1 .  Considerações Introdutórias

 

Tentando conduzir-me no âmbito da concepção bakhtiniana de linguagem e visualizando nesta o estudo dos gêneros discursivos, tento, neste artigo, analisar três editoriais veiculados em jornais diários que circulam em João Pessoa-PB.

O objetivo básico é identificar características especificas desse tipo de discurso, para problematizar sua definição enquanto gênero específico. Para tanto, recorro a aportes teóricos bakhtinianos, especificamente sua proposta de análise dos gêneros discursivos. Visito, também, algumas releituras da obra de Bakhtin, tais como as de Brait (2000), Mainguenau (2000) e Todorov (1980), numa tentativa de melhor apreender o fio condutor de sua articulação teórica.

Os gêneros do discurso representam sob a ótica bakhtiniana formas específicas de uso da língua, sendo perscrutados com bastante atenção no âmbito da análise geral da enunciação por ele empreendida. Pode ser observada uma concentração de elementos vitais à compreensão de sua teoria da enunciação, calcada numa textualidade pressupositiva da dialogia.

O presente trabalho limita-se ao estudo de apenas três editoriais, uma vez que não pretendo, nos entornos desta averiguação, esvaziar curiosidades relativas a todas as questões que podem emergir nessa área. Tal intento certamente demandaria um investimento muito mais amplo em leitura e pesquisa, não condizente com o caráter restritivo de que é passível a presente investigação.

 

2. A Concepção Bakhtiniana de Gêneros do Discurso

 

A partir da elaboração das teorias sócio-interacionistas, a linguagem humana é vista como atividade praticada por sujeitos interrelacionados, visando a objetivos determinados socialmente. Em todas as esferas da comunicação, a realização de atividades sócio-cognitivas, via condição pragmática da linguagem, determina a apropriação de instrumentos textuais que imprimirão uma feição específica a cada situação de uso.

Dessa forma, as manifestações lingüísticas, vistas como conjunto de elementos adequados a cada contexto, recebem influências psicológicas e sociais mas, para se efetivarem e atingirem seus intentos, vão depender especialmente de fatores lingüísticos colocados ou não sob o domínio ativo do falante.

Essa perspectiva leva ao entendimento de que cada atividade humana lança mão de recursos lingüísticos típicos, orais ou escritos, imprimindo a formatação que os enunciados acabam por adquirir nos usos concretos da língua. É sob essa ótica que, para Bakhtin, os enunciados espelham as condições singulares e as finalidades específicas de cada esfera de atividade, refletindo-se não apenas no que respeita à utilização dos recursos lingüísticos “mas também, e sobretudo, por sua construção composicional”. (1997: 279)

Entendendo os gêneros como forma de acabamento de um todo, o texto passa a ser visto como resultado de uma construção que visa a essa totalidade. É assim que Bakhtin formaliza sua concepção de linguagem, ressaltando sua “extrema heterogeneidade”, fator relevante para a classificação dos gêneros em primários (simples) e secundários (complexos).

Os gêneros primários estariam relacionados à oralidade e a situações de informalidade. Os secundários entornariam os textos literários produzidos dentro de um processo de elaboração mais acurado, especialmente talhados através da modalidade escrita da linguagem.

Não se pode negar que a inter-relação que ocorre entre esses tipos genéricos vai-se concretizar enquanto intra-(rel)ação, especialmente através da influência que o gênero primário exerce sobre o secundário, deixando-se absorver por este, imprimindo-lhe transformações em seu interior.

