INTRODUÇÃO

 

 

Um trabalho que vise conciliar a escrita e a fala é bastante desafiador, já que, durante nossa vida escolar, aprendemos que a fala difere da escrita, entre outras coisas, pelo fato desta estar ligada à forma padrão da língua, enquanto que aquela se refere à forma não padrão. Porém, ao observar a escrita dos alunos do ensino fundamental percebemos uma quantidade considerável de variação das palavras. Vocábulos como roubo, jovem, papel, são escritos pelos alunos como robo, jovi e papé, comprovando que a variação alcança âmbitos maiores que a fala. Ela já está presente também na escrita.

Por acreditarmos que a língua escrita, assim como a fala, não é algo estático, pretendemos com este trabalho demonstrar que a variação se faz presente nos dois lados da linguagem: fala e escrita, e que sofre influência de fatores condicionadores, sejam eles sociais ou estruturais. Os fatores sociais estão ligados a características sociais dos autores dos textos enquanto que os estruturais relacionam-se a características inerentes aos vocábulos.

O fenômeno que analisaremos será a representação da consoante nasal na escrita dos alunos do ensino fundamental. Objetivamos com esse trabalho observar se o apagamento dessa consoante, fenômeno bastante freqüente na fala, também ocorre na escrita. Além disso, tencionamos comprovar que as características sociais dos alunos tem influenciado seu modo de escrever.

 

 

2  A CONSOANTE NASAL NA SÍLABA

 

 

A sílaba, na língua portuguesa pode ser apresentada por  cinco  estruturas diferentes, são elas:

V (vogal) Ex: a – mi – go

VC(vogal + consoante) Ex: ar – te

CV(consoante + vogal) Ex: pa – to

CVV(consoante +vogal +vogal) Ex: cai – xa

CVC(consoante + vogal + consoante) Ex: can – to

As sílabas terminadas por vogal são denominadas sílabas abertas, enquanto que as terminadas em consoante são chamadas de sílabas travadas(CÂMARA, 1994). Considerando as sílabas travadas percebemos uma particularidade no que diz respeito à nossa língua. A posição final dessas sílabas, ou seja, a posição de coda, só pode ser ocupada por quatro consoantes: /l/, /r/, /s/ e /n/. Dentre estas, focalizaremos nosso estudo na consoante nasal.

Na posição de coda, a nasal pode ser encontrada no léxico do português de duas maneiras:

1.      no interior de vocábulos. Ex: dan - ça, can – tor

2.      no final de vocábulos. Ex: jo – vem, me – xe –ram 

Entretanto, nossa pesquisa abordará a consoante nasal em final de vocábulos apenas em nomes. Como exemplo podemos citar: jovem, assim, nenhum, batom

 

2.1 A variação da consoante nasal na fala

 

A variação, seja no âmbito da fala ou da escrita, ocorre quando há diversas formas de se dizer a mesma coisa com o mesmo valor de verdade(TARALLO, 1995). Sendo assim, temos observado que há uma multiplicidade de formas que permeiam a língua, fazendo com que esta seja bastante dinâmica e heterogênea. Estudos variacionistas(VOTRE, 1978     ; BATTISTI, 1997) tem demonstrado que a consoante nasal /n/ tem se apresentado de forma variável na fala dos indivíduos. Palavras como ontem, homem, jovem, tem sido realizadas como onti, ômi, jovi, ocorrendo assim a supressão da nasal.

Ao observar esse comportamento variável da nasal, os estudos citados anteriormente, buscaram verificar o que estaria ocasionando esse fenômeno, e constataram que os indivíduos que não realizavam a consoante nasal nas palavras estavam sendo influenciados por suas características sociais, ou seja,  pelo seu grau de escolaridade, pela sua faixa etária e até mesmo pelo seu sexo.

De acordo com essas pesquisas, falantes com pouca ou nenhuma escolaridade favorecem bem mais o apagamento da consoante do que os com maior grau de instrução. Esse fato demonstra que a escola influencia de forma considerável as escolhas lingüísticas dos falantes.  

