INTRODUÇÃO

 

 

Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa que vem sendo realizada no LASPRAT (Laboratório Semântico-Pragmático de Textos), embasada em duas hipóteses: 1) a sala de aula como espaço para a inserção de todo e qualquer gênero discursivo; 2) a tese de que a língua é fundamentalmente argumentativa (ANSCOMBRE-DUCROT,1988). Essas duas hipóteses nos permitiram duas novas hipóteses: 3) todos os gêneros discursivos apresentam uma direção argumentativa marcada lingüisticamente; 4) o processo de leitura, necessariamente, precisa dar conta dessas marcas lingüísticas para que se possa chegar a um dos possíveis sentidos de um texto.

A primeira hipótese (1) advém da nova concepção de linguagem que tem norteado o ensino de língua – linguagem enquanto lugar de (inter)ação – e é postulada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) como se pode verificar em um dos  objetivos relativos ao ensino de Língua Portuguesa

 

 “As práticas educativas devem ser organizadas de modo a garantir, progressivamente, que os alunos sejam capazes de: ler textos de gêneros variados, combinando estratégias de decifração, antecipação, inferência e verificação.” (PCN, 1997, p.103)

 

A segunda hipótese (2), na verdade, é a tese que norteia todas as pesquisas desenvolvidas no LASPRAT*. Filiamo-nos à tese de Anscombre-Ducrot para quem a língua é fundamentalmente argumentativa, fazendo um adendo a essa tese: o uso também é argumentativo. Dessa forma reescrevemos a tese original de Asncombre e Ducrot: a língua e o seu uso são fundamentalmente argumentativos. Salientamos que, para realizar as nossas pesquisas, temos como bússola a tese citada, porém o aparato teórico não está restrito à Teoria da Argumentação desenvolvida por Anscombre-Ducrot.

A partir das pesquisas realizadas no LASPRAT, temos verificado que cada gênero discursivo apresenta um funcionamento discurso específico – hipótese (3). Em outras palavras, a estrutura argumentativa varia de gênero para gênero, sendo, na maioria das vezes, marcada lingüisticamente, porém apontando, também, para a recuperação de informações contextuais.

Em decorrência da hipótese (1), (2) e (3) surge a hipótese (4): é preciso levar ao conhecimento (‘mostrar’) dos professores como os gêneros se constituem enquanto lugar de (inter)ação, para que sejam trabalhados em sala de aula de acordo com suas especificidades. Em outras palavras, a partir de descrições das marcas lingüísticas que caracterizam a estrutura argumentativa de alguns gêneros discursivos, pretende-se mostrar como trabalhar a leitura na perspectiva de que, quando interagimos, temos intenções em relação ao interlocutor e que essas intenções, geralmente, são marcadas lingüisticamente com a recorrência de determinadas classes de palavras ou determinadas estruturas discursivas, as quais podem variar de gênero para gênero.

Neste trabalho, ‘mostrarei’ o gênero discursivo charge - na perspectiva de que, quando interagimos, temos intenções em relação ao interlocutor e que essas intenções precisam ser buscadas - na charge - a partir dos vários textos aos quais esse gênero remete.

 

 

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

 

Para investigar a tese postulada pelo LASPRAT – a língua e o seu uso são fundamentalmente argumentativos - buscamos apoio teórico, principalmente, nos trabalhos desenvolvidos por Ducrot e colaboradores reunidos na Teoria da Argumentação na Língua – cujas pesquisas vêm sendo desenvolvidas desde a década de setenta.

Os trabalhos desenvolvidos por Ducrot e colaboradores perseguem desde o início a tese de que a argumentatividade está na língua – do léxico às frases. Com o desenvolvimento (aprimoramento) da teoria, nos é revelado que a argumentação (direção argumentativa de um discurso) pode estar marcada lingüisticamente através de um operador argumentativo (elementos que indicam a orientação argumentativa do enunciado), através da escolha dos predicados (nomes e verbos), da escolha dos modificadores (adjetivos e advérbios) como também pela própria estruturação discursiva.

No entanto, não só através dos recursos explicitamente lingüísticos é possível argumentar, ou orientar a direção argumentativa pretendida, há recursos discursivo-pragmáticos que possibilitam que sejam trazidos, para o ambiente discursivo, valores sociais, morais, religiosos, éticos, políticos etc. com fins argumentativos: é o caso do recurso à polifonia (pressuposição, negação, topoï etc.). Salientamos, no entanto, que embora essas estratégias sejam consideradas discursivo-pragmáticas, uma vez que as informações são trazidas, na maioria das vezes, do conhecimento de mundo para o discurso, são ativadas por um elemento lingüístico. É o caso dos recursos elencados acima.