A influência exercida pela língua sobre a realidade circundante, concretizada através da formalização dos mais diversos enunciados, ocorre num movimento dialético que provoca alterações na própria linguagem como conseqüência de situações pragmáticas. Bakhtin tece referências expressas a essa inter-ação: A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua.” (1997:282)

Já assinalei aqui, a condição de seletividade de formas de expressão apropriadas a cada círculo de atividades, o que vai imprimir na idiossincrasia das manifestações particulares a opção por recursos e elementos lingüísticos típicos de cada esfera. Bakhtin entende que os gêneros são formalizados a partir dessas apropriações, as quais sinalizam à existência de estilos manifestos nas falas individuais. Desse modo, cada função - técnica, científica, ideológica, oficial, cotidiana, etc. - formaliza-se a partir de determinadas condições de produção relativas à sua esfera comunicativa.

Esse conjunto de confluências consubstancia a origem dos gêneros, identificados pelo uso de tipos específicos de enunciados, apresentando uma certa padronização composicional, temática, estilística e estrutural.

Bakhtin ressalta que os gêneros se constituem historicamente, sendo passíveis de variações e mudanças, acompanhando a evolução das interações sociais e a dinâmica inerente ao fluxo das transformações que intervêm nas relações mediadas pela linguagem.

A concepção enunciativa de linguagem formalizada por Bakhtin desenvolve conceitos relativos à intertextualidade e à interdiscursividade. Tais proposições perpassam a noção de gêneros discursivos, uma vez que o autor assinala, de maneira contundente, a essencialidade dialógica da linguagem, cuja virtual onipresença aponta para a não demarcação de fronteiras isolantes e exclusivistas que protejam um ou outro gênero da influência de manifestações lingüísticas migratórias, flutuantes. A flexibilidade da língua é adequada à mobilidade das relações sociais. Assim, atividades de linguagem e demais atividades humanas são interacionistas e interdependentes.

Qualquer enunciado pode fazer parte de qualquer tipo de gênero. Mas isso não ocorre de forma aleatória ou autoritária; são as condições de produção que vão permitir ou não uma determinada ocorrência.

A língua é algo muito maior que o gênero, esse, aliás não é sequer uma forma de língua, apenas uma forma de enunciado. É a expressividade contida nos enunciados que imprime uma ou outra conformatação à linguagem, determinando a feição do gênero em uso. Para Bakhtin (op. cit.:311)No gênero, a palavra comporta certa expressão típica. Os gêneros correspondem a circunstâncias e a temas típicos da comunicação verbal e, por conseguinte, a certos pontos de contatos entre as significações da palavra e a realidade concreta”

Um olhar que proponha o rastreamento e a sistematização dos estudos relativos às concepções de gênero vai-se deparar com uma recorrente abordagem, na qual  o gênero se associa ao discurso e à classificação tipológica do texto.

Importa mencionar uma certa indefinição terminológica que paira nos escritos de Bakhtin, onde termos como texto, discurso, enunciado, entre outros, parecem ser usados indistintamente um pelo outro, independente dos contextos em que se inserem[1].

Os textos perfazem-se no funcionamento da linguagem como produtos de uma atividade lingüística permanentemente atualizada nas formações sociais. É assim que, segundo Bronckart (1999:137), não se pode deixar de visualizar os objetivos norteadores de tais formações, as quais se enxertam de interesses específicos e questões particularizadas: “essas formações elaboram diferentes espécies de textos, que apresentam características relativamente estáveis (justificando-se que sejam chamados de gêneros de textos).

As marcas que emergem em cada expressão particular podem apresentar confluências e convergências de estilo na interseção com parceiros de uma mesma esfera comunicativa, assumindo a liberdade de carimbarem, de múltiplas formas, a cultura de seus usuários. Não se pode deixar de considerar que são os enunciados, nas especificidades de suas condições de produção, que se impõem como escrivães da história humana.

Bakhtin ressalta o caráter dinâmico do gênero e sua contínua transmutação. A partir de obras individuais, os gêneros renascem e se renovam incessantemente, estabelecendo uma inconteste relação entre o passado e o presente.

É claramente perceptível, na proposta bakhtiniana, uma afirmação do dialogismo como condição sine qua non à articulação da linguagem simbólica. Assim, a textualidade se define a partir dos gêneros, que ratificam sua condição de agenciadores de visões de mundo, as quais se materializam através de pontos de vista de atores imersos num dado contexto comunicacional.

