INTRODUÇÃO

 

Sabemos que o permanente desafio enfrentado mundialmente, que universaliza o letramento – habilidades e práticas de leitura e escrita –, está intrinsecamente relacionado com outro desafio: o de avaliar e medir o avanço em direção a essa meta. Por essa razão, estimular os alunos a refletirem acerca dos modos de leitura e de escrita poderá ajudá-los a desenvolver estratégias mais adequadas para suas práticas sociais.

Considerando a amplitude dos estudos que envolvem a língua, torna-se impossível pensar na relação fala escrita preocupada apenas com o código, uma vez que essas modalidades não podem ser analisadas de forma estanque, mas sob realidades que envolvem um conjunto de práticas sociais discursivas, vistas num processo de construção e de domínio de conhecimento, obrigatório no contexto educacional (Marcuschi, 2001).

Valorizar a realidade sócio-cultural dos alunos, no ambiente escolar, é falar em gênero textuais. Discutir um gênero, usando exclusivamente critérios formais, exigindo apenas o domínio de estruturas, noções lingüísticas e conseqüente produção, desconsiderando o funcionamento que tem no dia-a-dia, em nada altera os conhecimentos práticos dos aprendizes.

Os gêneros textuais não dependem da compreensão de um indivíduo particular, mas de toda uma formação social. Por isso, ao trabalhá-los em sala de aula, estimulando os alunos a descobrirem as características de cada um, contribui também para produção textual. Este trabalho é uma nova maneira de abordar a língua em seus aspectos mais freqüentes do dia-a-dia, inserindo, inclusive os recursos lingüísticos, como defende a proposta dos PCN (1998).

Pensando nessa realidade, propomo-nos, neste trabalho, relatar os procedimentos adotados em uma experiência com o ensino de gêneros textuais, em especial, a entrevista. Selecionamos este gênero tanto porque acreditamos que os alunos escutam-no, ouvem-no e vêem-no constantemente na mídia local, quanto permite-nos compará-lo entre as modalidades oral e escrita, atendendo às sugestões dos PCN (op. cit.).

Realizamos a pesquisa em uma turma de 1o. ano do Ensino Médio, no turno da noite, em uma escola da rede pública, situada na cidade de Puxinanã, interior de Campina Grande/PB. A escolha desta escola deveu-se ao fato de que a professora-pesquisadora lecionava ali a disciplina Língua Portuguesa.

Os procedimentos adotados constituem o que chamamos de seqüência didática, que pode ser justificada, basicamente, pelo fato ser uma série de exercícios oferecidos de forma gradual e progressiva à compreensão dos alunos, estando relacionada tanto ao objetivo, quanto à sua ação, que constituem, respectivamente, o ato de aprender e de ensinar, conforme apontam Dolz & Schneuwly (1996).

Os dados aqui apresentados - parte de uma pesquisa que está em andamento, a ser apresentada como dissertação de mestrado – demonstram um resultado satisfatório, visto que as aulas ministradas, durante o período compreendido entre setembro a novembro,  referentes, respectivamente, ao final do terceiro e início do quarto bimestres do ano de 2002, seguiram seqüências de leitura teórica, análise do gênero e produção escrita, resultando na publicação de uma entrevista, num folheto informativo, distribuído num evento anual realizado pela escola, que teve grande visitação da população local e regional.

A análise dos dados está fundamentada, principalmente, nas contribuições teóricas de Marcuschi (2001 e 2002) e Hoffnagel (2002).

 

1. CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA

 

            Em função do objetivo proposto, desenvolvemos nossa pesquisa em uma escola pública, pois acreditamos que neste ambiente os professores sentem-se mais livres para experimentar suas práticas educacionais. Para tanto, antes de relatarmos esta experiência, julgamos relevante caracterizarmos, de forma breve, a cidade, a escola e os sujeitos envolvidos neste estudo.

 

Caracterização da cidade

 

            O município do Puxinanã localiza-se na Mesorregião do Agreste Paraibano e na Microrregião de Campina Grande, leste do estado da Paraíba. Possui uma área de 82,4 km2, estando situado a uma distância de 18 km de Campina Grande e 139 km da capital. Possui uma população equivalente a 11.981 habitantes, com uma densidade demográfica de 146,1 habitantes por km2, sendo que a quantidade de domicílios rurais é superior a urbana.

Esta cidade é dependente de cidades circunvizinhas quanto a serviços sócio-econômicos, do tipo bancário, hoteleiro, e a atrativos culturais, como teatro, cinema, casas de shows, shopping centers. Em decorrência disso, Puxinanã não dispõe de grandes opções de lazer e entretenimento, restando, além dos encontros noturnos na praça central, a escuta de rádios (de outras localidades, já que a cidade não dispõe deste suporte de comunicação) e a exibição de programas televisivos (como os das emissoras Globo e SBT).