A possibilidade de se trazer outras vozes distintas da do locutor (responsável lingüístico pelo discurso) pode ser concretizada utilizando-se da polifonia que, de acordo com as pesquisas realizadas no LASPRAT, mostrou-se recorrente na constituição do gênero discursivo charge.

Concebo a polifonia, na perspectiva de Ducrot (1988) e colaboradores, como sendo o recurso através do qual o locutor do enunciado não se expressa nunca diretamente, mas põe em cena, no mesmo enunciado, um certo número de personagens. Nessa perspectiva, o sentido do enunciado nasce da confrontação desses diferentes sujeitos. O sentido do enunciado nada mais é do que o resultado das diferentes vozes que ali aparecem.

Esses personagens lingüísticos dos quais fala Ducrot são o locutor – responsável lingüístico pelo discurso – e o enunciador - “as origens dos diferentes pontos de vista que se apresentam no enunciado" (Ducrot, 1988) – além do sujeito empírico (SE) -produtor efetivo do discurso (não é objeto de investigação de um lingüista semanticista, segundo Ducrot), pois nem sempre locutor e sujeito empírico coincidem em um discurso.

O locutor pode colocar em cena, no seu discurso, outros locutores para com eles dialogar (aprovando-os, rechaçando-os, assimilando-se ou ficando indiferente a eles) ou enunciadores. Se recorrer à primeira opção (locutores) estará utilizando a polifonia de locutores, se optar pela segunda possibilidade, a polifonia de enunciadores.

Independente da forma de polifonia utilizada em um discurso, é preciso buscar identificar a posição do locutor – responsável lingüístico pelo discurso - em relação aos personagens lingüísticos colocados em cena (locutores ou enunciadores). De acordo com Ducrot (1988), as relações que o locutor pode estabelecer com os personagens trazidos para o espaço discursivo são as seguintes: de aprovação, de negação, de assimilação (identificação) ou de distanciamento.

O fato de aprovar um ponto de vista trazido para o espaço discursivo não significa assumi-lo explicitamente e utilizá-lo como argumento para uma conclusão r. É o caso da pressuposição em que o locutor aprova o pressuposto (E1) mas encadeia com o posto (E2), assimilando-se (identificando-se) a E2 – responsável pelo posto. O termo identificar-se é utilizado na Teoria da Polifonia no sentido de assumir um determinado ponto de vista.

O locutor, por outro lado, pode trazer um determinado ponto de vista para negá-lo (rechaçá-lo) e, a partir dessa negação, mostrar o ponto de vista com o qual ele se identifica. A negação é um exemplo em que o locutor traz E1 – enunciado positivo – para negá-lo, assimilando-se ao E2 – responsável pelo enunciado negativo. O locutor pode ainda colocar em cena ponto(s) de vista sem se posicionar em relação a ele(s), deixando que o interlocutor faça as suas próprias leituras, é o caso do humor em que o locutor (L) coloca em cena ponto(s) absurdo(s) e não toma partido, nem mesmo os retifica.

 

 

2. A CHARGE NA PERSPECTIVA POLIFÔNICA

 

Considerando a charge como um gênero discursivo - “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2000, p.279) – investiguei buscando identificar qual a estrutura semântico-argumentativa desse gênero e as primeiras considerações apontam para o seguinte.

Na charge, a orientação argumentativa é marcada lingüístico-pragmaticamente por meio do recurso à polifonia. O locutor diz o que deseja dizer, através da colocação em cena de outro locutor ou enunciador para em seu nome ‘falar’. A charge exemplifica a relação em que o locutor não toma partido, pelo menos explicitamente no texto[1], mas o faz através dos pontos de vista absurdos que coloca em cena. Ele coloca em cena pontos de vistas absurdos (sem retificá-los) os quais, geralmente, são atribuídos a personagens do mundo biossocial – característica que coloca a charge no rol do humor irônico, na perspectiva de Ducrot.

Os locutores (chargistas), no corpus aqui analisado, recorrem à polifonia para criticar episódios relativos ao campo social, religioso, político, ético entre outros. Os discursos incorporados à charge, através do recurso à polifonia, são utilizados para indicar a orientação argumentativa pretendida pelo locutor.