A importância da existência do gênero, enquanto fator de economia lingüística que vai agilizar os processos comunicativos, é enfatizada por Bakhtin: Se os gêneros de discurso não existissem e se não tivéssemos o domínio deles e fôssemos obrigados a inventá-los a cada vez no processo da fala, se fôssemos obrigados a construir cada um de nossos enunciados, a troca verbal seria impossível” . (op. cit.:273)

Barros (2002) destaca a compleição do gênero enquanto contrato cooperativo e regido por normas. No entanto, para essa autora, apesar de o discurso pressupor regras, estas podem ser transgredidas, posto que são flexíveis.

Todorov, que tão bem leu Bakhtin, indaga-se sobre a gênese dos gêneros. Para responder tal questionamento, o autor assegura que os gêneros são mutações de outros gêneros pré-existentes, marcadas por inversões, deslocamentos ou combinações: ‘Nunca houve literatura sem gêneros; é um sistema em contínua transformação e a questão das origens não pode abandonar, historicamente, o terreno dos próprios gêneros: no tempo, nada há de ‘anterior’ aos gêneros’”. (1980:49)

Todorov enfatiza, ainda, a concomitância entre a existência do gênero e a atividade descritiva e analítica que elabora a metalinguagem a ele pertinente. Há um volumoso discurso sobre os gêneros que parece se confundir com sua própria existência. Entretanto, é relevante não descuidar do fato de que o gênero é, em si mesmo, uma atividade discursiva independente da metadiscursividade que se lhe perscruta paralelamente.

 

2.1 É Possível Tipologizar os Gêneros?

 

Não há dúvida de que importa esboçar e arquitetar tentativas de classificar didaticamente os gêneros. Mas tal empreendimento deve considerar sempre as inumeráveis dificuldades que se impõem como obstáculos a tal pretensão.

A maioria dos estudos lingüísticos realizados nessa área é atravessada por tentativas que levam em consideração elementos pertinentes à organização textual, realçando as formas de encadeamento de seus constituintes, seja ao nível da frase, seja ao nível do texto como um todo.

 Nesse sentido, segundo Brandão (2000:24), “Jakobson propõe uma formulação geral do gênero em termos de funções que envolvem todo ato de comunicação.” A proposta de Jakobson, apesar de criticada por causa de suas limitações estruturalistas, é recorrentemente usada em aulas de língua, uma vez que os professores entendem conter a mesma uma categorização coerente e metodologicamente eficaz para a compreensão dos processos comunicativos.

Visando ao atendimento dessa preocupação, isto é, o estabelecimento de uma tipologia textual que considere os princípios de sua organização, Brandão (2000:22-3), embora reconheça a ocorrência de problemas em toda e qualquer tipologia - ou se apresentam excessivamente restritas ou pecam pela vasta amplitude – identifica quatro tipos de classificações a partir de concepções teóricas distintas:

 

“. as tipologias funcionais fundadas sobre o estudo das funções dos discursos (na perspectiva de Bühler e Jakobson, 1963);

. as tipologias enunciativas que tratam principalmente da influência das condições de enunciação (interlocutores, lugar e tempo) sobre a organização discursiva (aqui se incluem os modelos inspirados por Benveniste, de 1966 e o trabalho de Bronckart et alli., 1985);

. as tipologias cognitivas, que tratam principalmente da organização cognitiva, pré-lingüística, subjacente à organização de certas seqüências – narrativa, descritiva etc. (neste grupo estaria o modelo de Adam, 1987);

. a tipologia sócio-interacionista de Bakhtin (1992).”

 

Devido ao seu caráter mutante, produto das constantes e contínuas intraposições e interposições que levam os textos a inevitáveis transformações, Bronckart (op. cit., p. 138) assevera que “os gêneros não podem nunca ser objeto de uma classificação racional, estável e definitiva.”

