É comum vermos nos manuais de história da literatura brasileira a “literatura indianista” ser reduzida ao indianismo nacionalista romântico, ou ainda mais restritamente, às “Poesias Americanas”, de Gonçalves Dias, e aos três romances indianistas de José de Alencar – O guarani, Iracema e Ubirajara. Todavia, antes e depois deles, muitos foram os escritores que elegeram o índio e seu universo particular como temas de suas produções estéticas. A considerar o poema épico De Gestis Mendi de Saa (1563), do Pe. José de Anchieta, como a obra iniciadora do fato literário no Brasil[1], podemos afirmar que nossa literatura, já em seu primeiro embrião, iniciou-se indianista. Trazendo a discussão para época mais recente, temos, já no século XX, uma nova forma de indianismo em Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, ou ainda em Maíra (1977), de Darcy Ribeiro. Obviamente, o indianismo vazado no poema de Anchieta é bem diverso do que estrutura os textos indianistas românticos e do que embasa as produções indianistas do século XX. Isto porque entre as escrituras do De Gestis Mendi de Saa e de Macunaíma interpõem-se mais de três séculos e meio, e um sem número de reviravoltas na mentalidade política e estética dominante.

Compreendendo “série indianista brasileira” como o conjunto de obras literárias, em verso ou prosa, que trazem representações, positivas ou negativas, da figura do nativo do Brasil e de seu universo particular, podemos perceber a Prosopopéia, de Bento Teixeira, como o segundo elemento desta série, precedida apenas pelo De gestis Mendi de Saa, do Pe. José de Anchieta. Sendo parte integrante de nossa pesquisa de doutorado que ainda está em andamento e que tem como tema central a poesia indianista de Gonçalves Dias, propomo-nos neste trabalho a analisar a representação dos indígenas no poemeto de Bento Teixeira, o que nos dá subsídios – juntamente com a análise que realizamos de outros poemas coloniais integrantes da série indianista – para melhor percebermos por contraste a realização do indianismo nacionalista romântico do poeta maranhense.

Publicado em Lisboa, em 1601, no ano seguinte à morte do autor, o poemeto de Bento Teixeira apresenta, assim como ocorre no De Gestis Mendi de Saa, a louvação dos feitos dos colonizadores lusos, em seu caso, mais especificamente, das ações militares de Jorge de Albuquerque Coelho, o terceiro donatário da Capitania de Pernambuco. Destoam todavia pela quase ausência de uma perspectiva religiosa na Prosopopéia. Enquanto Anchieta dedica-se a mostrar, ao lado da campanha bélica, a campanha de cristianização dos nativos, ou seja, a conversão pela fé, Bento Teixeira restringe-se apenas às ações militares dos portugueses.

Em 94 estrofes em oitava-rima impregnadas de alusões clássicas e adornadas de maneirismos barroquistas, a Prosopopéia apresenta três núcleos narrativos. Estes núcleos são profetizados por Proteu[2] a diversas divindades marinhas e ninfas da mitologia clássica que se reúnem em concílio na costa pernambucana.

O primeiro núcleo narrativo trata da ação colonizadora de Jorge de Albuquerque Coelho e alguns parentes (seu irmão Duarte de Albuquerque Coelho e seu tio Jerônimo de Albuquerque) na costa pernambucana. De modo bastante sumário, mas sem escamotear o uso da violência, é narrada a conquista e a fundação da Nova Lusitânia (atual Olinda), a expansão da Capitania de Pernambuco, os conflitos com os índios e as lutas contra os franceses que haviam-se instalado no Nordeste. O segundo núcleo narrativo é dedicado ao naufrágio da nau Santo Antônio quando esta ia em uma viagem da Colônia à Metrópole (1565). Neste episódio o poeta narra as provações sofridas por Jorge de Albuquerque e os demais tripulantes, os quais, no desespero da fome e sede, são tentados a praticarem o canibalismo, comendo os cadáveres dos companheiros, o que não acontece, pois Albuquerque põe-se contra tal atitude e exorta os companheiros a resistirem a ato tão vil. O episódio conclui-se com a resistência dos homens e a chegada a Lisboa, de onde é realizada uma procissão pela manutenção de suas vidas. Já o terceiro núcleo narrativo do poema trata da batalha de Alcácer-Quibir (1578). Aqui é narrada a participação de Jorge de Albuquerque e seu irmão Duarte ao lado de D. Sebastião, rei de Portugal. É neste momento do poema, mais do que em qualquer outro, que Jorge de Albuquerque é mostrado como um herói de particular lealdade. Vendo D. Sebastião ferido e cego em meio à confusão da batalha, ele cede ao rei o seu próprio cavalo para que este escape do ataque inimigo, tornando-se em conseqüência ele próprio prisioneiro dos mouros. Ao mesmo tempo, seu irmão Duarte também é capturado e morre na prisão em conseqüência de ferimentos. Por fim, após os portugueses pagarem resgate, Jorge é posto em liberdade.

