A categorização é um processo imprescindível para a organização das experiências de qualquer pessoa. Constitui basicamente em uma ordenação de um número infinito de estímulos encontrados nas nossas experiências cotidianas em categorias finitas e de fácil acesso. Mas esta não é uma habilidade exclusiva dos seres humanos, como assinalam Varela, F.; Rosch, E. & Thompson, E. (2002). Todo ser vivo precisa categorizar para organizar suas relações com o meio que o cerca, de modo que sua sobrevivência seja garantida. A permeabilidade seletiva da membrana plasmática de uma célula, por exemplo, se apresenta como uma forma bastante elementar de categorização.
Nos seres pensantes a categorização é uma atividade mais complexa, uma habilidade cognitiva que os possibilita tratar estímulos diferentes como equivalentes e deste modo interagir significativamente com um número infinito e diversificado de objetos e situações a que se expõem. Em outras palavras, categorizar implica classificar as coisas segundo critérios de inclusão-exclusão, sejam perceptuais, funcionais, complementares, situacionais etc. Fica fácil então antever a grande importância do processo de categorização na atividade humana. Primeiramente, esta propicia uma enorme economia cognitiva, pois ao invés de termos de criar um espaço mental para cada coisa a qual interagimos, apenas a incluímos em uma categoria já definida em situação anterior. Em segundo lugar, toda nossa capacidade de simbolização gira em torno desse processo. O símbolo, como algo que representa um aspecto da realidade, é fruto de tal atividade. Em outras palavras, aquilo que denominamos de linguagem, essencial para a intersubjetividade, que permite que um saber sobre a realidade possa ser compartilhado por um grupo, tem seu nascedouro nessa atividade. Filo e ontogeneticamente, a categorização é o substrato da atividade lingüística.
A
linguagem patológica sempre foi alvo de interesse das Ciências da Cognição e
da Linguagem, uma vez que os estudos dos processos de aquisição e
desenvolvimento da linguagem a partir do considerado anormal (deficientes
mentais, surdos, cegos, pessoas emocionalmente perturbadas e vítimas de lesões
cerebrais) tem se
vislumbrado novos esclarecimentos sobre como o indivíduo adquire e desenvolve
um sistema lingüístico.
A afasia se inclui neste grupo por se definir como um distúrbio que acarreta uma perda total ou parcial da capacidade verbal do indivíduo, devido a uma lesão na zona cerebral responsável pela linguagem. Tem sua causa, na maioria dos casos, em acidente vascular cerebral (AVC), mas pode resultar também de traumatismo craniano, tumores ou abcessos cerebrais, de má formação vascular ou de encefalopatias.
De
um modo mais amplo, afasia se apresenta como um distúrbio complexo que envolve,
entre outras coisas, “desordens de expressão e compreensão da linguagem”
(BARBIZET & DUIZABO, 1985, p.40). Já Riper (1997) a define como um distúrbio
de simbolização, ou seja, um dano específico nos processos de formulação,
compreensão e expressão de significados.
Jacubovicz
& Meinberg (1985) conceituam a afasia como um distúrbio decorrente de um
dano cerebral de causa exógena (traumatismos, intoxicações etc) e/ou endógena
(aneurismas, tumores ou acidentes vasculares cerebrais variados), cujo
comprometimento da linguagem é acompanhado também por uma série de outros
comprometimentos de ordem emocional. Tal grau de comprometimento do indivíduo
dependerá de quais regiões do córtex cerebral foram afetadas, mas a
incapacidade de se comunicar adequadamente acarreta sempre em problemas
emocionais. Quando tal equilíbrio é afetado, reações comportamentais
diversas como egocentrismo, modificação da atitude abstrata, perseveração,
alterações de humor, distúrbios de atenção, de retenção e da memória,
inconsistência de respostas, anomias, estereotipias, jargão, agramatismos e
parafasias podem ocorrer.
O distúrbio afásico, devido a grande variedade etiológica, possui uma grande diversidade de manifestações sintomáticas, variando segundo graus e zona de comprometimento, assim como seu estágio de progressão e regressão. Isto conduz a indefinições nosológicas em torno da abrangência da categoria afasia. No entanto, como assevera Jakubovicz & Meinberg (1985, p.88), “a escolha do método de classificação depende do que queiramos saber ou do que queiramos dizer sobre a afasia”.