O sistema educacional urbano é constituído por trinta e três unidades escolares, dividas entre trinta municipais e três estaduais; já o rural é composto por trinta unidades. O sistema educacional, num todo, dispõe também de uma biblioteca pública, que funciona nos três expedientes, com um acervo variado entre literatura brasileira, poesia, livros didáticos, revistas, atlas etc.

 

Caracterização da escola

 

A escola, onde realizamos a pesquisa, foi o primeiro estabelecimento de ensino do município. A princípio, funcionava apenas o Ensino Fundamental, surgindo, no decorrer dos anos, a implantação do Ensino Médio. Atualmente, é a única escola da cidade com Ensino Médio e que funciona nos três turnos. Julgamos relevante destacar alguns de seus aspectos como condições físicas, corpo docente, planejamento didático-pedagógico, serviços de apoio ao ensino e transporte escolar gratuito para os professores.

Quanto às condições físicas, nesta escola[1] funcionavam apenas oito salas de aula, com poucas cadeiras para a demanda de alunos matriculados. Em algumas, o quadro-de-giz estava quebrado e a iluminação era precária. A sala reservada à biblioteca era bastante pequena, com espaço apenas para uma cadeira e uma carteira, já o acervo de livros ali existente resumia-se a didáticos e a paradidáticos. A escola dispunha ainda de auditório, cozinha, banheiros com precárias instalações, salas de diretoria, de professores, de secretaria, e um pátio onde estava sendo construído um ginásio de esportes para os eventos escolares e municipais. 

Quanto ao corpo docente, alguns dos professores não eram graduados nas áreas atuantes. Um exemplo era a professora que lecionava Língua Portuguesa, de 6a. a  8a. séries, no turno da noite. Apesar de sua graduação ser em Ciências Sociais, lecionava Língua Portuguesa há pelo menos oito anos. A professora-pesquisadora, no entanto, possuía graduação em Letras e até o momento da coleta dos dados tinha apenas dois anos de experiência nas séries equivalentes ao Ensino Fundamental e Médio, em escolas particulares.

Quanto ao planejamento didático-pedagógico, cada professor elaborava o seu, sendo assim, não havia reuniões periódicas de áreas ou entre coordenação e professores para planejamento, avaliação ou propostas de atividades para o bimestre ou semestre seguinte. Também não havia um estímulo para aplicação e/ou participação dos professores em cursos de reciclagem.

  Quanto aos serviços de apoio ao ensino, a secretaria da escola, apesar de dispor de uma máquina de datilografia e de um extenso a álcool, não dispunha de funcionários para preparar material didático. Como não havia computador, retroprojetor, máquina de xérox, ou doação de livros didáticos para Ensino Médio, o trabalho em sala de aula, algumas vezes, ficava um pouco prejudicado, pois, exceto a presença do professor e o quadro-negro, só havia um único vídeo cassete disponível, excessivamente disputado.

E, quanto ao transporte escolar gratuito para os professores, tendo em vista que a maioria residia em Campina Grande, ao invés de assegurar a pontualidade destes profissionais, prejudicava o andamento das aulas. O transporte chegava à escola por volta das 19:30h, restando apenas vinte (20) minutos para o término da primeira aula e retornava às 22:10h, para levar os professores de volta para Campina Grande, desperdiçando, mais uma vez, vinte (20) minutos da última aula. Com isso, as aulas ministradas na turma observada também ficavam prejudicadas, uma vez que o horário da disciplina Língua Portuguesa na turma observada era sempre às quartas-feiras, nas três primeiras aulas, e às quintas-feiras, nas duas primeiras. 

 

   

1.3 Caracterização dos sujeitos

           

            Na tentativa de conhecermos um pouco mais sobre a realidade sócio-educacional dos sujeitos - alunos do primeiro ano do ensino médio – e suas experiências com leitura/escrita, aplicamos, em sala de aula, um questionário para a obtenção destes dados. Os resultados estão representados graficamente nos quadros 1, no qual registramos aspectos como sexo, faixa etária, residência e escolaridade, e 2, no qual apresentamos aspectos como hábito de ler, leituras preferidas, dificuldades na escrita e prática de reescritura. Observemos o quadro 1 abaixo:

 

 

Quadro 1 – Realidade Sócio-Educacional

 

Sexo

Faixa Etária*

Residência

Escolaridade

M

F

15-17

18-20

20-23

Rural

Urbana

Pública

Privada

Mista

25

27

18

26

6

28

24

51

-

1

* 2 alunos omitiram a idade

 

