Este trabalho tem por objetivo apresentar alguns aspectos sobre a língua
falada, tendo como pano de fundo a noção de gêneros textuais, conforme
Marcuschi (2001, p.13-27), com
vistas a dar sugestões relacionadas ao ensino da língua materna.
Segundo
Ong (1998, p. 10), a sociedade
humana primeiramente se formou com
a ajuda do discurso oral, tornando-se letrada muito mais tarde em sua história.
O Homo Sapiens existe há cerca de 30.000-50.000 anos. e o mais antigo registro escrito data de aproximadamente 6.000
anos, e limitando-se apenas inicialmente a determinados grupos sociais. Além
disso, Milanez (1993, p. 15) ressalta que somente 5% das línguas existentes no
mundo possuem escrita especial.
Diante disso, é inegável a importância da língua falada nas
sociedades humanas como um todo. Contudo, a
tradição postula talvez por influência da
gramática greco-latina da Antiguidade Clássica, superioridade da língua
escrita sobre a língua falada, apesar de sua tardia entrada no
processo de comunicação da humanidade.
Para
Marcuschi (1995, p. 1-2), um dos fatores determinantes dessa prioridade é o
fato da escrita ser adquirida em contextos formais - na escola, o que a torna um
bem cultural desejável; isso sem se falar na função que desempenha em
sociedade, tornando-a indispensável para enfrentar o dia-a-dia. Há, contudo,
alguns lingüistas que se posicionam contrários à questão de se escolher uma
modalidade superior em relação à outra. Biber (1988, p. 8),
por exemplo, atribui para os
falantes um conhecimento extenso, que envolve a competência gramatical, com
foco nos componentes fonológico, sintático e semântico e a competência
comunicativa ligada às condições e ao modo do uso, tanto da língua falada
como da língua escrita. Portanto,
a exclusão de uma pela outra não é
pertinente, embora reconheça o status primário que a fala detém, já
que o homem fala antes de escrever. Contudo, isto não é razão para se
considerar a escrita como secundária. Ambas, assim, merecem ser pesquisadas e
fundamentadas numa base eminentemente empírica.
Saussure ([1916] 1969, p. 33-34), o pai da lingüística moderna, não
obstante ter postulado que
se devesse estudar a fala, ressaltando a sua importância para os estudos lingüísticos,
reconheceu a tendência predominante, até mesmo pelos lingüistas, de
considerar a escrita, segundo ele próprio, a imagem da língua falada, ou seja,
a sua representação. E além
disso, ao estabelecer os seus princípios lingüísticos e posturas metodológicas,
o mestre de Genebra priorizou a langue enquanto
sistema abstrato, definindo-a como o objeto de estudo da ciência da linguagem.
De igual modo procedeu Chomsky (1965), ao propor a competência lingüística
como seu objeto de estudo, ou seja, o conhecimento mental "puro" de
uma língua particular por parte do sujeito falante (RAPOSO, 1992, p. 21) e não
o desempenho, o uso concreto da linguagem em situações de fala concretas
(CHOMSKY, 1965, p. 3).
Essa
postura de ambos, Saussure[1]
e Chomsky, retirou dos estudos da lingüística científica as pesquisas de
cunho semântico-pragmático, conseqüentemente, toda produção
textual-discursiva, centrando-se no chamado sistema formal, que, para Beaugrande
(1997), representa a lingüística de birô,
“a homework linguistic”, visto que
os referidos lingüistas e seus discípulos trabalharam em casa ou em
laboratórios, numa distância da prática lingüística, subestimando assim a
prática comunicativa.
Mais
recentemente, em meados da década de noventa do século XX, o Ministério da
Educação, preocupado com a crise do ensino, causada, segundo Castilho (1998),
pela crise social, crise científica e crise do
magistério, bem assim com a demanda
de uma sociedade marcada pela competição e pela excelência, foi
impelido a rever os currículos que orientam o trabalho realizado pelos
professores e profissionais de áreas afins. Essa revisão, no que diz respeito
ao ensino da língua portuguesa, determinou, segundo Marcuschi (1999), que
“pela primeira vez um documento
oficial viesse a dedicar atenção especial à linguagem oral no ensino de língua
materna, dando-lhe uma posição de destaque”.