A charge veicula um tipo de discurso humorístico e, conseqüentemente, é um discurso crítico, mesmo que colocado como se fosse de responsabilidade de outros locutores ou de enunciadores. Geralmente, as charges, como as piadas políticas, são transitórias, pois exploram assuntos ou fatos, políticos ou não, relacionados ao cotidiano ou a determinadas etapas políticas e/ou sociais por que passa um país ou uma determinada facção política.

Para uma das possíveis leituras de uma charge, é necessário que se recuperem os fatos aos quais o referido texto faz referência seja para ridicularizar uma situação, para criticar etc. A compreensão de uma charge depende do texto – constituído de imagens e signos lingüísticos (estes em menor número) – e de fatores pragmáticos – conhecimento lingüístico, conhecimento de mundo (fatos político-sociais, históricos). Além dos elementos lingüísticos é preciso considerar a imagem, das cores aos contornos da charge.

Assim, para se chegar a um dos possíveis sentidos, é necessário que o leitor identifique:

1)      os personagens ou os fatos a que o texto faz referência; na perspectiva polifônica, os textos com os quais esse texto dialoga;

2)      o contexto sócio-histórico e/ou político e as circunstâncias em que o fato referenciado aconteceu; ou seja, a recuperação da enunciação;

3)      os elementos lingüísticos, quando houver;

4)      as possíveis intenções do chargista (locutor), considerando a relação que ele estabelece com os pontos de vista que coloca em cena.

As charges aqui trabalhadas foram escolhidas aleatoriamente, perseguindo como único objetivo trazer temáticas diversificadas e interessantes para um público jovem: a charge nº 01, Denny (28/4/02), aborda a temática da pedofilia no clero; a charge nº 02, Kacio (15/6/03), explora dois temas: a ética partidária e a ética na saúde; e a charge nº 03, Elvis (19/6/03), aborda o tema futebol.

 

 

Charge 01

Denny – Jornal Mogi News  (SP) -  28/4/03

 

 

Seguindo a ordem que propus acima, primeiramente é preciso identificar os fatos (textos) aos quais a charge remete: o ditado popular “Quem dá aos pobres, empresta a Deus”; as denúncias públicas de pedofilia praticada por alguns membros da Igreja Católica, em 2002; vários casos de pedofilia que vieram à tona, nesse momento, inclusive envolvendo profissionais de renome na sociedade brasileira e mundial; reabertura da discussão do celibato dos padres católicos. Em seguida, é preciso ‘olhar’ a materialização lingüística que, na charge em questão, joga com a semelhança fonética dos termos ‘padres’ e ‘pobres’, o que justificaria a ‘inocente’ troca.

No que tange à relação estabelecida entre o locutor – chargista (Denny) – e os pontos de vista que coloca em cena, é possível fazer a seguinte leitura: o locutor (L) – Denny – coloca em cena dois locutores – ‘representantes’ do clero cujas falas colocadas sob a responsabilidade dos referidos religiosos são absurdas e não são retificadas, e o discurso é atribuído a um representante do clero católico, o que faz com que a charge seja considerada irônica. Com isso, o locutor (Denny) critica o comportamento de alguns padres, através do humor (comunicação não-séria na nomenclatura de Ducrot), não assumindo nenhum dos pontos de vistas colocados em cena; ele deixa (faz) que os pontos de vista falem por si mesmos.

 

 

Charge 02

 

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Kacio, hoje no Correio Braziliense 15/06/03

 

 

Seguindo o proposto, é preciso recuperar os textos com os quais a charge dialoga: o caso celobar em que muitas pessoas (pelo menos 14) morreram em decorrência de terem ingerido celobar - medicamento ministrado a pacientes que fazem (ou faziam) radiografia com contraste; os dissidentes do PT (Babá) e o vice-presidente – José de Alencar – que vêm assumindo uma posição crítica às ações do Ministro da Fazenda, principalmente no que diz respeito aos juros altos; o processo instaurado pelo PT para punir os parlamentares que não votarem de acordo com as recomendações do partido. Os fatos citados acima ocorreram simultaneamente – fatos políticos e de saúde pública.

O enunciado lingüístico “Radicalismo tem remédio!” não está diretamente atribuído a Lula, porém a posição deste e a ação que está prestes a realizar na charge levam-nos a atribuir o referido enunciado ao Presidente Lula. Dessa forma, pode-se dizer que o locutor – Kacio – coloca em seu discurso um locutor com um ponto de vista absurdo – o enunciado citado acima – não o retifica e é, declaradamente, atribuído a Lula. A relação que o locutor – Kacio – estabelece com o ponto de vista colocado em cena – os radicais do PT serão eliminados – é de distanciamento, por isso mesmo o locutor o coloca na boca de um locutor existente no mundo real – Lula.