 

 

A partir destas informações, percebemos que, entre os cinqüenta e dois informantes[2], a maioria era do sexo feminino, num total de vinte e sete alunos. A faixa etária deste alunado, que variava entre quinze e vinte e três anos, é pouco discrepante, fugindo ao padrão considerado normal pelas instituições educacionais.  Esta variação na idade pode ser justificada tanto pela repetência e/ou evasão escolar existentes nas escolas públicas, quanto pelo fato de que este alunado trabalhava o dia inteiro em fábricas, mercadinhos, lares ou mesmo na roça e, à noite, sentiam-se extremamente cansados e/ou desmotivados para concluir o Ensino Médio. Nesta turma, por exemplo, alguns alunos  estavam cursando o primeiro ano do Ensino Médio há pelo menos cinco anos.

            Do total, vinte e oito residiam na zona rural, cujas casas estavam cerca de um a cinco quilômetros da escola, localizadas em comunidades próximas do município, de forma que vinham para a escola a pé, de bicicleta, de moto ou no transporte escolar. A maioria dos alunos tinha um baixo poder aquisitivo, talvez, por isso, com exceção de um, os alunos só freqüentaram a escola pública. Passemos, agora, a observação de suas experiências com leitura e escrita, conforme registra o quadro 2:

 

 

Quadro 2 – Experiências com Leitura e Escrita

 

 

Hábito de Ler

Leituras Preferidas

Dificuldades na Escrita

Prática de Reescritura

Sim

Não

Esportes

Relacionamentos

Outros

Estruturação

Gramatical

Raramente

Nunca

Algumas vezes

27

25

20

16

16

29

23

13

16

23

 

 

            Após a leitura do quadro 2, percebemos que, quanto ao hábito de ler, a maioria afirmou ler com freqüência, dando prioridade a assuntos como esportes e relacionamentos, porém muitos só liam revistas ou romances quando pediam emprestados a alguém.

            No que se refere à escrita, vinte e nove alunos admitiram que sentiam dificuldade na estruturação e vinte e três assumiram que só algumas vezes praticaram a reescritura. Poucas vezes os antigos professores comentaram os problemas existentes nas produções escritas. Em decorrência disso, a maioria desses alunos considera o seu desempenho escrito regular e admite que se sentiria constrangido ao julgar o texto de um colega.

            Quando questionados acerca da importância que tinha ou que pudesse vir a ter a escrita em suas vidas, alguns revelaram que “aprenderia a raciocinar, a contar histórias”[3], outros acreditavam que “melhoraria a comunicação” e ainda há aqueles que defenderam que “melhoraria na ortografia e aprenderia a ler corretamente”. A partir desta realidade, percebemos que esses alunos tinham uma experiência com a escrita especificamente marcada pelas atividades escolares existentes nos manuais didáticos.

 

2. GÊNEROS TEXTUAIS E O ENSINO DE LÍNGUA

 

Os PCNs de Língua Portuguesa, que assumem teoricamente a perspectiva enunciativa/discursiva de linguagem, visam principalmente a um ensino voltado para a formação de cidadãos, evidenciando um desenvolvimento efetivo da competência discursiva dos alunos, considerando o texto como o ponto inicial para que sejam concretizadas ações pedagógicas. Nesse sentido, pensar em ensinar textos a partir dos critérios estruturais/formais (narrar, descrever e dissertar) ou estruturais/funcionais (informativos, apelativos ou literários) não fornece pistas para o professor decidir o que vai ensinar ou avaliar, mas sim, desvaloriza o processo de compreensão/produção dos textos.

Para trabalharmos com o texto, é relevante associarmos o gênero envolvido com os componentes de descrição, tais como as características sócio-historicamente construídas (as práticas sociais), o contexto de produção, o conteúdo temático, a construção composicional (a forma de dizer) e o estilo verbal disponíveis na língua e baseados nos aspectos enunciativos do texto. Desse modo, poderíamos refletir sobre a dificuldade que teríamos para enquadrar o gênero entrevista em um dos três tipos mais conhecidos de textos (narração, descrição ou argumentação).

Na perspectiva sociodiscursiva, o gênero passa a ser caracterizado muito mais “por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais, do que por suas peculiaridades lingüísticas e estruturais” (MARCUSCHI, 2002). Sendo assim, não podemos considerar os textos trabalhados com nossos alunos como algo imutável, pois, à medida que se expandem suportes voltados à comunicação (como rádio, tv, internet, revista, jornal), surgem gêneros bastante novos (como videoconferências, aulas virtuais, reportagens ao vivo). Os gêneros estão materializados em nosso cotidiano e suas características são definidas a partir dos conteúdos, das funções, do estilo e da composição do texto, auxiliando, sobretudo, a comunicação, como argumenta Marcuschi (2002, p.23). 