Dizer
que se vai tratar da língua falada sob a perspectiva dos gêneros textuais,
entendidos, conforme Marcuschi (1994, 1995, 1998,
2000, 2001, 2002, 2003), como formas textuais
realizadas empiricamente, é considerá-la a partir do uso efetivo em práticas
sociais. É ver a língua escrita não
como a representação ou a imagem da língua falada, mas considerar
fala e escrita como duas modalidades de um mesmo sistema lingüístico,
sem postular para ambas a existência de duas gramáticas diversas - uma para a fala, outra para a
escrita. É refutar a supremacia da
escrita sobre a fala, uma vez que a relevância de uma das modalidades é
determinada apenas pelas práticas sociais; e são as práticas sociais que vão
determinar o lugar e o papel das duas modalidades. Dessa maneira, ao colocar a
relação fala/escrita no âmbito
das práticas sociais, Marcuschi possibilita, entre outras, a desmistificação
da tão argüida superioridade da escrita sobre
a fala, deixando claro que a preferência
de uma
ou outra modalidade tem a ver com aspectos funcionais, determinados dentro
de uma sociedade. Assim,
partilha-se do consenso, proveniente dos estudos lingüísticos funcionais,
de refutar a análise da relação fala-escrita, enquanto modalidades
lingüísticas estanques, posicionamento costumeiramente denominado de abordagem
dicotômica da linguagem, cujas pesquisas confinam-se
apenas aos gêneros textuais prototípicos de cada modalidade, ou
seja, a conversação, em sua versão face a face, para a língua falada, e o
texto científico, para a língua escrita, contemplando, pois, a
idéia de que essas duas modalidades se realizam como ergon sem
variação e de forma cristalizada (MARCUSCHI, 1995, p. 14), já que se volta
para o código e se situa tão-somente no co-texto lingüístico, isto é, no
plano das relações intra-textuais, sem buscar uma articulação com o plano
das relações pragmáticas e sócio-cognitivas
(MARCUSCHI, 2003). Essa abordagem insere-se no paradigma formal da
linguagem que considera a língua um
conjunto de sentenças fora do seu contexto de uso, e tem como função primária
a expressão do pensamento. Trata-se de uma lingüística autônoma, que,
conforme o postulado saussuriano, deveria
limitar-se ao estudo da forma e não da substância, atendendo pois ao
contexto da filosofia positivista dos primórdios do século XX, que advogava,
dentre outros, o status de ciência às pesquisas que detivessem a referida
autonomia, aspirada também naquela época pela lingüística (DILLINGER, 1991,
p. 397).
De
modo geral, a expressão “gêneros textuais” tem sido usada como sinônimo
da expressão “tipos textuais”; contudo, desde os anos sessenta do século
passado, as pesquisas lingüísticas, sobretudo ligadas à lingüística
textual, à Análise da Conversação e à Análise do Discurso, têm concebido
tais expressões de forma distinta, embora reconheça entre ambas relações
muito estreitas. Os gêneros referem-se às
formas textuais realizadas empiricamente, adquiridas de modo assistemático, à
medida que o indivíduo cresce no seio social; daí o
porquê do seu alto grau de estereotipia
e recorrência, gerando um quadro comum de gêneros textuais que reflete
o conhecimento textual de uma determinada sociedade. Exatamente por designarem
textos empíricos, são abertos
quanto ao número e relativamente vagos. Segundo Bakhtin (1979) “os gêneros
são apreendidos no curso de nossas vidas como membros de alguma comunidade”.