 

 

Charge 03

Elvis – Diário do Amazonas – 19/6/03

 

 

Para uma das possíveis leituras da charge acima, é preciso que se recupere, pelo menos, dois textos: 1) na copa de 2002, a seleção brasileira enfrentou a seleção inglesa e, como manda os bons hábitos, os jogadores, no final da partida, trocaram as camisas como um gesto de amizade. Boatos maldosos espalharam um suposto comentário de Ronaldinho – que trocou a camisa com Beckham – de que a camisa do adversário até suada era cheirosa; 2) o fato de Beckham estar hoje jogando no mesmo time em que está Ronaldinho – Real Madrid.

Recuperando-se esses dois textos, observa-se qual é a estratégia do locutor – Elvis: polifonia de locutores. No momento em que se identifica um enunciado atribuído a um locutor diferente do responsável pelo discurso – Elvis - constata-se a polifonia de locutores. O locutor (L) coloca em cena um ponto de vista absurdo – o suposto enunciado de Ronaldinho -, sem nenhuma retificação, com a intenção de dizer o que sugere através do próprio ser do mundo biossocial que pretende criticar (ridicularizar).

 

 

3. A CHARGE NA SALA DE AULA

 

Para levar o gênero discursivo charge para a sala, em primeiro lugar, é preciso que o professor tenha conhecimento da estrutura semântico-discursiva do referido gênero; saiba que, para ler uma charge, torna-se condição sine qua nom recuperar os textos com os quais a charge dialoga, bem como o contexto social, econômico, político, enfim os acontecimentos que tenham motivado a produção do referido gênero.

Saber (conhecer) a estrutura semântico-discursiva da charge significa que o professor saiba que esse gênero discursivo difere de um conto, de um bilhete, enfim que a charge possui características próprias que a individualizam como gênero, como bem salienta Bakhtin (2000, p.279)

 

 

“O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais -, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional.”

 

 

Essa construção composicional carrega informações que precisam ser descortinadas pelo professor leitor: as escolhas de determinado léxico e não de outro, o uso de determinadas estruturas discursivas, o uso de determinados tempos verbais não são feitas ‘inocentemente’ em nenhum gênero discursivo. Com certeza, alguns leitores estarão dizendo: “Essas escolhas já são determinadas previamente de acordo com cada gênero”. E já paramos para pensar por que na charge predomina a imagem? E por que o lingüístico além de quase sempre ser escasso é também, geralmente, materializado em forma de falas atribuídas ao(s) personagem(ns) que figuram nesse gênero?

Essas perguntas se investigadas poderão nos levar à função sócio-comunicativa da charge. De saída, é possível dizer, sem nenhuma dúvida, que a charge gera (promove) o riso, porém a função desse gênero está muito além de distrair inocentemente. É preciso salientar que a charge tem como função social denunciar, criticar através do humor, que muitas vezes, é irônico. Através da charge, o locutor (assim denomino o chargista) veicula uma crítica a um determinado setor da sociedade (político, religioso, econômico entre outros) a partir de fatos acontecidos ou que estão acontecendo em determinada esfera social. Saliente-se que a charge surge paralelamente, ou logo em seguida, aos fatos aos quais critica, sendo que a distancia temporal desses fatos, na maioria das vezes, inviabiliza a leitura. Em outras palavras, a maioria das charges não é produzida para uma leitura posterior aos fatos aos quais faz referência, pelo contrário, quanto mais a charge fica distante dos acontecimentos que a originaram mais difícil se torna a compreensão da mesma.

Nessa perspectiva,

 

... a compreensão deixa de ser entendida com simples “captação” de uma representação mental ou como a decodificação de mensagem resultante de uma codificação de mensagem resultante de uma codificação de um emissor. Ela é, isto sim, uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base nos elementos lingüísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas que requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes (enciclopédia) e sua reconstrução deste no interior do evento comunicativo.” (KOCH, 2002, p. 17)

 

Na leitura da charge, os conhecimentos a serem mobilizados são aqueles que geraram a charge; os acontecimentos – concebidos aqui como textos – aos quais a charge faz referência, com os respectivos personagens neles envolvidos e as respectivas funções sociais, não perdendo de vista os elementos lingüístico-discursivos materializados nesse gênero.