O gênero entrevista, por exemplo, apesar de ter linguagem e público-alvo variados, é de fácil contato, pois, além de ser de longa tradição, sempre está presente na mídia cotidiana. Sendo assim, podemos destacar algumas características deste gênero, segundo Hoffnagel (2002, pp 81-83):

tem como função primária informar o público e formar a opinião pública;

apresenta de uma estrutura marcada por ‘perguntas e respostas’;

é um gênero primordialmente oral, pois, mesmo quando publicado, geralmente, foi produzido oralmente e depois transcrito;

quando publicada, exibe fotografias do entrevistado.

Ter contato com gêneros, como a entrevista, deve ser um dos critérios utilizados na escola desde o início do Ensino Fundamental até o final do Ensino Médio, pois consideramos tanto as necessidades do aluno e suas possibilidades de aprendizagem, quanto o grau de familiaridade e o tipo de abordagem que o gênero exige.

Neste estudo, optamos por fazer uma proposta de retextualização envolvendo fala e escrita, como ressalta Marcuschi (2001). À princípio, no que se refere à produção escrita, esclarecemos aos alunos que não se tratava de reorganizar a fala dos entrevistados e dos entrevistadores como se elas estivessem má compreendidas, mas sim, reorganizar os conhecimentos obtidos através da fala para a escrita, adequando as circunstâncias para tornar a entrevista mais elaborada, como mecanismo de avaliação comum no ambiente escolar.

Esse tipo de proposta está intimamente ligado com as atividades diárias tais como preparar a lista de compras que a mãe citou, ou passar para o caderno as características de determinado momento histórico que o professor tenha comentado em sala (MARCUSCHI, op. cit., p. 49). Para realizar tal façanha, utilizando qualquer gênero, é preciso previamente entender ou compreender o que foi lido ou dito por alguém. É importante ressaltar que o texto escrito não anula o texto falado, é apenas uma outra forma de representação, já que a escrita, neste contexto, não é vista como uma modalidade sobreposta à fala, mas que caminha uma ao lado da outra.

 

3. DESENVOLVIMENTO DA EXPERIÊNCIA DIDÁTICA APLICADA NO ENSINO

 

Tendo em vista o ensino de gêneros textuais, desenvolvemos em sala de aula uma proposta com o gênero entrevista, valorizando sua funcionalidade (MARCUSCHI, 2002). Nesta proposta, a língua deve ser considerada como uma atividade interativa e a leitura/produção escrita como um trabalho criativo e processual.

Os procedimentos relatados a seguir envolvem, basicamente, duas etapas, sendo uma de contato com o gênero em questão e, outra de produção de entrevistas. Vejamos cada uma separadamente.

 

- 1 ª Etapa: Contato com o Gênero Entrevista

 

Nesta primeira etapa, como objetivávamos estreitar o conhecimento do alunado em relação à entrevista, estimulamos, num período de quinze horas/aula, equivalentes a três semanas, o contato da turma com este gênero, através de leitura, compreensão e análise. Antes de iniciarmos, necessariamente, a discussão sobre entrevista, expomos, de forma rápida, a noção de gênero textual, diferenciando-o de tipo textual, conforme aponta Marcuschi (op. cit.).

Inicialmente, este contato ocorreu com informações baseadas nos conhecimentos prévios dos alunos, ao serem questionados sobre o gênero em questão. Algumas idéias foram apresentadas, conforme podemos constatar a seguir: 

 

1. Tem um entrevistador e um entrevistado;

2. Tem troca de falas, um pergunta e outro responde;

3. É feita com pessoas famosas;

4. Pode ser escrita, gravada ou filmada.

 

Observemos a partir destas falas que os alunos, facilmente, apontaram características gerais sobre a entrevista, como tipo de estrutura, funções e finalidades, dada a circulação deste gênero na mídia local.

Em seguida, os alunos realizaram a leitura e a compreensão do artigo “Entrevista: uma conversa partilhada”, de Hoffnagel (2002), material teórico que pôde ser comparado com as informações anteriormente apresentadas acerca do gênero.

Considerando que os alunos tinham uma prática de leitura voltada a textos curtos, como os dos manuais didáticos, eles acharam este artigo teórico muito extenso. Desta forma, dividimo-lo por tópicos e distribuímos questões que auxiliariam na compreensão, num todo. Também dividimos a turma em cinco grupos, com uma média de sete pessoas em cada um[4].