Marcuschi (2003, p. 3) frisa que
eles “são padrões comunicativos socialmente utilizados, que funcionam como
uma espécie de modelo comunicativo global que representa um conhecimento social
situado”. E é por isso que
Miller (1984) diz que quando se aprende um gênero textual, aprende-se não uma
forma lingüística, mas uma forma de ação social, imbuída de valores sócio-culturais.
Já a noção de tipos textuais
refere-se a uma classificação
abstrata, não empírica - um constructo teórico (MARCUSCHI, 1999, p. 1-8).
Caracterizam-se, não como textos materializados oriundos de práticas sociais,
mas por seqüências lingüísticas, tais como aspectos lexicais, sintáticos,
tempos verbais, estilo, dentre outros. Em oposição aos gêneros textuais, eles
abrangem apenas um número limitado de categorias comumente denominadas de narração,
descrição, argumentação. Assim,
quando se diz que um texto é descritivo, tem-se em conta apenas traços lingüísticos,
como por exemplo, um verbo estático no presente ou imperfeito, indicação de
circunstância de lugar, a ocorrência produtiva de adjetivos etc. Marcuschi
(1995) diz que a distinção entre gêneros textuais e tipos textuais pode
equivaler a uma distribuição entre classificação empírica e uma
classificação teórica, respectivamente. A classificação tipológica,
constante nos livros didáticos, muitas vezes apoiada em textos literários,
refere-se a tipos textuais, enquanto
que o conhecimento de uma criança sobre uma história (era uma vez...), ou de
uma piada, ou de uma senhora a
respeito de uma receita de bolo, representa o que se está denominando de gêneros
textuais.
Os
gêneros textuais abarcam, pois, textos diversos que surgem, historicamente,
tendo em vista sobretudo as novas tecnologias de uma sociedade. Isso significa
que fala e escrita devem ser analisadas a partir de um feixe
de gêneros textuais variados que mantêm estreita relação com a
comunidade social do indivíduo. E, dessa forma, e com base na visão sócio-interativa
da linguagem, o tratamento da relação fala-escrita não poderia confinar-se
aos gêneros textuais prototípicos de cada modalidade, mas dentro de uma
perspectiva que veja esta relação num continuum tipológico de
diferentes gêneros textuais, tratando-a dentro de dimensões da variação
lingüística, dimensões essas representadas
pelos diferentes gêneros textuais de cada modalidade lingüística. Como
ilustração, mencionam-se os seguintes gêneros textuais: carta pessoal, sermão,
carta comercial, bilhete,
reportagem jornalística, aula expositiva, notícia jornalística, horóscopo,
receita culinária, bula de remédio, cardápio de restaurante, resenha, edital
de concurso, piada, conversação espontânea, conferência, e-mail, chat
(bate-papo por computador), aulas virtuais e assim por diante.
Essa
abordagem vai permitir a identificação
de traços semelhantes e/ou diferentes entre as duas modalidades lingüísticas.
Reconhece-se, por exemplo, a existência de
pontos comuns entre a conversação espontânea e a carta pessoal,
assim como traços distintos entre o bilhete e a carta comercial ou ainda
entre a conversação e o sermão, o que evidencia que as características das
modalidades lingüísticas não se dão de forma estanque e dicotômica, mas sim
num continuum de gêneros textuais.
Essa
nova visão transcende, portanto, o limite do enfoque tradicional, ultrapassando
a abordagem dicotômica da relação
fala-escrita, determinando conseqüentemente a substituição de alguns dos seus
conceitos nucleares, tais como a noção
de língua[2]
e o conceito de texto. Para esta comunicação, destaca-se apenas a noção de língua,
conforme se observa a seguir:
“Esta
visão segue uma noção de língua como atividade social, histórica e
cognitiva. Privilegia a natureza funcional e interativa e não o aspecto formal
e estrutural da língua. Afirma o caráter da indeterminação e ao mesmo
tempo de atividade constitutiva da
língua, o que equivale
a dizer que a língua não é vista como um espelho da realidade,
nem como um instrumento de representação dos fatos”.