Como se pode perceber pela explicitação dos núcleos narrativos, neste poema, a ação não se passa integralmente em solo americano, sendo apenas o primeiro deles aqui desenvolvido. É neste momento do poema em que se narra a conquista e a fundação da Nova Lusitânia que se encontram as referências aos nativos e também à terra americana, ou mais precisamente, à costa pernambucana. Como em quase todo o poema transparece um tom de superficialidade, de inacabado, as referências indianistas apresentam-se pouco consistentes[3].

No que diz respeito à natureza americana, o poeta não se vale das particularidades da terra e, ao descrever o “Recife de Paranambuco”, retringe-se à utilização de adjetivos como “quieto” e “seguro” que exprimem o olhar de um observador prático, preocupado não com as singularidades naturais do sítio, mas apenas com as condições de navegação do lugar:

 

Junto da Nova Lusitânia ordena

A natureza, mãe bem atentada,

Um pôrto tão quieto e tão seguro,

Que pera as curvas Naus serve de muro.

(TEIXEIRA, 1972: 31) [4]

 

Apenas na estrofe XIX percebe-se uma aproximação do poeta da “cor local” pernambucana ao explicitar a etimologia do topônimo “Paranambuco”:

 

Em o meio desta obra alpestre e dura,

Ua bôca rompeu o Mar inchado,

Que, na língua dos bárbaros escura,

Paranambuco de todos é chamado.

De Para’na, que é Mar; Puca, rotura,

Feita com fúria dêsse Mar salgado,

Que, sem no dirivar cometer míngua,

Cova do Mar se chama em nossa língua. (p. 33)

 

Esta “descrição etimológica” de Bento Teixeira – que tem sido confirmada pelos estudiosos[5] – ao recuperar a origem indígena da palavra “Paranambuco”, constitui o único exemplo em todo o poema em que um dado cultural do povo nativo é levado em consideração, ainda que de forma depreciativa, por serem os nativos taxados de bárbaros e sua língua de escura.

Quanto aos índios propriamente ditos, ao leitor que pesquisa a maneira como o nativo americano é retratado, a Prosopopéia apresenta um fato curioso: diferentemente do que ocorre no De Gestis Mendi de Saa, no qual o narrador dedica grande quantidade de versos à caracterização detalhada de costumes indígenas, no poema de Bento Teixeira não há nenhuma descrição dos hábitos dos nativos. Além disso, em todo o poema não se encontra uma única vez a utilização das palavras “índio”, “americano”, “brasileiro”, ou qualquer outro termo ou expressão semelhante. Em quase[6] todas as vezes em que são feitas referências aos índios, o narrador utiliza-se do vocábulo “bárbaro”, seja em função substantiva ou adjetiva, construindo expressões como: “Os bárbaros cruéis”, “A Bárbara progênie”, “Bárbaro difuso e roto”, “A dura cerviz bárbara insolente”, etc. Esta insistência na escolha e na utilização do termo “bárbaro” aponta para a atitude reducionista do narrador e resulta não só na depreciação dos nativos como também em sua despersonalização. Enquanto os heróis são singularizados, nomeados e exaltados através de diversos epítetos positivos, os índios, como um conjunto massificado, são reduzidos a hipérboles negativas e repetitivas. Além disso, pode-se afirmar que por trás da recusa na utilização dos gentílicos indicando “nacionalidade”, ou melhor, um vínculo entre os índios e a terra que habitam, está a negação do colonizador ao direito de propriedade dos nativos americanos:

 

O Princípio de sua Primavera

Gastarão seu destricto dilatando,

Os bárbaros cruéis e gente Austera,

Com meio singular, domesticando.

E primeiro que a espada lisa e fera

Arranquem, com mil meios d’amor brando,

Pretenderão tirá-la de seu êrro,

E senão porão tudo a fogo e ferro. (p. 39)

 

Esta estrofe relativa aos feitos de Jorge de Albuquerque e Duarte Coelho frente aos nativos no momento da ampliação da capitania retrata bem o olhar do colonizador sobre a terra e seus primeiros habitantes. Bárbaros, cruéis e austeros, os índios são percebidos como seres imersos no erro e necessitados de domesticação. À medida que os colonizadores desconsideram a cultura dos nativos reduzindo-a à condição de erro, negam também seu direito à posse do sítio que habitam, o qual passa a ser distrito do reino português, passível portanto do poder jurídico do colonizador.