 

 

 

3 A TEORIA DA VARIAÇÃO E SUA RELAÇÃO COM FENÔMENOS DE FALA E ESCRITA

 

 

Quando pensamos num estudo de fala e escrita logo remetemos a fala ao aspecto não padrão da língua, enquanto que à escrita a forma padrão da mesma. Tal comportamento provém, muitas vezes, do fato de que a fala é espontânea, não sendo possível apagar algo que foi dito, o que não ocorre na escrita, visto que ao escrevermos um texto, por exemplo, podemos refaze-lo, temos tempo para elaborá-lo e, por isso, geralmente utilizamos a forma padrão da língua nesse tipo de atividade.

Contudo, há um equívoco quando se considera a escrita superior ou mais correta que a fala, pois, conforme afirma Marcuschi (2001), “em primeiro lugar deve-se considerar o aspecto que se está comparando e, em segundo, deve-se considerar que esta relação não é homogênea nem constante”. Ao longo dos anos a escrita vem sendo considerada mais prestigiosa que a fala, porém isso é um ponto de vista mais ideológico, já que alguns estudos defendem que a fala é anterior à escrita. Assim, o que está por trás dessas classificações são questões culturais, não havendo estudos comprobatórios da predominância da escrita sobre a fala.

Do mesmo modo não há nada que comprove que a escrita está livre da variação, conforme acreditam alguns. Assim como a fala apresenta formas variantes, da mesma forma ocorre com a escrita. Ambas não são estáticas ou estanques, visto que nos dois processos(fala e escrita) o indivíduo é o agente, ou seja, ele pode criar e modificar, fazendo com que formas presentes na língua sejam alteradas. Esse comportamento lingüístico do indivíduo é reflexo da sua vivência em sociedade, pois como esta se encontra numa transformação constante, da mesma forma ocorre com o homem que nela está inserido.

Diante desse aparente caos em que se encontram a fala e a escrita, a Teoria da Variação(LABOV, 1966) aparece como uma teoria que visa sistematizar as variações faladas e escritas, buscando identificar quem são os indivíduos que realizam as formas variantes e o que os tem levado a comportar-se desta forma. Nessa teoria, a língua é observada com uma metodologia mais rigorosa, pois trabalha com dados empíricos que são demonstrados através de resultados estatísticos.

Um estudo variacionista é capaz de traçar um perfil do comportamento lingüístico do indivíduo, sendo de grande utilidade para os professores, que ao terem contato com estudos dessa natureza, podem refletir sobre as atitudes lingüísticas de seus alunos, buscando, inclusive, opções de como trabalhar essas questões em sala de aula.

 

 

4  METODOLOGIA

 

 

Para a realização deste trabalho utilizamos a metodologia da Teoria da Variação, por isso selecionamos um corpus para embasar nossa pesquisa.

Esse corpus é formado por 32 alunos, sendo 16 da rede pública e 16 da rede particular de ensino, divididos de acordo com o sexo e a série que está cursando. Esses informantes foram estratificados da seguinte forma:

 

Sexo: 16 meninos e 16 meninas

 

Escolaridade:  08 - 1° série do Ensino Fundamental 

                       08 – 2° série do Ensino Fundamental 

                       08 – 3° série do Ensino Fundamental 

                       08 – 4° série do Ensino Fundamental 

 

Conforme a Teoria da Variação, os fenômenos variáveis que ocorrem na fala e na escrita são condicionados por variáveis sociais e lingüísticas. Para nosso trabalho as variáveis sociais selecionadas foram, portanto, sexo, escolaridade, tipo da escola e o conhecimento que os alunos tinham das palavras ditadas.

Selecionado e estratificado o corpus foram aplicados os ditados formados de palavras que continham a consoante nasal em posição de coda, como é o caso de jovem, batom, refém, entre outras. Nesses ditados observamos se a maneira como os alunos falam interferem na sua escrita, ou seja, se o aluno pronuncia jovi pode ser que na forma escrita ele também represente assim tal palavra. 

Os dados coletados através da aplicação dos ditados foram analisados resultando em estatísticas bem interessantes. A representação desses dados em gráficos, assim como a discussão dos resultados é o que veremos na seção seguinte.

 

 

5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

 

 

Após coletarmos os dados, elaboramos gráficos que ilustram os comportamento lingüístico dos alunos, isto é, demonstram estatisticamente o apagamento da consoante nasal em não verbos, além de evidenciar quais fatores dentre os selecionados influenciaram mais diretamente no fenômeno analisado.