(MARCUSCHI, 2002, p. 22)
Como
se observa a partir desta citação de Marcuschi, a visão sócio-interativa
contrapõe-se à tese da autonomia lingüística, ou seja, refuta a premissa da
independência semântica, própria,
para a visão formal, do texto escrito. Segundo Nystrand e Wiemelt (1992, p.
28), “a doutrina que postula a
autonomia do texto escrito é tendenciosa e privilegia os objetivos do autor em
relação aos do leitor, tendo este um comportamento passivo cuja meta seria a
simples decodificação”, isto é, a extração da significação objetiva do
texto, graças exclusivamente ao conhecimento do sistema lingüístico.
A título de ilustração, considere-se o exemplo (1), extraído de
Fiorin (2002, p. 165-166):
(1)
Certa
ocasião, perguntaram
a Sérgio
Buarque de Holanda se
o Chico
era
filho
dele e ele respondeu:
-
Não, o Chico não é meu filho, eu é que sou pai dele.
Analisando
(1) sob o aspecto formal e pondo em foco apenas as relações semânticas
co-textuais de pai e filho, a resposta de Sérgio é absurda, pois,
se ele é pai do Chico Buarque, este naturalmente é seu filho. O
referido lingüista ressalta que “no sistema lingüístico temos oposições fônicas
e semânticas e regras combinatórias dos elementos lingüísticos. No entanto,
nem as oposições semânticas, nem as regras combinatórias conseguem explicar
os fatos” em (1), pois, na
verdade, o que o Sérgio Buarque queria dizer é
que, como Chico era mais famoso do que ele, não ficava adequado
apresentar o Chico como seu filho, e
sim o Sérgio como pai do Chico. Esse
simples exemplo deixa claro que, em muitos casos de comunicação, para se
processar a coerência textual – princípio de interpretabilidade (CHAROLLES,
1987), é necessário estabelecer a interface co-texto e con-texto, a fim de que
se calcule o sentido do texto.
Conseqüentemente,
não mais se aceita a idéia de que a língua seja vista como um sistema de
mostração de objetos, que supõe haver uma relação direta, biunívoca, entre
as palavras e as coisas do mundo, ou segundo Pietroforte (2002, p. 86) entre as
coisas do mundo e as coisas da língua, concepção esta que provavelmente tem
as suas raízes nos escolásticos da Idade Média que concebiam, de acordo com
Kristeva ([1969] 1983, p. 162), o estudo da linguagem como um espelho,
(speculum) que refletia a verdade do mundo.
Fiorin
(2002, p. 57), dentre outros, considerando
que a linguagem humana pode falar de objetos presentes ou ausentes da
situação de comunicação e que uma mesma realidade pode ser apreendida
de forma distinta, tendo em vista as experiências culturais de cada
povo, posiciona-se contra essa tese
de língua como nomenclatura, uma vez que entende a língua como uma forma de
categorizar, organizar e interpretar o mundo. A título de ilustração, ele
comenta que o inglês possui duas
palavras para nomear o animal carneiro: sheep (para referência ao animal
propriamente dito) e mutton (para referir-se à carne do animal, servida à
mesa). Já no português, isso não acontece, pois se tem apenas uma palavra
carneiro para designar os dois valores semânticos expressos através do inglês;
o que se observa é que, no caso da
língua inglesa, a mesma realidade é categorizada de forma diferente. Além
disso, os processos metafóricos e metonímicos demonstram de fato a
inviabilidade de se considerar a língua
como a nomenclatura, na medida que criam os seus sentidos através de analogias
que estabelecem relações subjetivas de base eminentemente cognitiva.