Concluída a leitura, realizamos com toda a turma a discussão do artigo, a partir das respostas destinadas às questões. De fato, os alunos não tiveram muitas dificuldades em identificar as características da entrevista, pelo contrário, perceberam que algumas daquelas apontadas, no início da discussão, foram comprovadas, como uma estrutura marcada por perguntas e respostas, a presença de um entrevistado e de, no mínimo, um entrevistador, como apontado por Hoffnagel (2002, p.181-183).

Porém, o fato de que a entrevista não precisa ser feita, necessariamente, com pessoas famosas, foi bastante discutido. A expressão ‘famosas’ está diretamente voltada a um contexto específico, podendo ser feita, no caso das impressas, a um especialista, que entenda e esclareça um assunto, a uma autoridade, que é conhecida pelo público, ou que a pessoas públicas, que promoverão o entrevistado (ou o grupo representado) ou se tornarão mais conhecidas, como ressalta Hoffnagel (2002, p. 183).

Logo após a discussão, os alunos tiveram um contato com o gênero na modalidade oral, assistindo em vídeo a exposição de uma entrevista apresentada pela tv Futura, feita a uma antropóloga, cujo tema era Organizações Não-Governamentais (ONG). Após a exibição, os alunos destacaram alguns aspectos, como pode ser observado nos comentários abaixo transcritos:

 

1.       Ah! O entrevistador está bem sentado;

2.       A mulher que está entrevistando tem um papel nas pernas;

3.       Acho que esse papel são as perguntas que ela vai fazer;

4.       Essa entrevista não demorou muito, não;

5.       Há um certo respeito entre elas duas;

6.       Parece que elas estão conversando

 

Com base nestes comentários, notificamos que aspectos como postura do entrevistador, perguntas formuladas e organizadas previamente, duração da entrevista, sinceridade do entrevistado, espontaneidade e envolvimentos de ambos foram amplamente apontados e discutidos.

Em seguida, abordamos o gênero na modalidade escrita. Distribuímos duas entrevistas publicadas nas revistas Superinteressante (janeiro, 2002) e Veja (23 de outubro de 2002), com o objetivo de analisar a macroestrutura, associando-a às características observadas no artigo. Vale salientar que a escolha dessas revistas deveu-se ao fato de terem práticas de letramento diferentes: a revista Superinteressante circula mensalmente (de janeiro a dezembro) e aborda temas de interesses mais científicos, históricos e tecnológicos; já a revista Veja circula semanalmente (quatro edições semanais, além de seis edições especiais, durante o ano) e preocupa-se com temas voltados mais ao panorama social, cultural, político e econômico do país. Dentre os comentários dos alunos acerca dessas duas entrevistas, destacamos:

 

1.       Tem foto nas duas;

2.       Tem uma frase do entrevistado na foto;

3.       Antes da entrevista, tem alguém falando sobre o entrevistado;

4.       No lugar do nome da pessoa que faz as perguntas, tem o nome da revista.

 

É interessante refletirmos acerca destes comentários, pois eles foram feitos naturalmente, como se os alunos tivessem certeza do que estavam dizendo, fruto, mais uma vez, da facilidade em reconhecer características comuns em entrevistas.

Um aspecto discutido foi o apresentado por 4. Mesmo o leitor sabendo que quem havia feito a entrevista era um entrevistador (ou um grupo), na edição, o lugar destinado ao nome deste entrevistador ficava o nome da revista. Ou seja, se qualquer aluno da sala fosse fazer uma entrevista, ele poderia estar representando a “Turma do 1º ano noite”. O fato de raramente, nas entrevistas impressas, o nome do entrevistador ser usado na apresentação da entrevista, é também apontado por Hoffnagel (2002, p. 184). Após essas discussões, encerramos a etapa de contato com o gênero e passamos para a etapa da produção de entrevistas.

 

- 2a. Etapa: Produção de Entrevistas

 

Nesta segunda etapa, que durou três semanas e meia, um período de dezoito horas/aula, decidimos realizar, em grupos, algumas entrevistas reais e, posteriormente, efetivarmos a retextualização de uma destas entrevistas, objetivando sua publicação. Para isso, definimos um tema que, além de ser polêmico e de ter grande incidência de casos na cidade, os alunos demonstraram interesse em explorá-lo. Como dentre as suas leituras preferidas estava relacionamento, eles optaram por abordar sobre ‘Gravidez na adolescência’.