Em segundo lugar, é preciso que o professor explore com os alunos a função dos textos com os quais a charge dialoga, investigando o porquê da presença desses textos na construção de um outro texto. Torna-se imprescindível buscar identificar qual a relação que o locutor – o chargista – estabelece com esses textos: traz para aprová-los e a eles assimilar-se; traz para desaprová-los; ou os traz e não toma partido em relação a eles, deixando essa tarefa a cargo dos leitores.

Dito de outra forma, depois da identificação dos textos com os quais a charge em análise dialoga, é preciso que o professor, previamente, identifique como o locutor – o chargista – relaciona-se com esses textos trazidos para a construção da charge. Pelo menos duas perguntas o professor deverá fazer e, conseqüentemente, buscar respostas: Quais os textos para os quais a charge em questão remete? Qual a relação que o locutor – chargista - estabelece com esses textos?

Respondida a primeira pergunta, torna-se necessário identificar qual a função desses textos na construção da charge: se representa(m) a situação a ser criticada (fato ou pessoa) ou se contribuirão para produzir a crítica. Na charge 02, há duas situações criticadas (o celobar e as medidas que o PT estava tomando em relação aos seus filiados dissidentes); os dois textos trazidos pelo locutor são criticados ao mesmo tempo: a referência ao celobar como medicamento que mata e à postura do PT em relação aos filiados que não seguem as deliberações partidárias.

Na charge 01, os dois textos que precisam ser recuperados são antagônicos: um que veicula um dos dogmas da religião católica “Quem dá aos pobres, empresta a Deus” e o outro diz respeito às denúncias de pedofilia no meio eclesiástico. O jogo que o locutor faz com a ‘inocente’ troca da palavra pobre por padre evidencia a razão pela qual o chargista traz para o seu texto o dogma religioso. Uma aparente despretensiosa troca camufla a real intenção do chargista – criticar o clero.

Em suma, faz-se necessário orientar o aluno para uma leitura correta do gênero charge: a partir da recuperação do conhecimento prévio necessário, cabe ao professor, juntamente com o aluno, (des)cobrir que função semântico-discursiva é atribuída a esses textos  pelo locutor responsável pela charge – o chargista.

É preciso que o professor tenha muita clareza no que concerne ao aspecto inacabado da charge, que somente se completa com a recuperação dos diversos textos aos quais ela remete, para que se possa compreendê-la de forma adequada. Na charge, mais do que em outro gênero, o leitor é que dará ‘um acabamento’ ao texto, a partir da identificação dos textos necessários.

Saliente-se que a nomenclatura utilizada para investigar a estrutura semântico-discursiva da charge importa para o professor, que precisa conhecer a estrutura desse gênero; ao aluno, por outro lado, a nomenclatura é dispensável, uma vez que o que importa é fazê-lo perceber que a charge é construída a partir de textos do dia a dia os quais refletem acontecimentos cotidianos. 

             

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

 

A partir do conhecimento de como é a estrutura semântico-discursiva da charge, é possível propor uma das formas viáveis de se ler a charge, atendendo a um dos objetivos do ensino de Língua Portuguesa, postulados pelos PCN, que pode ser parafraseado assim: o aluno deverá saber distinguir e compreender o que dizem diferentes gêneros discursivos.

Ler os diferentes gêneros implica conhecer onde um determinado gênero circula, qual a função social que exerce, como é construído, contrastando-o com outros gêneros discursivos, para que o aluno perceba que não se pode ler uma charge como se lê um conto, uma receita etc..

O professor de Língua Portuguesa precisa levar para a sala de aula todos os gêneros discursivos que circulam na nossa sociedade, porém é imprescindível que esses gêneros sejam trabalhados considerando as características sociocomunicativas de cada um.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal (trad. M.E.G. Gomes). São Paulo, Martins Fontes, 1992

DUCROT, Oswald.  Polifonia y argumentacion. Universidade del Valle – Cali, 1988.

ESPÍNDOLA, Lucienne C. A Polifonia na charge: um recurso argumentativo. VI Semana Letras/ UFPB (mimeo)

KOCH, Ingedore G V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo, Cortez, 2002.

Parâmetros Currículos Nacionais: língua portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental, Brasília, 1997.

 

 


* O Laboratório Semântico-Pragmático de Textos – LASPRAT – coordenado pela profª drª Lucienne C Espíndola – está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB e ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas/UFPB.

[1] “... na concepção interacional (dialógica) da língua, na qual os sujeitos são vistos como atores/construto-res sociais, o texto passa a ser considerado o próprio lugar de interação e os interlocutores, como sujeitos ativos....” (KOCH, 2002, p. 17)