo que vivera ou procurara realizar sob as influências da imagem do outro, parecia-lhe loucura, doidice!.
Em sua cabeça de adolescente confuso, desajustado, muitas imagens, sonhos surgiam, desapareciam; parecia querer aquietar-se. Os sonhos de vir a ter vida própria, ser autônomo, dono de café, com tudo que os fregueses têm direito, dava-lhe alento. Diante do fracasso advindo de querer transformar-se em um ladrão experto, talentoso, o que dificilmente realizar-se-ia; transformar-se em dono de café, no subúrbio da cidade, representaria vitória. Viveria tranqüilo – sem precisar correr tantos riscos, viver sob a ameaça da polícia, não lhe parecia ser tão atraente assim. Sabia ser muito perigoso. Correr riscos. Viver sob ameaças, e de repente, parar em uma casa de correção. Essa idéia lhe punha medo.
Esse conto entre outros de Graciliano, revelam bem, as características estéticas e ideológicas do autor, como ainda, percebe-se a universalidade do tema trabalhado.
Isso não é suficiente. É preciso que se reconheça entre outros atributos desse estilo de contar, de narrar tema instigante e atual. Daí, esse traço moderno, sem ser modernoso da escritura de Graciliano.
Pelo que lemos, recolhemos de outros escritores e estudiosos do gênero conto, ousamos nos convencer, e a quem se deixar, que, dada a estrutura desenvolvida do conto, elementos trabalhados que objetivam realçar a presença de uma personagem central, o afunilamento das ações centrando a narrativa em movimentos que permitem que tudo gire em torno dessa personagem, caminhando para um fim difícil, sem gloria, sem brilho; tudo isso, ratifica o que já não pomos dúvida; este é um conto literário e significativo. Segundo afirma Cortázar apud Battella (1985, p. 68):
Um
conto é significativo quando quebra seus próprios limites com essa explosão
de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai muito além da
pequena e às vezes miserável história que conta.
Ouvido
atento , sensibilidade atinante aos problemas do homem, são esses alguns
caracterizadores circunscrito em toda obra graciliânica.
Neste
conto, há sem sombra de dúvidas, todas as preocupações, as quais, o autor
sempre se mostrara interessado.
Há,
em toda estrutura do conto, disseminada em cada palavra, em cada linha, uma espécie
de reconstiuição de memórias que foram a Graciliano, caras, inesquecíveis.
Nada em seus livros, aparece por acaso. Como já se disse anteriormente, a
personagem única e central desse conto, originou-se de conhecimento que
Graciliano fizera com Gaúcho na casa de correção, e dele escutara o contar da
história do aprendiz de ladrão, que mais tarde faria parte do conto O ladrão.
Era próprio de Graciliano dar voz à aqueles que não tinham; quando ninguém
estava pronto a ouvir, era Graciliano quer o fazia com maior atenção.
O
fato de ser uma narrativa breve, como bem enfoca Battella (1985) em a Teoria
do conto, este é um diferenciador dentre as demais formas de narrar.
E por isso mesmo, o contista pode tirar partido dessa brevidade, para tornar sua
história, sua narrativa, uma forma encantatória de se ler.
Não
menos diferente Lima apud Battella (1985, p. 63-64) diz:
O
conto é uma obra de ficção; uma obra de ficção em prosa; uma obra curta de
ficção em prosa. E completa: o tamanho, portanto, representa um dos sinais
característicos de sua diferenciação. Podemos mesmo dizer que o elemento
quantitativo é o mais objetivo dos seus caracteres. O romance é uma narrativa
longa. A novela é uma narrativa média. O conto é uma narrativa curta. O critério
pode ser muito empírico, mas é muito verdadeiro. É o único realmente
positivo.
Ainda
descrevendo sobre a brevidade do conto, Friedman apud Battella (1985, p. 64)
afirma: “ Um conto é curto porque, mesmo tendo uma ação longa a mostrar,
sua ação é melhor mostrada numa forma contraída ou numa escala de proporção
contraída”.