Como não foi propósito deste estudo discorrer sobre a classificação das afasias, adotamos aqui a classificação dicotômica de Love & Webb (1994), que as divide em dois grandes grupos: as afasias de emissão verbal fluida ou de Wernicke, e as afasias de emissão verbal reduzida ou de Broca. O primeiro agrupa os distúrbios que envolvem predominantemente os processos de decodificação, ou seja, de compreensão da linguagem. De um modo geral, não tem muita consciência de seu problema (anosognosia) e possuem uma fala abundante, repleta de parafasias, jargões, perífrases, dissintaxias e persistências, tornando o seu discurso cheio de palavras vagas e de sentenças desprovidas de sentido.
Os do segundo grupo compreendem os distúrbios de codificação, isto é, sua característica predominante é um déficit geral na expressão da linguagem. O afásico de Broca tem sua compreensão relativamente preservada e apresenta uma redução na expressão oral como também uma falta de iniciativa verbal. Observa-se uma fala espontânea pobre e hesitante, com disprosódia e supressão de traços gramaticais com uso acentuado de substantivos, verbos no infinitivo e adjetivos (agramatismo)
Deste modo, optamos então pelo estudo de sujeitos que se enquadram nessa segunda grande classificação, o qual aponta para os objetivos propostos nesta pesquisa, pois o que queremos saber são as estratégias utilizadas por tais sujeitos para tentar nomear e categorizar, haja vista serem estes sujeitos que geralmente falham nas escolhas dentro do campo semântico no momento de falar sobre coisas e eventos.
Para a realização deste estudo, foram escolhidos aleatoriamente em instituições de reabilitação dez sujeitos adultos na faixa etária entre 50 a 60 anos, sendo 5 (cinco) que se enquadravam dentro da categoria iletrados/semiletrados[1] e 5 (cinco) letrados, enquadrados no diagnóstico de afasia de Broca e que estivessem cognitivamente, fisicamente e emocionalmente aptos a realizar a atividade proposta. Um grupo controle de dez sujeitos com as mesmas características amostrais, mas sem comprometimento, foi aleatoriamente escolhido para fins de comparação, como se pode ver a seguir:
Quadro
01: Distribuição
geral da amostra (n = 20)
Segue-se abaixo tabelas com dados que consideramos relevantes sobre os sujeitos participantes da pesquisa:
Grupo Afásicos |
||||
Sujeito |
Idade |
Sexo |
escolaridade |
Ocupação |
M (S1G1E1) |
51 |
Feminino |
Cursou apenas o primário |
Do lar |
V (S2G1E1) |
52 |
Feminino |
4ª série ensino fundamental |
Do lar |
L (S3G1E2) |
55 |
Masculino |
Ensino médio completo |
Vendedor |
J (S4G1E2) |
58 |
Masculino |
Superior completo |
Fiscal Fazenda |
F (S5G1E1) |
56 |
Masculino |
4ªsérie ensino fundamental |
Marceneiro |
A (S6G1E2) |
59 |
Feminino |
Ensino médio completo |
Costureira |
M (S7G1E2) |
58 |
Masculino |
Ensino médio completo |
Carteiro |
N (S8G1E1) |
56 |
Feminino |
3ª série ensino fundamental |
Do lar |
M (S9G1E2) |
54 |
Feminino |
Ensino médio completo |
Professora |
J (S10G1E1) |
51 |
Masculino |
4ª série ensino médio |
Biscateiro |
Grupo Controle |
||||
Sujeito |
Idade |
Sexo |
Escolaridade |
Ocupação |
H (S11G2E1) |
50 |
Feminino |
3ª série ensino fundamental |
Lavadeira |
A (S12G2E1) |
54 |
Masculino |
4ª série ensino fundamental |
Pedreiro |
P (S13G2E1) |
57 |
Masculino |
Não sabe |
Sem ocupação |
J (S14G2E2) |
59 |
Feminino |
Superior completo |
Contabilista |
R (S15G2E2) |
56 |
Masculino |
Ensino Médio completo |
Autônomo |
Z (S16G2E1) |
55 |
Feminino |
4ª série ensino fundamental |
Lavadeira |
K (S17G2E2) |
55 |
Feminino |
Ensino médio completo |
Secretária |
N (S18G2E1) |
52 |
Feminino |
3ª série ensino fundamental |
Lavadeira |
M (S19G2E2) |
52 |
Masculino |
Ensino médio completo |
Cabeleireiro |
A (S20G2E2) |
60 |
Masculino |
Superior completo |
Psiquiatra |
Quadro 02:
Descrição dos sujeitos da
pesquisa (S = sujeito, G = grupo e E= escolaridade)
A estes sujeitos foi aplicado uma tarefa de categorização, que consistia em solicitá-los, mediante instrução prévia, a agrupar figuras sob critérios de similaridade ou taxonômicos (por exemplo, cão e gato como membros da categoria animal) ou sob critérios contextuais[2] (por exemplo, pão, manteiga e café como membros da categoria café da manhã.). O instrumento elaborado para esse fim é composto de 9 (nove) pranchas das categorias animal, vestuário e utensílios de cozinha, cada uma delas com uma figura central, uma figura abaixo à esquerda e uma outra abaixo à direita, que compartilham com a figura central relações contextuais e taxonômicas respectivamente. A cada escolha o sujeito foi solicitado a justificar sua resposta.