A abordagem bakhtiniana  não concede aos estudos relativos ao gênero uma preocupação classificatória. Pelo contrário, é patente em suas posições, uma confirmação do gênero como fenômeno eivado de pluralidade, o que provavelmente impediria a busca de uma taxionomia definidora. Aliás, o autor usa por reiteradas vezes a noção de gênero como algo produzido em cada esfera de atividade humana e por isso, apenas relativamente estável.

O contexto do conceito de gênero em Bakhtin não considera preocupações com hierarquização, categorização, estruturalização ou qualquer outra decisão que possa soar como unidade de medida limitadora da dimensão abrangente do gênero. Nega a validade de procedimentos que desconsiderem a múltipla existência de formações diversificadas de pensar e de expressar o mundo.

Tomando-se os textos como enunciados concretos e únicos, produtos que são da manifestação lingüística individual, torna-se impossível aceitar as classificações de caráter estrutural proposta pela lingüística textual. Como há uma infinita variedade de esferas de atividades humanas nas quais os processos comunicativos se atualizam a cada enunciação, essa fluidez e essa mobilidade dificultam ou até mesmo inviabilizam uma classificação estática e estável dos gêneros.

 

4. Gêneros Discursivos/Gêneros Jornalísticos

 

Os manuais de redação de jornais como A Folha de S. Paulo, O Globo e o Estado de S. Paulo, ao se deterem sobre sugestões e regras a serem observadas na produção textual de seus jornalistas, autorizam a compreensão de que no discurso jornalístico, a delimitação genérica é concreta e indiscutível.

No entanto, segundo Barros (2000, p. 204), os preceitos oficializados nos referidos manuais são ignorados pelos autores dos textos que circulam nos noticiosos:

 

“Uma ‘notícia’, em princípio, deveria apenas registrar os fatos de maneira objetiva, imparcial e descomprometida. Adjetivos e advérbios devem ser descartados, dando ao leitor oportunidade de tirar suas próprias conclusões. No entanto, na prática, observa-se que a própria escolha do ângulo do relato demonstra um certo comprometimento do jornalista com o fato”.

 

Nesse universo textual marcado pela utilização imediata de uma linguagem que objetiva informar, comunicar, esclarecer, o jornal transforma-se num território minado de manifestações textuais cujas especificidades de objetos, objetivos e potenciais interlocutores fomenta uma intensa variabilidade no que tange à constituição tipológica de seus conjuntos de enunciados.

Na visão de Barros (2000:204),

 

“a coluna e o artigo de opinião apresentam regras de jogo comuns: é de sua natureza trazer interpretação ou opinião do autor. O papel do autor é de maior aproximação com o seu texto: avaliações e modalizações marcam sua visão de mundo e recursos retóricos são ativados para atingir com maior eficiência o outro parceiro da comunicação, seu interlocutor”.

 

A impressão conceptual de um estilo jornalístico pode-se fundamentar a partir da observação dos editoriais, comentários e opiniões veiculados pelos jornais em geral. Isso não descarta a possibilidade da existência de textos bem escritos fora do âmbito dos artigos que trazem a identificação do autor - desde a manchete da capa até a mais recôndita nota do suplemento cultural.

Segundo Pinto (1986:50), “é muito mais na matéria assinada  por jornalistas que também são literatos que ocorrem desvios afrontosos (geralmente voluntários), em relação à gramática, do que na matéria de responsabilidade do jornal.”

O propósito do presente trabalho, conforme já explicitado, é analisar três editoriais de jornais paraibanos, para apreender uma possível confluência de elementos textuais, estruturais e discursivos que os caracterizem enquanto gêneros de textos. Busco, portanto, assinalar a presença ou não de elementos que atestem uma interseção material de traços estruturais, temáticos ou mesmo lingüísticos. Tal registro confirmaria a relativa estabilidade de conteúdo e estilo composicional que, na ótica bakhtiniana, instituiriam a formação de um gênero discursivo.