 

5.1 Sexo

 

Os estudos variacionistas sempre trazem a variável sexo como uma das principais condicionadoras dos fenômenos variáveis. Na verdade, a palavra sexo, em estudos dessa natureza, está mais relacionada à questão do gênero, isto é, o que define o comportamento lingüístico de uma pessoa não são suas características genéticas que o tornam homem ou mulher, mas sim o papel ocupado pelo indivíduo na sociedade.

As mulheres, geralmente, tendem a utilizar a forma padrão da língua, pois em sua maioria, são responsáveis pela educação dos filhos, além de ter que firmar seu papel na sociedade, tendo, muitas vezes, que comprovar sua eficácia profissional, utilizando-se, para isso, de uma linguagem formal, seja ela no aspecto oral ou escrito.

No que se refere ao homem, é comum vê-los utilizando as formas não padrão da língua, sem que tal atitude prejudique  sua imagem no meio social, de forma que há uma liberdade maior para o homem criar e modificar formas da língua.

Se observarmos o gráfico 1 perceberemos que nosso estudo ratifica as informações supracitadas,  pois ao analisarmos os quatro tipos de finais nasais verificamos que em dois deles os homens se comportam como usuários mais freqüentes da  forma não padrão, o apagamento, do que as mulheres.

 

Gráfico 1

 

 

 

Notamos, então, que em palavras como viagem e nenhum, as mulheres preservaram a nasal, já em palavras como assim e ruim o comportamento de ambos foi igual, e apenas com palavras de final /om/, como é o caso de batom e bombom, as mulheres se comportaram como favorecedoras do apagamento, o que é bastante inusitado, visto que nesses vocábulos a consoante nasal está na sílaba tônica da palavra, posição inibidora do apagamento( VOTRE, 1978).

Resultados dessa natureza comprovam  que os homens, no que se refere ao fenômeno estudado, favorecem o apagamento da nasal, entretanto, também demonstram que a variação está presente na escrita das mulheres, mesmo que seja grande a cobrança sobre elas de que as meninas devem escrever corretamente, segundo a norma culta da língua.

 

 

5.2  Escolaridade

 

 

É inquestionável a influência que a escola exerce sobre a escrita de um indivíduo, pois é nela que temos contato com a língua padrão, e é exigido de nós o domínio da norma culta, seja na fala ou na escrita.

Nos quatro primeiros anos do denominado ensino fundamental, que são as séries abordadas no nosso estudo, há uma exigência maior por parte dos professores, pois é a fase pós-alfabetização, quando a criança vai aperfeiçoar sua leitura e escrita e por isso, a variação linguística é praticamente esquecida nas escolas, fazendo com que as crianças classifiquem como erradas todas as formas que diferem da forma padrão.

Ao riscar de vermelho os textos escritos de seus alunos alguns professores, muitas vezes, não tem noção de que aquela forma selecionada pelo seu aluno está retratando o ambiente no qual ele vive, pois se seus pais só falam ômi, mesmo que o aluno tenha contato com a forma “correta” na escola, com certeza ele tenderá a utilizar a forma que ouve durante maior parte do seu dia.

Com o passar dos anos o aluno vai tendo uma maior consciência linguística de quando usar uma forma ou outra já que terá maior contato com o estudo da língua. Vejamos se é o que ocorre em nosso estudo a partir do gráfico 2:

 

Gráfico 2

 

 

 

Percebemos nas séries iniciais, especialmente na primeira, uma freqüência considerável  do apagamento da nasal. Esse fato pode ser explicado pela pouca intimidade que os alunos dessa série têm com a língua, pois é uma série em que alguns alunos soletram para poder escrever e estão bastante ligados à fala, não  distinguindo muito bem a fala da escrita.

Uma questão bastante interessante é que de acordo com estudos anteriores(BATTISTI, 1997; VOTRE, 1978) as palavras terminadas em /om/ e /um/ são as menos passíveis do apagamento, é o caso de batom, bombom, nenhum, e mesmo assim foram as que mais sofreram variação entre os alunos. Essa frequência vai decrescendo com o aumento das séries, comprovando que quanto maior intimidade com a língua, mais os alunos vão discernir quando usar a forma padrão e a não padrão.

 

 

5.3 Tipo de escola

 

 

Há algum tempo as escolas públicas eram referenciais de ensino no país, de forma que mesmo pessoas de classe social alta matriculavam seus alunos nessas escolas. Com o passar dos anos as escolas privadas foram ocupando a posição de mais qualificadas e bem equipadas, fazendo com que começasse a distinção entre alunos de escola privada e alunos de escola pública.