Nesta tentativa portuguesa de se apossar do Novo Mundo, a submissão dos índios faz-se fundamental, seja por meios pacíficos, como a conversão religiosa, pela qual os gentios relegariam seu primitivo universo de erros em benefício da instrução na fé cristã, seja por meios violentos – a espada, o fogo e o ferro. Na Prosopopéia, a via religiosa como proposta para amansar os nativos, nas raras vezes em que é mencionada, vem sempre acompanhada de um “senão” bélico – “Pretenderão tirá-la de seu êrro,/ E senão porão tudo a fogo e ferro” – ou seja, da possibilidade do reforço militar. É o que se percebe mais uma vez na estrofe seguinte, na qual o poeta não se isenta de ressaltar o “braço invicto” do herói português como promessa de coerção física.

 

O braço invicto vejo com que amansa

A dura cerviz bárbara insolente,

Instruindo na Fé, dando esperança

Do bem que sempre dura e é presente; (p. 39)

 

O que a princípio mostra-se como duas vias na relação entre colonizadores e nativos é reduzido a uma única no decorrer da narrativa. A violência e a brutalidade, que num primeiro momento eram um apenas um “senão”, apenas um reforço virtual às tentativas de submeter o índio pela instrução religiosa, deixam de ser uma segunda alternativa do colonizador e passam a ser uma prática freqüente, ressaltada e exaltada pelo poeta narrador:

 

Os braços vigorosos e constantes

Fenderão peitos, abrirão costados,

Deixando de mil membros palpitantes

Caminhos, arraiais, campos juncados;

Cêrcas soberbas, fortes repugnantes

Serão dos novos Martes arrasados,

Sem ficar deles todos mais memória

Que a qu’eu fazendo vou em esta História. (p. 41)

 

Vítimas da obstinação e do poder de fogo dos “novos Martes” – ou seja, novos deuses da guerra –, o destino dos nativos não poderia ser outro que não a destruição e o extermínio, ora premeditados:

 

Aquêle que na Idéia estou pintando,

Hierônimo sublime d’Albuquerque

Se diz, cuja invenção, cujo artifício

Aos bárbaros dará total exício. (p. 41)

 

ora cumpridos:

 

Depois de ter o Bárbaro difuso

E rôto, as portas fechará de Jano,

Por vir ao Reino do valente Luso

E tentar a fortuna do Oceano. (p. 49)

 

Enquanto os heróis portugueses são considerados os “novos Martes”, os índios são percebidos como descendentes de “Lémnio cruel”. Este epíteto atribuído a Hefestos (para os gregos) ou Vulcano (para os romanos) remonta ao mito segundo o qual ele teria sido atirado dos ares à ilha de Lemnos pelo seu pai, Zeus, por ter prestado ajuda a sua mãe, Juno, que havia sido castigada pelo pai. É considerado o deus ferreiro pela sua habilidade na metalurgia, sendo o responsável por forjar os raios de Zeus. Segundo a Odisséia, Vulcano teria sido traído por Marte, a quem prendeu em seu próprio leito juntamente com sua esposa Vênus. Este episódio, que é recuperado por Bento Teixeira na estrofe XLVI serve como amarração entre a tradição clássica e o seu poema, pois expõe uma motivação para a fúria de Lémnio em relação ao portugueses, os quais, além de serem considerados os novos Martes, são – segundo versos de Os lusíadas - protegidos de Vênus, mãe de Ulisses, fundador de Lisboa.

No segundo núcleo narrativo do poema, todas as atribulações enfrentadas pela tripulação da nau Santo Antônio são atribuídas a Lémnio, que se lança em vingança contra os lusos tanto por sua lembrança da traição mítica, como, no caso mais presente da narrativa, por estes terem destruído os índios, sua “Bárbara progênie e insolência”:

 

Porque Lémnio cruel, de quem descende

A Bárbara progénie e insolência,

Vendo que o Albuquerque tanto ofende

Gente que dele tem a descendência,

Com mil meios ilícitos pretende

Fazer irreparável resistência

Ao claro Jorge, baroil e forte,

Em que não dominava a vária sorte. (p. 49)

 

Além de servir como artifício para a motivação entre o primeiro e segundo episódios da narrativa, a filiação entre os índios e Lêmnio, concebido no poema como um deus vingativo e destruidor, não deixa de ser mais uma oportunidade de depreciação dos americanos. Enquanto de um lado apresentam-se Lêmnio cruel e sua progênie bárbara e insolente, de outro aparece um Jorge claro, baroil e forte, revelando o maniqueísmo de base de todo o poema, no qual as ofensas de Albuquerque são justificadas pelos interesses de expansão do domínio português pelos continentes americano e africano, ao passo que as ações de Lêmnio – e, por aproximação, também dos índios – são vistas como sendo realizadas por “meios ilícitos”. Produto deste maniqueísmo explícito juntamente com uma visão unilateral européia de completo desprezo pela cultura do outro, a Prosopopéia não poderia deixar de reduzir os habitantes da América a bárbaros, mesmo estes tendo sido as vítimas, não as autoras, da violência recorrentemente exaltada pelo poeta.