A
partir desse arcabouço, é pertinente considerar o conceito de língua
falada, consoante Marcuschi (2002):
“Língua
falada é toda a produção lingüística dialogada ou monologada natural,
realizada livremente em tempo real, em contextos e situações autênticos,
formais ou informais, na relação face a face em condições de proximidade física,
caso não haja interferência de meios eletrônicos tais como rádio, TV,
telefone, rede Internet ou semelhantes”.
(MARCUSCHI,
2002)
O
referido lingüista salienta, do conceito mencionado,
os seguintes traços:
-
discurso dialogado ou monologado
- produção natural e autêntica
- realizada em tempo real
- formal ou informal
- proximidade física se não houver interferência tecnológica
deixando
claro que a língua falada deva ser estudada a partir do seu contexto
comunicativo e não no isolamento das formas lingüísticas. O texto falado
seria fortemente marcado por fatores não lingüísticos; teria pouco ou nenhum
planejamento prévio, fato que lhe daria um caráter essencialmente provisório
(HILGERT, 2000, p.
19). Por outras palavras, o texto falado apresenta uma tendência para o não
planejamento, ou, ainda, com base nas idéias de Ochs (apud SOUZA, 2001,
p. 20) a língua falada é
planejada localmente, isto é, constitui uma atividade administrada passo a
passo. E apoiada exatamente nessa questão do planejamento, Barros (2000, p. 59)
ressalta que, na fala, a elaboração e produção coincidem no eixo temporal,
enquanto na escrita, há dois momentos diferentes, o primeiro em que se elabora
o texto, o segundo em que ele é efetivado.
No dizer de Antos (1962, apud HILGERT, 2000, p. 20), o texto
falado mantém todos os traços do seu status nascendi explícitos.
Castilho
(1998, p. 16-21), considerando sobretudo o fato da língua falada ser
fundamentalmente dialogada, ressalta que locutor e interlocutor assumem
co-autoria do texto, gerando,
segundo ele próprio, uma sintaxe
interativa, ou seja, uma sintaxe fragmentária, caracterizada pela riqueza de
elementos descontínuos, tais como elipses, anacolutos, entonações, tópicos não
lexicalizados, bem como de repetições, correções, hesitações, sobreposições
de vozes e marcadores conversacionais, tal
como se observa no exemplo (2):
(2)
Doc L1 L2 L1 L2 L1 |
o
seu marido sempre exerceu essa profissão que tem agora? não
ele teve escritório no início da carreira... teve
escritório durante... oito anos mais ou menos... depois...
ainda com escritório e como ele tinha liberdade
de advogar ele também... exercia a:: a profi/ o
a advocacia do Estado né? e:: depois é que ele começou
a lecionar quando quando houve... a necessidade do regime
de dedicação exclusiva, pela posição de DENtro
da carreira.. ele precisava
optar pela:
dedicação [
dedicação exclusiva
ahn ahn [
sabe?... então ele:: começou a lecionar
(NURC-SP D2 360 p.1160-1173) |
Marcuschi
frisa que não é interessante dar ênfase demasiada a essas características em
contraste com outras, já que, por exemplo,
os chats - os bate-papos na Internet apresentam, apesar de serem eventos
baseados na escrita, características muito próximas da língua falada, dentre
as quais citam-se:
(a)
são altamente interativos, de modo que a presença física e a produção
oral não caracterizam tão-só a interação conversacional em si. Quanto à
produção oral, apóia-se na observação do alemão Antos (1962, apud
HILGERT, 2000, p. 20), ao registrar que apesar da realização fônica ou sonora
ser uma condição necessária para a língua falada, ela não é uma condição
suficiente. Isto quer dizer que “a língua falada não equivale à língua
oralmente realizada”, pois a declamação de um poema de Drummond de Andrade
ou as notícias dos telejornais não se caracterizam na acepção de língua
falada e sim “escrita oralizada”;
(b)
são conversações síncronas, ou seja, temporalmente simultâneas (em
tempo real) e essencialmente um gênero escrito.