Para essa análise, selecionei os editoriais Diálogo Necessário (O Norte, João Pessoa, 16/10/2002), “Serra Condena Mães Solteiras” (A União, João Pessoa, 15/10/2002) e “Decisão Final” (Correio da Paraíba, João Pessoa, 13/10/2002).

Vejam-se excertos dessas editoriais:

Texto 1: Diálogo Necessário

 

Para a construção do gasoduto Urucu-Porto Velho até o final deste ano, a Petrobrás espera obter a licença do instituto Nacional do meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A companhia concluirá dentro dos próximos 30 dias os estudos que responderão a 23 questionamentos do Ibama sobre prevenção e solução a prováveis impactos sócio-ambientais na região atingida pela obra.

(...)

A estatal realizou seis audiências públicas em dois anos, para obter a licença provisória do Ibama para o gasoduto Urucu-Porto Velho, lembra Cabral, afirmando que a Petrobrás fez tudo dentro da lei. Acredita-se que o impasse será superado. O gasoduto é um imperativo do desenvolvimento econômico, é verdade. Mas, a questão sócio-ambiental precisa ser defendida. Acreditamos que o problema será solucionado. Para tanto é necessário o diálogo.

 

(O Norte, 16/10/2002)

 


 

 Texto 2: Serra Condena Mães Solteiras

 

Os problemas brasileiros ganharam um novo destaque no discurso de José Serra com a inclusão de mais uma preocupação de caráter nacional. Ele está preocupado com o grande número de “mães solteiras” no Brasil.

(....)

Causou surpresa o candidato do presidente Fernando Henrique Cardoso preocupar-se tanto com o problema das mães solteiras quando, no momento, o povo brasileiro está muito mais preocupado com o aumento do valor do dólar, com o aumento da taxa de juros e com o aumento do desemprego.

(...)

O candidato não citou nomes de mulheres que tenham tido essa atitude. O caso mais famoso no Brasil, no entanto, é o da apresentadora Xuxa, que engravidou do ator Luciano Szafir em uma “produção independente.”

Vocês se lembram de Jânio Quadros?

Ele começou assim, inventando de combater a briga de galo. Até então, briga de galo não era problema nacional.

 

 (A União, 15/10/2002)

 

Texto 3: Decisão Final

 

O reinício amanhã da campanha presidencial pela televisão, agora com vistas à eleição em segundo turno, marca uma etapa decisiva, à medida em que o processo sucessório aproxima-se de seu desfecho.

(...)

A legitimação, pois,  dos governantes  ungidos, como se costuma dizer, pelas urnas, dentro do rito eleitoral que é a característica por excelência das sociedades politicamente abertas, converte-se em fundamento irrecusável de uma ordem jurídica digna desse nome.

(Correio da Paraíba, 13/10/2002)


4.1. Existe o Gênero Editorial?

 

A linha política, social e cultural empreendida por uma empresa jornalística é apresentada e defendida objetiva ou subjetivamente no espaço denominado de editorial. Neste, são articuladas posições de interesse da empresa, seus pontos de vista, suas definições ideológicas. Ali se explicitam ou implicitam suas linhas de pensamento e ação.

Sua linguagem é geralmente impessoal, moldando-se num nível vocabular típico da norma considerada padrão, visível no acatamento aos preceitos gramaticais. A pessoa do discurso é indeterminada, camuflando-se na terceira do singular ou, algumas vezes, indefinindo-se em um “nós” que não identifica um autor específico. Não se espera revoluções sintáticas, malabarismos semânticos ou menos inovações lexicais. O estilo é em geral sóbrio e os textos, tradicionalmente, beiram a concisão e a formalidade plena.