Selecionamos algumas pessoas que residiam na própria cidade e que pudessem contribuir com informações acerca do assunto escolhido. As pessoas escolhidas foram um padre, uma assistente social, uma enfermeira, uma pediatra, uma jovem (grávida na adolescência) e uma mãe de adolescente, que viveu esta realidade. Estas entrevistas seriam apresentadas no evento da escola, chamado de ‘Amostra Pedagógica’. Dividimos a turma em seis grupos, de forma que cada um ficou responsável por entrevistar uma das pessoas citadas. A entrevista com a jovem (grávida na adolescência) foi filmada em vídeo e as demais foram gravadas em áudio.

Primeiramente, os alunos elaboraram, em casa, algumas perguntas que serviriam de orientação durante a realização das entrevistas. Na sala de aula, estas perguntas foram revisadas sob a orientação da professora-pesquisadora, tendo em vista a dificuldade dos alunos de organizá-las e contextualizá-las. Para termos uma idéia das perguntas elaboradas previamente, vejamos alguns exemplos:

 

1.       Qual a importância do parceiro nessa hora?

2.       Na sua opinião, você acha que hoje em dia o caso de gravidez na adolescência é falta de informação ou falta de opinião?[5]

 

Estas duas perguntas formuladas seriam feitas à médica da cidade. No entanto, a pergunta do exemplo 1 pareceu ter sido elaborada para ser feita a uma pessoa conhecida, íntima e não para ser a primeira pergunta feita a uma pediatra. Além disso, o aluno utilizou expressões típicas de conversas de bate-papos, como “parceiros” em vez de ‘namorado’, e “nessa hora”, no lugar de ‘no momento em que descobre a gravidez de sua namorada’. Já a pergunta 2 contribuía, não só para que o entrevistador respondesse apenas a uma das opções de forma objetiva, como também desvalorizaria o conhecimento profissional da entrevistada.

Reconhecendo essas e outras dificuldades, retomamos as entrevistas publicadas nas revistas, notificando como as perguntas estavam elaboradas. Vale registrar também o nervosismo e a dificuldade de alguns grupos responsáveis pelas demais entrevistas, como a do padre, já que a situação exigia formalidade, tanto em relação à pessoa entrevistada, quanto ao assunto abordado.

O grupo responsável pela entrevista com a jovem (grávida na adolescência), facilmente, conseguiu realizar sua atividade, pois a entrevistada estudava na escola, era irmã de um dos componentes do grupo e mostrou-se aberta à discussão sobre o tema. Sendo assim, após a gravação em vídeo desta entrevista, toda a turma assistiu a exibição. Alguns dos comentários feitos são revelados nas falas a seguir:

 

1.       O som ficou muito baixo;

2.       Não dá para ouvir direito;

3.       Ficou uma coisa, assim, meio mecânica, artificial;

4.       Não houve espontaneidade, nem do grupo, nem da menina.

 

A turma, primeiramente, reclamou que houve problemas com a parte técnica da filmadora, motivo que assistimos à fita mais de uma vez. Depois, eles argumentaram que houve uma falta de espontaneidade tanto por parte do grupo-entrevistador, quanto por parte da jovem-entrevistada, o que pode ser justificado pela falta de prática neste tipo de produção oral. Logo após, acrescentaram que todo o grupo (total de sete pessoas), responsável por esta entrevista, estava presente no momento da filmagem, mas que apenas uma parte dele (quatro pessoas) fez o papel de entrevistador, o restante ficou como público, deixando a entrevistada um pouco nervosa. Devemos considerar também que a filmadora intimidou os envolvidos.

Outro problema detectado foi que os entrevistados leram, literalmente, as perguntas que estavam no roteiro, mesmo sabendo que elas deveriam servir apenas como orientação, como roteiro, para a produção do gênero em destaque (HOFFNAGEL, 2002), gerando uma certa monotonia e mecanicidade. Outro aspecto polêmico foi o fato de a jovem ter pedido para ler as perguntas feitas antes de ser iniciada a entrevista, o que pode ter influenciado nas respostas objetivas e diretas. Para afeito de demonstração, foram selecionados trechos desta entrevista, como apresentados abaixo:

 

G[6]: Em algum momento você escondeu sua gravidez? Por quê?

E: Eu escondi até os quatro meses, não por vergonha, mas sim, por medo.

 

G: Sua gravidez foi planejada ou por acaso?

E: Foi por acaso.

 

G: Em algum momento você pensou em aborto?

E: Não, nenhum momento eu pensei nisso.

 

Como vemos, estes três pares de ‘perguntas-respostas’ lembras as famosas questões fechadas, típicas dos manuais didáticos que comumente os alunos lêem, não havendo uma iniciativa do grupo para formular outras perguntas e incentivar uma maior argumentação nas respostas. Sendo assim, o próprio grupo sugeriu que esta entrevista deveria ser feita novamente, mas com apenas dois membros do grupo, escolhidos por terem se destacado no papel de entrevistadores e serem amigos da entrevistada.