Assim, “nessa era eletrônica não se pode mais postular como exclusiva
da escrita a relação assíncrona, caracterizada pela defasagem temporal entre
produção e recepção” (MARCUSCHI,
2002, p.
4);
(c)
são produções escritas no formato de diálogo, cujas intervenções de
cada internauta equivalem aos clássicos turnos conversacionais em tempo real,
que ocorrem em seqüência encadeada, processando
um texto construído por co-autoria, resultando também numa sintaxe interativa,
caracterizada por uma linguagem bastante livre, longe da norma padrão;
(d)
ocorre também a presença de marcadores conversacionais que buscam
traduzir manifestações exclusivas da fala: alongamentos vocálicos com funções
paralingüísticas, bem como a presença de elementos semiológicos (imagens,
fotos, vozes, músicas etc). Considere-se
o exemplo (3), retirado de Hilgert (2000, p. 31), como ilustração deste gênero
textual:
(3)
Bia
22:52:43 Valentine
22:52:09 Bia
22:52:43 Valentine
22:50:02 |
fala
com URSO: ahhhh q pena! o q há de diferente? fala
com Bell: oi bellllllll! fala
com barbarella: muitooooooo”””” fala
com bia: biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiinha! |
Nota-se
em (3) uma linguagem extremamente livre, talvez com pouca preocupação com o
padrão culto, mas com carga acentuada de marcadores conversacionais, tais como
alongamentos vocálicos, tendo funções interjetivas.
Segundo
Hilgert (2000, p. 17), esses bate-papos – os chats, por apresentarem
traços tão próximos da língua falada, são
denominados de “texto falado por escrito”, argumentando que os
interlocutores, quando estão na internet,
sentem-se como se estivessem conversando entre si. Marcuschi (2002)
frisa, contudo, que essa idéia que hoje prolifera quanto a haver uma “fala
por escrito” deve ser vista com cautela, pois o que se nota é um hibridismo
mais acentuado, algo nunca visto antes, inclusive com o acúmulo de representações
semióticas, ou seja, textos que reproduzem estratégias de formulação da língua
falada. Particularmente,
considera-se essa denominação falado por escrito meio apressada, porque o que
se tem de fato é um texto escrito,
que recorre a estratégias da língua falada, mas se realiza por meio gráfico,
o que lhe dá um caráter híbrido.
2
SUGESTÕES PARA O ENSINO DE LÍNGUAS
Segundo
Kato (1985, p. 7), a escola deve dedicar-se ao ensino da língua escrita, argüindo
que o aluno não vai à mesma para aprender a falar e sim para adquirir a
escrita. Contudo,
essa prática pedagógica, denominada de status quo, tem demonstrado ser
ineficaz, devido aos altos índices de evasão e reprovação escolar que
envolvem questões diversas, tais como aspectos sociais, culturais e científicos.
Conforme
Castilho (1998, p. 9-13), a crise científica, diretamente relacionada aos
estudos lingüísticos, refere-se ao embate surgido em torno da década de 80 do
século passado, entre o paradigma formal e o paradigma funcional já
referenciados nesta exposição. Já a crise do magistério
estaria ligada à desvalorização do professor, ao material didático muitas
vezes repetitivo e homogêneo, sem considerar a heterogeneidade dos alunos em
sala de aula e também à crise científica, que determinou a transição de um
paradigma para outro, deixando a maioria dos professores
confusos, sem saber o que ensinar, como ensinar e para quem ensinar,
visto que quase todos eles possuíam uma formação conservadora, justificada
principalmente pela ausência, na época, de disciplinas nos cursos de Letras
que viessem a contemplar o paradigma funcional da linguagem. Aliás, ainda hoje
há cursos que, por questões diversas, não o incorporaram em seus programas,
oferecendo quando muito as suas disciplinas como optativas. E é por isso talvez
que a proposta dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN), documento oficial dedicado com atenção especial
à linguagem oral no ensino de língua materna,
esteja meio acanhada. Nesse
sentido, vale a pena considerar Marcuschi (1998) que, ao analisar o referido
documento, diz que os PCN em si mesmos não terão muito efeito na mão do
professor em sala de aula, mas podem ter, e certamente terão, um papel decisivo
para suscitar outra visão e um maior
cuidado com a oralidade nos manuais didáticos.