As estruturas composicionais dos três editoriais observados convergem para uma formatação onde afloram mais semelhanças que divergências. Apenas no texto do Jornal A União, opta-se por uma paragrafação mais numerosa, concretizada através da construção de parágrafos muito curtos. Tal expediente resulta em um texto com um número consideravelmente exagerado de parágrafos: 19. Os outros editoriais constam de 06  parágrafos (Correio da Paraíba) e 04  parágrafos (O Norte).

Tanto no texto Decisão Final (Correio) quanto no Diálogo Necessário (O Norte), o esforço por alcançar um tom de sobriedade na formulação dos enunciados, pautados na impessoalidade discursiva, busca fazer eclodir uma voz institucional, que impossibilite a identificação de um autor específico.

Dessa forma, os dois textos impregnam-se de uma sensação de ocultamento do sujeito. A tessitura das informações que neles se entrelaçam, sem que sejam assumidas por um locutor específico, sinalizam para uma dissimulação, para um descomprometimento arquitetado pela não marcação da pessoa gramatical. Um pretenso desmascaramento só se concretizaria após uma familiarização com o conteúdo exposto no todo do jornal e o acesso à ficha de expediente, onde se identificam editores, diretores e conselho editorial.

A defesa de linhas ideológicas visivelmente assumidas em outras partes do noticioso traveste-se, no editorial, de uma imparcialidade meticulosamente tramada. Tudo parece ser destituído de autoria.

Essa característica tão fortemente marcada em dois dos jornais citados, no entanto não se faz notar no editorial Serra Condena Mães Solteiras (A União). Ali, não se depreende uma preocupação em  mascarar o objetivo do texto, que se explicita do início ao fim, atrelando-se à forma irônica como se refere ao personagem título, tentando ridicularizá-lo na aproximação analógica que dele se trama com o ex-presidente Quadros, personagem reconhecidamente pitoresco da política nacional.

Também em relação à seleção vocabular, há uma distância palpável entre os editoriais do Correio da Paraíba e de O Norte, quando confrontados com o texto do Jornal A União. Naqueles, evidencia-se um cuidado com o uso de termos mais formais, fugindo ao espontaneísmo que permeia todo o texto sobre o candidato “excessivamente preocupado com as mães solteiras”. A própria referência a nomes públicos, seja de políticos “populares” como José Serra, Fernando Henrique Cardoso e Jânio Quadros, seja de figuras carimbadas no indefectível noticiário de curiosidades particulares que diuturnamente alimentam a mídia nacional, como Xuxa e Luciano Szafir, causa a aderência ao texto de uma coloquialidade que o distancia amplamente dos outros dois.

Talvez não seja precipitado afirmar que o editorial de A União aponta para a configuração de um jornal popular ou mesmo popularesco, direcionado a um público-alvo pertencente a classes sociais menos aquinhoadas economicamente.

Tal avaliação, no entanto, limita-se a apenas a leitura do editorial. E de um único editorial. Provavelmente não seja este um recorte estatístico que permita a formulação de conclusões definitivas. Mas é o que se pode aventar a partir das impressões que causam a forma e o conteúdo do texto analisado.

A respeito dos gêneros do dito discurso jornalístico, é possível cogitar algumas convenções constitutivas das regularidades estáveis anunciadas por Bakhtin, as quais dariam forma e existência concreta aos gêneros discursivos.

Considere-se, nessa perspectiva, que as influências e interferências de um tipo genérico sobre outro é condição inerente à própria dinâmica pragmática da linguagem. Os gêneros se (inter)põem uns aos/sobre os outros, no mais das vezes ignorando fronteiras e fazendo renovar os repertórios composicionais de acordo com as condições de produção. 