Os demais grupos realizaram as outras entrevistas gravadas em áudio. Uma delas, feita com o padre, foi ouvida em sala de aula e comparada com a entrevista filmada. Depois disso, transcrevemos parte da entrevista com o padre, no quadro-negro, enfatizando as características da transcrição, do oral para o escrito.

Enquanto isso, o grupo responsável pela entrevista filmada, realizou sua reedição. O resultado desta nova versão, na íntegra, podemos observar a seguir:

 

E2: Fizemos uma entrevista no colégio Plínio Lemos com a jovem Mônica Silva Benício, em que ela conta sua história que engravidou aos 14 anos.

E1:Qual foi a reação do seu namorado quando soube de sua gravidez? Você continua com ele? Ele lhe dá assistência?

E: Quando ele ficou sabendo, ficou triste mas depois se conformou.  Porque ele sabia que eu não iria abortar.

E1: E a reação dos seus pais?

E: Logo depois que souberam da notícia ficaram tristes. Por dois motivos: um, pelo simples fato de saberem que eu estava grávida; outro, porque foram os últimos a ficarem sabendo.

E1: Vocês usavam algum método anticoncepcional?

E: Sim, usávamos camisinha.

E1: Você teve acompanhamento médico?

E: Tive, até os nove meses.

 

E1: Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas durante sua gravidez?

E: O maior problema foi o preconceito da sociedade, pelo fato de eu estar grávida tão nova.

E1: Em algum momento você esteve desamparada? Você teve apoio dos amigos?

E: Não, sempre alguém me apoiou, mas foram poucas as amigas que me apoiaram. A maior parte delas se afastaram de mim por preconceito.

E1: Se você pudesse voltar ao passado, o que você mudaria?

E: Eu não mudaria nada; meu filho é tudo pra mim.

E1: Que tipo de orientação você recebeu de seus pais sobre gravidez na adolescência?

E: Nenhuma, nunca conversamos sobre o assunto.

E2: Ao saber que estava grávida, como você se sentiu?

E: tudo mudou!

E2: Você acha que hoje em dia, o caso de adolescentes grávidas são mais raros ou cada vez mais está freqüente?

E: Não, estão se agravando. Eu acho que principalmente os adolescentes da zona rural, não recebem orientação adequada de seus pais. Até mesmo porque eles não tiveram nenhuma orientação na adolescência.

E2: Na sua opinião, você acha que hoje em dia o caso de gravidez na adolescência é falta de informações ou falta de opinião?

E: Eu acho que os dois. Muitas sabem que devem se prevenir, porque conhecem os riscos de uma gravidez não desejada e os riscos de pegar doenças sexualmente transmissíveis.

E2: Qual a mensagem que você deixa para os adolescentes de hoje?

E: A mensagem que eu deixo é, antes de fazer qualquer coisa, pense bem. E não se iluda com qualquer rapaz ou moça, para que não ocorra uma gravidez indesejada, evitando, assim, as doenças sexualmente transmissíveis.

 

Comparando esta transcrição com os fragmentos a pouco apresentados, parece-nos que alguns problemas como ‘perguntas-respostas’ extremamente objetivas e fechadas, permaneceram. Porém, algumas dessas perguntas foram feitas sem que estivessem no roteiro e, a qualidade do som também melhorou.

Ao lemos as duas primeiras perguntas desta reedição, percebemos que, intuitivamente, o entrevistador E1 omitiu o pronome interrogativo “qual”, na segunda pergunta, talvez, consciente que o assunto abordado era uma extensão da primeira pergunta. Este recurso também tinha sido observado durante as discussões acerca das entrevistas editadas nas revistas Superinteressante e Veja. 

Restando apenas alguns dias para a realização do evento Amostra Pedagógica, trabalhamos com toda a turma a retextualização, da fala para a escrita (MARCUSCHI, 2001), apenas da entrevista filmada com a jovem, tendo em vista sua publicação em um folheto informativo, que conteve também depoimentos das demais pessoas entrevistadas.

Ao trabalharmos a retextualização, tivemos a precaução de esclarecer aos alunos que a entrevista oral não estava “errada”. Contudo, era necessário fazermos alterações, já que o público-alvo do folheto abrangeria pessoas de faixa etária variada e algumas respostas estavam ainda muito resumidas. Desta forma, a solução encontrada foi unir as respostas dadas nas duas gravações anteriores, produzindo uma versão escrita do gênero, conforme podemos observar abaixo:

 

 

 

 

 

Após a leitura desta publicação, observemos, que o número de perguntas foram condensadas, passando de doze para apenas seis. É interessante destacarmos também que algumas expressões como “É possível descrever...” (primeira pergunta) foram inseridas, despertando no leitor o interesse para ler a entrevista editada.