É bem comum ouvirmos comentários de que os alunos de escola privada são mais bem preparados que os da escola pública, devido ao nível dos professores dessas escolas e da condição social dos alunos. Contudo, como em toda regra há sua exceção, se tomarmos como exemplo redações de vestibulares de alunos da rede particular de ensino, verificaremos  desvios da norma culta em igual, ou até maior número, do que os alunos da rede pública. Verificamos então, que não podemos considerar o tipo de escola como um fator isolado, mas sim relacioná-los a outros, conforme é feito em nosso trabalho.

O gráfico 3 apresenta os resultados das comparações do comportamento lingüístico dos alunos das duas escolas selecionadas para a execução deste trabalho, sendo uma pública e a outra particular.

 

Gráfico 3

 

 

 

O gráfico nos mostra que apenas em uma  das quatro terminações estudadas não houve ocorrência de apagamento por parte dos alunos da escola privada. Na primeira terminação eles comportaram-se como inovadores utilizando mais a forma não padrão que os alunos da rede pública. Com  palavras de terminação /om/, como batom,  comportaram-se da mesma forma que os alunos da rede pública, e com palavras de terminação /um/, como algum, os alunos da escola pública foram os grande favorecedores do apagamento.

Dados como esses refletem que mesmo vivendo em ambientes escolares diferentes há semelhanças entre o comportamento dos alunos, o que pode ser explicado pela influência de ambientes externos sobre o alunado, tais como televisão, revistas e a própria família e amigos.

 

 

5.4 Tipo de palavras (novas x dadas)

 

 

Para avaliar se a intimidade dos alunos com as palavras interferem no processo de apagamento da nasal na língua escrita, dividimos as palavras ditadas em novas e dadas. Determinamos como palavras novas as palavras que os alunos não tem escrevem com tanta freqüência  como é o caso de refém, regulagem; já como palavras dadas classificamos aquelas palavras que os alunos escrevem regularmente, ou pelo menos não tem tanta dificuldade na grafia. 

Gráfico 4

 

 

 

 

Através do gráfico 4 podemos perceber que essa variável não é tão influenciadora como as outras, porém, mesmo assim, ficou evidente que o número de apagamentos é bem maior nas palavras novas, pois  não tendo um contato freqüente com as palavras os alunos ficam em dúvida sobre como escrever, e então optam pelo apagamento. 

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

 

Apesar de haver muito ainda a ser discutido sobre a escrita, nosso estudo alcançou o objetivo desejado ao traçar um perfil lingüístico do alunado de 1° à 4° série do ensino fundamental, no que se refere à representação da consoante nasal na língua escrita.

Verificamos que as variáveis selecionadas nos deram suporte para ratificar o quem tem sido afirmado pela Teoria da Variação, de que o sexo, a faixa etária, a escolaridade e a intimidade dos alunos com o léxico da língua influenciam sua fala e escrita, determinando suas escolhas entre a forma padrão ou não padrão da língua.

Observamos então, que o fato de um aluno utilizar uma das formas não diz respeito apenas ao seu grau de escolaridade, mas vai muito mais além, pois envolve todo contexto social do qual faz parte.

Melhor seria se os professores que lidam com o ensino de língua tivessem esse tipo de concepção, compreendendo seu aluno como alguém dinâmico e mutável. Dessa forma, a escola mudaria sua imagem  de um lugar onde se aprende uma língua que não se usa para uma instituição viva e atrelada à realidade de seus alunos.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BATTISTI, Elisa. A nasalização no português brasileiro e a redução dos ditongos nasais átonos – uma abordagem baseada em restrições. Tese(Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1997.

BESERRA, Ana Clarissa Santos. A variação da consoante nasal em posição de coda em não verbos na fala do pessoense. Mimeo

HORA, Dermeval da (Org.) Teoria da Variação: uma retrospectiva. IN: Diversidade Lingüística no Brasil. João Pessoa: Idéia, 1997.

LABOV, William.  The social stratification in New York City. Washington D.C. Center of Applied Linguistic, 1966.

MARCUSCHI, Antônio Luis. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2001.

TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. São Paulo: Ática, 1995

VOTRE, Sebastião J. Aspectos da variação fonológica na fala do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em Letras, PUC-RJ, 1978.