Castilho (op. cit.) frisa que a questão não é abandonar “uma
moda antiga” por uma moda recente, mas principalmente dar prioridade ao
paradigma funcional pelo fato de
ele iniciar o aluno valorizando seus hábitos culturais e ao mesmo tempo
levando-o a adquirir novas habilidades desconhecidas pelos seus pais. Assim,
conduz o aluno a se conscientizar da variabilidade
lingüística, traço inerente à
linguagem humana, já que, segundo Biber (1995),
um mesmo falante usará diferentes formas lingüísticas em diferentes
ocasiões, e diferentes falantes de uma língua dirão a mesma coisa de
diferentes maneiras.
Sugere-se,
pois, com base em Castilho (1998), Marcuschi (1994,1998, 2001, 2002, 2003),
Matencio (2001), Ramos (1999) e
Franchi (2001), que a escola tenha de fato como ponto de partida, para o ensino
da língua materna, a conversação, ou seja, o conhecimento lingüístico, não
virtual, mas o conhecimento lingüístico real de que dispõe o aluno ao chegar
na escola. Trata-se assim de um trabalho, que deve estar pautado nos gêneros
textuais, o que aproximará o aluno da sua realidade social. Essa proposta
parece ser eficaz porque traz em seu bojo a valorização da variedade vernácula
do aluno, motivando-o sobremaneira a engajar-se no processo pedagógico.
Sugere-se,
neste trabalho, embora se reconheçam as limitações de todo o processo
ensino-aprendizagem, ligadas a questões heteróclitas sócio-políticas, que as
mudanças relativas ao ensino da língua
materna procurem, não simplesmente
a substituição do paradigma formal pelo paradigma funcional da
linguagem, mas, sobretudo, estabelecer um certo equilíbrio entre ambos, sem a
necessidade de exclusão de qualquer um deles. Na verdade, a escola deve iniciar
o aluno, conforme Castilho (1998, p. 21), “valorizando
seus hábitos culturais, levando-o a adquirir novas habilidades desconhecidas de
seus pais”. Essa estratégia tem
seus efeitos imediatos, pelo fato de ilustrar a variação lingüística, tanto
nos eixos diastráticos quanto nos eixos diatópicos, sem discriminar a fala
vernácula do aluno. Não significa, contudo, que não se deva trabalhar também
questões formais, tais como aspectos morfossintáticos da língua portuguesa,
mas que se o faça a partir sobretudo dos gêneros textuais, que são os textos
efetivamente “apreendidos no curso de nossas vidas, como membros de
alguma comunidade” (BAKHTIN, 1997) e que
representam, não uma forma lingüística apenas, mas uma forma de ação
social, imbuída de valores sócio-culturais.
É oportuno ressaltar que, em função das similaridades existentes entre os diferentes gêneros textuais da língua falada e os da língua escrita, que qualquer conceito de língua falada, normalmente com foco na sintaxe interativa (repetições de elementos, fragmentariedade sintática, marcadores conversacionais, hesitações etc), não mais se restringe à especificidade dessa modalidade do sistema lingüístico, haja vista que quase todos esses traços estão também presentes em textos escritos, em especial nos da Internet (chats, e-mail-s etc), que trazem à baila a complexidade da relação fala-escrita. Assim sendo, parece que a lingüística, nos primórdios do século XXI, marcha ainda em busca de um conceito que de fato caracterize, de forma exclusiva e contundente, a língua falada, questão de difícil solução, sobretudo quando se tem como alicerce o enfoque funcional da linguagem, que considera a relação fala-escrita no continuum tipológico dos gêneros textuais.
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