Os resultados obtidos podem ser resumidos no gráfico a seguir:
Gráfico
01: Distribuição das médias de ocorrência de escolhas categorizacionais
por contexto, similaridade e outra na amostra (N = 20) G1E1=afásicos
iletrados/semiletrados, G1E2= afásicos letrados; G2E1=grupo controle
iletrados/semiletrados; G2E2= grupo controle letrados.
Analisando primeiramente o grupo controle (G2), observa-se que existe uma diferença significativa entre sujeitos do grupo G2E1 e G2E2 nas escolhas por contexto (t (4,960)= ,001; gl = 8; p< ,05) e similaridade (t (-5,547)= ,001; gl = 8; p< ,05). Nota-se que no caso das escolhas por similaridade existe uma correlação negativa, indicando haver um aumento significativo na preferência destas, ao mesmo tempo que um decréscimo naquelas por contexto. Tal fato é corroborado pelos estudos de Macedo (2001) na qual a autora assinala que o efeito da escolarização provoca uma inversão no desempenho categorizacional em crianças, uma preferência pelo uso de associações por similaridade em detrimento de associações por contexto. Os estudos de Monteiro (2001) sobre o efeito do letramento em sujeitos adultos apontam em uma direção semelhante.
Quanto ao grupo dos afásicos (G1), tal fenômeno não ocorre. As diferenças encontradas entre as médias de ocorrências de escolhas por contexto e similaridade entre G1E1 e G1E2 não foram significativas (contexto [t (-,825)= ,433; gl = 8; p< ,05] similaridade [t (,180)= ,862; gl = 8; p< ,05] outra [t (1,500)= ,172; gl = 8; p< ,05]), o que nos traz um dado importante para um possível entendimento sobre de que forma o comportamento categorizacional de tais sujeitos esteja afetado. Se observamos o gráfico acima podemos perceber que, diferentemente do grupo controle, sujeitos afásicos iletrados/semiletrados e letrados exibem o mesmo padrão de comportamento categorizacional, demonstrando uma tendência a fazer escolhas por contexto. O mesmo se repete quando comparamos o desempenho categorizacional de sujeitos iletrados/semiletrados de ambos os grupos (G1E1 e G2E1).
Outro dado que nos chamou atenção foi a diferença encontrada no comportamento categorizacional entre sujeitos letrados de ambos os grupos (G1E2 e G2E2). Sujeitos afásicos letrados exibem um comportamento categorizacional bem diferente dos sujeitos letrados do grupo controle. Enquanto os primeiros adotam associações por contexto para explicar suas escolhas, os segundos adotam, preferencialmente associações por similaridade (contexto [t (3,497)= ,008; gl = 8; p< ,05] similaridade [t (-3,497)= ,008; gl = 8; p< ,05].
Retornando
ao gráfico acima, e com base nos resultados estatísticos encontrados, as
observações feitas demonstram haver um mesmo padrão de desempenho
categorizacional nos sujeitos G1E1, G1E2 e G2E1, marcado por escolhas por
contexto, enquanto que os sujeitos do grupo G2E2, têm suas escolhas pautadas
preferencialmente por critérios taxonômicos.
Comparados a um grupo de sujeitos sem comprometimento, os afásicos apresentaram um déficit significativo no uso de escolhas por similaridade, ou seja, semelhança de atributos perceptuais, enquadradas em critérios taxonômicos. Em contrapartida, observou-se um aumento no uso de critérios contextuais de escolha na tarefa de associação de figuras.