Outra alteração ocorreu nas respostas que, umas unidas a outras, geraria maior interesse pela leitura. Podemos apontar, como exemplo, a primeira resposta da entrevistada. Comparando esta fala com trechos das duas entrevistas filmadas, registramos que se trata de quatro respostas dadas a quatro perguntas diferentes. Este procedimento, aceito e adotado em suportes como revistas e jornais (HOFFNAGEL, 2002), ocorreu nos demais pares ‘perguntas-respostas’ desta produção escrita.

Devemos destacar ainda que o título dado à entrevista, o resumo apresentado no início, a foto da jovem, a substituição do nome dos entrevistados pelo nome do folheto informativo e a ordem das perguntas formuladas, foram organizados pelos alunos, sob a orientação da professora-pesquisadora. Gostaríamos de destacar também que cerca de mil pessoas visitaram o evento e receberam o folheto informativo Primeiro Alerta Jovem.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

 

Nesta fase final, algumas observações são pertinentes acerca dos procedimentos adotados na experiência com o ensino de gêneros. No que se refere à estrutura do gênero entrevista, percebemos que os alunos facilmente identificam-na e corrigiram-na, porém, quando enfatizamos a importância da reescritura, eles reclamaram e acharam-na cansativa. 

Encontramos outras dificuldades para desenvolvermos esta pesquisa, tais como: falta de apoio dos professores, tanto das demais disciplinas, quanto dos que lecionavam Língua Portuguesa; curta duração das aulas, devido à chegada tardia do transporte escolar; ausência de tempo dos alunos para desenvolver suas atividades extra-classe; e falta de condições físicas da escola para a realização do trabalho em sala de aula.

Apesar disso, foi prazeroso percebermos nos rostos dos alunos a satisfação em desenvolverem um projeto que resultou não só numa atividade para a professora dar nota, mas num trabalho que valorizou as suas práticas sociais, repercutindo em toda sociedade, como comprovam os depoimentos dos alunos, nas falas a seguir:

 

1.       Na minha opinião foi legal, porque podemos mostrar um trabalho como esse à sociedade.

2.       Foi uma idéia muito legal, porque é mais uma forma de aprendermos o Português. Isso faz com que o aluno conheça um trabalho que o jornalismo apresenta; não é só para o papel, mas passa por um processo de organização.

 

Para finalizar, gostaríamos de afirmar que, fazer um trabalho na sala de aula que busque distanciar-se do letramento autônomo e que se aproxime do letramento ideológico e funcional não é utopia. Para tanto, é importante discutirmos acerca das características e das funções de vários gêneros de textos que os alunos têm contato, incentivando um ensino/aprendizagem intimamente ligado ao universo social destes, estimulando-os a descobrir que as suas realidades não são tão distintas dos “assuntos” discutidos nas aulas de Língua Portuguesa ou de outra disciplina.

                                                                                                                

REFERÊNCIAS

 

 

DOLZ, J. & SCHNEUWLY, B. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita: elementos para a reflexão sobre uma experiência suíça (francófona). Enjeux, p. 31-49, 1996. Tradução de Roxane, H. Rojo (inédito).

 

HOFFNAGEL, Judith Chambliss. Entrevista: uma conversa controlada. IN: DIONISIO, Ângela Paiva et. alii (org). Gêneros Textuais do Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, p. 180-193, 2002.

 

MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.

 

_________________. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade. IN: DIONISIO, Ângela Paiva et. alii (org). Gêneros Textuais do Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, p. 19-36, 2002.

 

PASQUIER, Auguste. e DOLZ, Joaquim. Um decálogo para ensinar a escrever. In: Cultura y Educacion (2). Infância y Aprendizaje, Madrid, p. 31-41, 1996.

 

SECRETARIA DO ENSINO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa. Brasília: MEC, 1998.

 


[1] Os dados apresentados no item 1.2 referem-se, predominantemente, à realidade existente no turno da noite, no ano de 2002.

[2] Apesar dos 52 alunos matriculados, apenas 35 concluíram o ano letivo.

[3] Estas expressões entre aspas foram ditas pelos sujeitos, em resposta a uma questão aberta do questionário.

[4] Nesta época do ano, já havia uma considerada evasão escolar.

[5] Esta pergunta também foi feita à jovem (grávida na adolescência), apresentada posteriormente.

[6] G representa o grupo e E, a entrevistada.