É nessa direção que se pode absorver a afirmação de Maingueneau, para quem

 

“todo texto pertence a uma categoria de discurso, a um gênero de discurso. (...) Existem denominações que não pertencem ao léxico corrente, são próprias de certas profissões: os jornalistas, por exemplo, utilizam um vocabulário específico, ensinando nos cursos profissionais: ‘primeira página’, ‘chamada’, ‘lide’, etc. (...) Rótulos como ‘epopéia’, ‘vaudeville’, ‘editorial’, ‘talk show’ etc. designam o que habitualmente entendemos por gêneros de discurso, isto é, dispositivos de comunicação que só podem aparecer quando certas condições sócio-históricas estão presentes.” (2000:59-61)

 

Do contato com os textos aqui selecionados, ratifica-se a constatação de que o editorial jornalístico enquadra-se nas considerações teóricas que pressupõem a existência de elementos determinativos da constituição de um tipo específico de texto. Os conjuntos de enunciados analisados, apesar de conterem características também comuns aos artigos de opinião e mesmos às produções de colunistas e articulistas em geral, mantêm entre si, respeitadas suas idiossincrasias, uma convergência de elementos temáticos, estruturais e composicionais que autorizam afirmar-se ser o editorial um gênero específico.

O fato de um dos editoriais se distanciar dos demais quanto ao uso de elementos discursivos certamente só reafirma a variedade de estilos de que são passíveis as manifestações textuais, o que não impede  que se assimile a convergência de elementos composicionais e lingüísticos, ratificando um proposição genérica que os enquadre conjuntamente.

Tais constatações se confirmam no estudo aqui exposto, onde os textos cotejados mostram características relativamente comuns, apesar das divergentes linhas ideológicas e políticas que defendem implicitamente, inserindo-se enquanto tipo “editorial” em uma esfera mais abrangente que é a do “discurso jornalístico”, enquadrando-se no conceito bakhtiniano de gênero.

Afinal, nenhum leitor familiarizado com a linguagem jornalística teria dificuldades em reconhecê-los como editoriais, distantes que estão da crônica, da reportagem, do artigo, da coluna social, dos classificados, dos cadernos de variedades, das charges, da carta do leitor...


Referências

 

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BARROS, Nina Célia de. Estratégias de ataque à face em gêneros jornalísticos. In MEURER, José Luiz; MOTH-ROTH (orgs.) Gêneros textuais. Bauru: Edusc, 2002.

 

BRANDÃO, Helena Naganime. Gêneros do discurso na escola. Coleção ensinar e aprender com textos, V. 5. São Paulo: Cortez, 2000.

 

BRAIT, Beth. PCNs, gêneros e ensino de língua: faces discursiva da textualidade. In ROJO, Roxane. (org.) A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: Educ; Campinas: Mercado de Letras 2000.

 

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: Educ, 1999.

 

MACHADO, Irene A. Os gêneros e a ciência dialógica do texto. In FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão; CASTRO, Gilberto de. (orgs.) Diálogos com Bakhtin. 3. ed. Curitiba: UFPR, 2001.

 

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2000.

 

Manual de Estilo Editora Abril. 16 ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1990.

MARTINS, Eduardo. O Estado de S. Paulo: Manual de Redação e Estilo. 3. ed. São Paulo: Moderna, 1997.

 

PINTO, Edith Pimentel. A Língua Escrita no Brasil. São Paulo: Ática, 1986.

 

POMPÍLIO, Berenice Wanderley et alli. Os PCNs: uma experiência de formação de professores do ensino fundamental. In ROJO, Roxane. (org.) A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: Educ; Campinas: Mercado de Letras 2000.

 

ROSSI,  Clóvis. O que é jornalismo. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.

 

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TODOROV, Tzvetan. Os gêneros discursivos. São Paulo: Martins Fontes, 1980.

 


[1] Há uma clara indefinição terminológica em Bakhtin, no que diz respeito aos termos enunciado,  enunciação e texto. Os gêneros são mais freqüentemente tratados como gêneros do discurso, mas às vezes também como gêneros do texto e a terminologia usada para seus constituintes internos é muito hesitante. (linguagem, língua, estilo, discurso). Bronckat (1999, p. 143)