Como
já é sabido, na perspectiva simbólica, temos a memória semântica e a memória
episódica como duas estruturas que ocorrem concomitantemente no processamento
cognitivo-lingüístico. As conclusões
obtidas nesta pesquisa nos sugerem, entre outras coisas, uma releitura destas
estruturas à luz do que chamaremos de perspectiva das redes neurais, para que
se tenha um melhor entendimento de como estas estruturas (se assim ainda as
podemos denominar) estão inter-relacionadas. Ao demonstrar que tanto sujeitos
afásicos privados como expostos às condições de letramento estribam suas
escolhas categorizacionais em relações contextuais, que, grosso modo, atribuímos
à memória episódica (de eventos), estamos tentando demonstrar que a lesão
interfere significativamente na memória semântica de tais sujeitos. Como
explicar esse fenômeno? Será que por um princípio de economia cognitiva, as
redes neurais estruturantes da memória semântica sejam constituídas de menos
conexões sinápticas que as redes neurais que estruturam a memória episódica,
mais informativas que as primeiras? Isto explicaria, pelo menos em parte, uma
possível fragilidade da memória semântica,
devido ao seu número reduzido de conexões neurais, fruto de seu caráter
descontextualizado e, deste modo, de seu menor grau de informatividade.
Diante destas explicações, podemos postular possíveis respostas aos questionamentos propostos nesta pesquisa, a saber:
Ø
Os pacientes adultos com afasia de
emissão verbal reduzida apresentaram uma acentuada diminuição na categorização
por similaridade (isto é, por compartilhamento de atributos) em relação à
adultos sem comprometimento da mesma faixa etária.
Ø
As associações contextuais em
tais sujeitos foram consideravelmente predominantes, nos fornecendo indícios de
que há uma reestruturação de estratégias cognitivas em sua memória semântica
via contexto, pois a organização de subordenados se dá acentuadamente em
categorias contextuais (slot-filler).
Tal comportamento difere do observado
em adultos e crianças escolarizados, nos quais não existe uma diferença tão
expressiva no uso de associações contextuais e por similaridade.
Ø
Sujeitos afásicos de níveis de
escolaridade distintos não
apresentaram diferenças nas escolhas categorizacionais. Tanto os letrados
(G1E2) quanto os iletrados/semiletrados (G1E2) apresentaram o mesmo padrão de
respostas, voltado
predominantemente a formas contextuais.
Vale ressaltar que nesse procedimento experimental não foi observado nenhum déficit do comportamento categorizacional geral de tais sujeitos, mas apenas uma “compensação” de uso de associações contextuais em detrimento do menor uso de associações por similaridade, o que nos aproxima da concepção de Varela et al (2002) do processo de categorizar como fundamental para a sobrevivência psiquíca do sujeito.
BARBIZET,
J. & DUIZABO, P.H. Manual de
neuropsicologia. [ Trad. de Ana Gradiola Brizolara] Porto Alegre: Artes Médicas,
1985.
LOVE,
J. & WEBB, G. Neurologia para los
especialistas del habla y del language. 1994.
LUCARIELLO,
J. AND NELSON, K.. Slot-Filler Categories as Memory Organizers for Young
Children. Developmental Psychology
v. 21, p. 272-282, 1985.
JACUBOVICZ
R. & MEINBERG. R. Introdução à
afasia: elementos para o diagnóstico e terapia. Rio de Janeiro: Antares, 1985
LURIA,
A. R. Language and cognition.
Washington DC: V. H. Winston & songs, 1982.
DE
MACEDO, A. C. P. S. Escolhas categorizacionais em crianças de três a sete
anos. Boletim da ABRALIN. nº 26.v. 2
, 2001.
MONTEIRO,
R. S. A estruturação da memória semântica: os desafios do letramento e da
escolarização. Tese de Doutorado em Lingüística – Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), 143 p, 2001.
VARELA,
F.; ROSCH, E. & THOMPSON, E. The embodied mind:
cognitive science and human experience.
London: MIT Press, 2002.
RIPER,
C. V. Correção da linguagem: uma introdução à patologia da fala e à
audiologia. [tradução de Marcos A C. Domingues] Porto Alegre: Artes médicas,
8a.ed., 1997.
VYGOTSKY,
L.S. Pensamento e linguagem. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
[1] Esta junção de sujeitos iletrados e semiletrados em uma única categoria se apóia nos estudos de Monteiro (2001) a qual assevera que a diferença entre tais grupos é mínima, uma vez que no Brasil os primeiros anos de escolaridade para pessoa de baixa faixa sociocultural não são suficientes para tornar o aluno proficiente em leitura e escrita.
[2] Categorias slot-filler, segundo a concepção de Lucariello e Nelson (1985).