Do
enfoque dado ao conto, resta compreender que, o que de fato deve prevalecer
nessa forma e gênero de contar, deve ser a qualidade literária do conto, e,
sobremaneira o uso de elementos estruturadores que permitam ao leitor sentir
abundantemente o pleno desejo de devorar o texto, lê-lo nas entrelinhas e
mergulhar nas discursividades estéticas e ideológicas que sempre se acumulam
nas varias faces que envolvem as palavras dentro do contexto intertextual do
discurso do autor.
As
suas personagens são sempre portadoras de mensagens, cujos referenciadores
encontram-se no cotidiano; que marcam a vida de todos, ou quase todos. Daí seus
livros, portarem sempre essa marca que funde a realidade e a ficção.
A
marca da denúncia, e da sua preocupação com o ser humano, com a evolução
e melhoria das condições de vida deste.
Essa
escolha do autor, mais que nunca se faz presente neste conto. O tempo inteiro, a
personagem busca crescer, evoluir, sair das condições ínfimas da vida em que
se encontra, porém, faltam-lhe habilidades e experiência.. É de se notar que
a figura do Gaúcho no contexto da história, não é apenas a sombra que
influencia a personagem, mas essa figura toma a dimensão de quase pai;
observando-se que, essa visão é a personagem que porta.
No
parágrafo 39 do conto O ladrão (RAMOS, 1983), observa-se claramente o
sentimento de inconformação da vida que leva. A idéia que a preocupa,
resume-se em: tentar provar a Gaúcho que ela poderá
vir a ser tão talentosa quanto ele.
A
inconstância emocional, o medo que a apavora deixam-na num estado de nervos
lamentável. Percebe-se ainda nesse mesmo parágrafo um segundo plano, ao qual a
personagem se agarra, como a uma tábua de salvação; pretende mudar de vida:
[...]
Bem, contaria depois a grana quando estivesse calmo. Abandonaria o morro e iria
viver num subúrbio distante, onde ninguém o conhecesse, largaria aquela
profissão, para que não tinha jeito. Não diria nada a Gaúcho, evitaria indivíduos
comprometedores. Iria endireitar, criar vergonha, virá pessoa decente, arranjar
um negócio qualquer longe de Gaúcho (RAMOS, 1983, p. 44-45).
Terminando,
pois, nossa análise sobre a pequena narrativa que é o conto, acrescento que o
desenvolvimento, e a ação da personagem central movem emoções contraditórias,
medos e falta de inteireza de caráter, mostrando-se ora como pretenso herói
ora como anti-herói, o que aliás
acelera o final da narrativa e o
coloca definitivamente na segunda posição – a de um fracassado. Enfatizamos
ainda que, tratando-se de literatura graciliânica, tanto em Infância
quanto no livro de contos Insônia, cujo o conto
estamos a analisar, percebe-se haver forte verossimilhanças entre ficção
e realidade. Uma coisa está contida na outra.
É neste afrouxar de
atitudes da personagem principal, que o conto atinge o ponto de tensão maior
– o herói gira como mosca em volta da moça a dormir, rouba-lhe
um beijo e tudo se desmorona. É o fim trágico da narrativa. O que aliás não
representa nenhuma novidade. Romance, conto ou crônica, fazer literário de
Graciliano termina sempre em tristeza, em tragédia. Nada de final feliz.
Na
literatura desse autor, não há lugar para adorno, enfeites ou poesia, nenhuma
fantasia. Ele coloca na vida de suas personagens, resquícios e fragmentos
da realidade, seja de sua própria infância, seja de seu testemunho pessoal,
aliados a um senso crítico singular e a uma criatividade relevante.
Impossível a um criador como Graciliano fazer literatura em descompasso
com a vida. Literatura para Gra
ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. Movimentos de um leitor : ensaios e imaginação crítica com Antonio Cândido. In.: ______. Outros achados e perdidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.