Esta visão contrária ao índio expressa no poema de Bento Teixeira reafirma a encontrada na epopéia de Anchieta e a que, de um modo geral, será desenvolvida nas crônicas, tratados e epopéias do período colonial. Respaldando toda esta violência da conquista lusitana estava a Igreja Católica que, através da bula Inter Arcana expedida pelo papa Clemente VII, em maio de 1529, afirmava que: “as nações bárbaras venham ao conhecimento de Deus não por meio de editos e admonições como também pela força e pelas armas, se for necessário, para que suas almas possam participar do reino do céu” (apud GOMES, 1991:66). Apenas em 1536, o papa Paulo III, através da bula Veritas Ipsa, afirma a condição de ser humano do selvagem americano, bem como sua capacidade de atender ao chamado de Cristo, proibindo sua escravidão (FRANCO, 1995: 54). O que por muito tempo ficou apenas em estado de tese...

Aqui não podemos nos furtar de transcrever um trecho do famoso ensaio de Michel de Montaigne, “Dos canibais”:

 

“(...) não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste a religião é sempre a melhor, a administração excelente, e tudo o mais perfeito. A essa gente chamamos selvagens como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem. No entanto aos outros, àqueles que alteramos por processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modificamos, é que deveríamos aplicar o epíteto” (MONTAIGNE, 2000: 195).

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O índio brasileiro e a revolução francesa: as origens brasileiras da bondade natural. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.

GOMES, Mércio Pereira. Os índios e o Brasil: ensaio sobre um holocausto e sobre uma nova possibilidade de convivência. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

MARQUES JÚNIOR, Milton. Fundamentos da literatura no Brasil: o século XVI. João Pessoa: Manufatura, 2001.

MONTAIGNE, Michel de. “Dos canibais”. In: _____ . Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 2000. vol. I.

TEIXEIRA, Bento. Prosopopéia. Introdução, estabelecimento do texto e comentários por Celso Cunha e Carlos Duval. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1972.


[1] É o que defende Milton Marques Júnior (2001: 71): “Genuinamente americano, na apresentação de um tema caro à história nacional e na representação da cor local e do seu habitante, o poema já deveria, há muito tempo, ser considerado como o início do fato literário no Brasil”.

[2] Proteu é um deus marinho que possui os dons da profecia e da metamorfose, a quem cabia a guarda do gado de Netuno. No poema, Proteu atua como um narrador hipodiegético responsável por prever as ações da narrativa propriamente dita.

[3] Já no Prólogo do poema, Bento Teixeira afirma que seu texto é apenas um rascunho. Sendo sincero, ou valendo-se do topos da modéstia afetada, o que de fato se apresenta na Prosopopéia é um poema visivelmente inacabado, pouco consistente em seus desenvolvimentos e com problemas de concatenação entre as partes.

[4] Todas as citações da Prosopopéia são retiradas da edição organizada por Celso Cunha e Carlos Duval, da qual nos utilizamos a versão do poema por eles modernizada. De agora em diante, indicaremos apenas as páginas em que se encontram as citações desta obra.

[5] Transcrevemos aqui o conteúdo da nota escrita por Celso Cunha e Carlos Duval (apud TEIXEIRA, 1972: 108) referente à estrofe em questão: “Paranambuco: Pernambuco. Do tupi para’nã, rio caudaloso, e pu’ka, gerúndio de pug, rebentar, estourar, furar-se, ser furado, arrombado”, segundo Batista Caetano, citado por Nascentes (Dic. Etim., II, s. v. Pernambuco, onde se coligem vários passos de autores antigos e modernos que corroboram esta interpretação)”.

[6] A única vez em que “bárbaro” não é utilizado dá-se na estrofe XLVI, onde se lê: “nação que tem nêle (Lémnio) confiança”. Como comentaremos mais adiante, ao aproximar os índios a Lémnio, que no poema aparece como uma entidade vingativa e destruidora, o poeta logra efeito semelhante ao que obtém quando os trata por bárbaros.