INTRODUÇÃO

            Levando em consideração resultados de diversas pesquisas voltadas para a questão dos gêneros textuais, a título de exemplo, Bakhtin (1997), Bronckart (1999), Swales (1996) e Marcuschi (2000, 2002), já se tornou evidente que os gêneros são fenômenos históricos profundamente ligados à vida cultural e social.

            Segundo Marcuschi (2001, p.19), os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia a dia. São entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa. Em outras palavras, são entendidos como realizações lingüísticas concretas definidas por propriedades sócio-comunicativas. Não são modelos estanques em qualquer contexto discursivo, caracterizando-se como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos.

            Tendo em vista essa realidade e o fato de que os gêneros variam e adquirem elementos diferentes ao longo do tempo, surgiu nosso interesse pela realização do presente estudo que visa fazer uma comparação entre aspectos estruturais, lexicais e sócio-interativos presentes em cartas pessoais, escritas atualmente, e em décadas anteriores.

            Porém, vale salientar que o nosso estudo é bastante introdutório, constituído apenas por um corpus de 20 cartas, escritas em diferentes décadas, a saber, nos anos 30, 40, 50, 80, 90, (do século XX) e nos dias atuais. A análise de tais cartas baseia-se, fundamentalmente, em reflexões feitas por Marcuschi (2000,2001), sobre a caracterização e funcionalidade dos gêneros textuais e em uma pesquisa desenvolvida por Jane Quintiliano Silva (2002), intitulada Um estudo sobre o gênero Carta Pessoal: das práticas comunicativas aos indícios de interatividade na escrita dos textos.

            Partindo do pressuposto de que é impossível se comunicar verbalmente a não ser por um gênero, assim como é impossível se comunicar verbalmente a não ser por um texto, Marcuschi (2002, p.22), nos faz refletir sobre a relevância de se conceber a língua como uma atividade social, histórica e cognitiva. Essa noção privilegia a natureza funcional e interativa e não o aspecto formal e estrutural da língua.

            A noção de gênero, segundo Marcuschi, esteve na tradição ocidental especialmente ligada aos gêneros literários, mas já não é mais assim, como lembra Swales (1990, apud Marcuschi, 2002), hoje gênero é facilmente usado para referir uma categoria distinta de discurso de qualquer tipo, falado ou escrito, com ou sem aspirações literárias. É assim que se usa a noção de gênero em Etnografia, Sociologia, Antropologia, Retórica e, evidentemente, na Lingüística.

            Várias pesquisas lingüísticas têm mostrado que desde a década de 60, muito já se tem refletido sobre a questão dos gêneros, mas ainda há muitas controvérsias nesse campo, razão pela qual poucos autores conseguem apresentar uma definição mais precisa em torno do assunto em discussão.

            Talvez esse problema seja devido ao fato de muitos autores se preocuparem excessivamente com os aspectos estritamente lingüísticos e estruturais dos gêneros, em detrimento de seus aspectos pragmáticos e sócio-culturais, como é o caso, por exemplo, de uma carta pessoal que, para muitos usuários da língua só será definida como tal, se apresentar local, data, saudação, fechamento, despedida em seus devidos espaços. Quando na verdade, a ausência de um desses elementos não descaracteriza o gênero.

            Nas palavras de Marcuschi (2002: 21):

 

Os gêneros textuais não se caracterizam nem se definem por aspectos formais, sejam eles estruturais ou lingüísticos e sim por aspectos sócio-comunicativos e funcionais, o que não significa dizer que a forma deverá ser desprezada, pois em muitos casos são as formas que determinam o gênero e em tantos outros, serão as funções.

 

De forma interessante, ele lembra que, quando dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma lingüística, e sim, uma forma de organizar, nitidamente, objetivos específicos em situações sociais particulares.

            Os gêneros situam e integram-se funcionalmente nas culturas em que se desenvolvem. Caracterizam-se muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do que por suas peculiaridades lingüísticas e estruturais (Marcuschi, 2002).

            Essa reflexão acerca dos gêneros textuais nos faz perceber a importância de se compreendê-los de forma mais ampla, como um meio de lidar com a língua de forma mais autêntica e produtiva. Assim sendo, torna-se evidente que a escrita de uma carta, feita na escola, para um destinatário real (diretor da escola, colega de classe ou para um amigo) difere bastante daquela feita como mero enfeite, ou passatempo, ignorando de tal forma a funcionalidade primeira do gênero textual, que consiste na correspondência interativa ou na construção de um espaço comunicativo. Dito isto, passaremos a discutir com maior precisão o gênero Carta Pessoal.

 

 

A CARTA PESSOAL EM ANÁLISE

 

            A carta é um tipo de gênero que utilizamos quando queremos nos comunicar com amigos e familiares, dando notícias, tratando de interesses comuns, de forma, talvez, mais longa e detalhada. Nas cartas, geralmente predominam decisões e exposições. Hoje, porém, as pessoas, na maioria das vezes, se comunicam mais através de telefonemas ou de novos gêneros como o e-mail, bate-papo, dentre outros.

            O gênero carta geralmente trata de assuntos particulares, empregando uma linguagem formal, ou informal, culta ou popular dependendo das pessoas que se correspondem. A carta pessoal apresenta uma estrutura que normalmente se compõe de local e data, vocativo, texto e assinatura.

            Para uma melhor compreensão do gênero em discussão, faremos uso de algumas idéias discutidas por Silva (2003), em sua tese de doutorado, na qual ela fundamenta teórica e metodologicamente a seguinte premissa: a carta pessoal é uma produção de linguagem, socialmente situada, que engendra uma forma de interação particular. Para atingir seu propósito, a autora faz uma incursão pela situação comunicativa dos textos exemplares do gênero em exame. Ela mostra que as atividades discursivas são somente uma forma de interação em virtude de relações interpessoais construídas pelos indivíduos nos espaços sociais em que eles interagem, social, cultural, histórica e politicamente.

            Sobre a questão dos elementos da interação comunicativa, aspecto fundamental para o gênero em discussão, ela destaca a relação social entre participantes, o status de participação no evento, o relacionamento interpessoal (profissional, pessoal), a extensão e a natureza de conhecimentos partilhados (de mundo, específico, gêneros, normas comunicativas, etc).

            Para Silva (2002), do ponto de vista do plano formal, as cartas pessoais possuem como estrutura básica o seguinte modelo: abertura do evento, corpo da carta, encerramento. As etapas de abertura e de encerramento do evento são compostas de funções discursivas prototípicas altamente recorrentes que expressam de forma clara a natureza do inter-relacionamento dos interlocutores, a finalidade que cumpre a interação em curso e, sobretudo, o caráter dialógico deste gênero (alternando papéis comunicativos).

            Já a etapa que compreende o corpo da carta ou da interação não apresenta marcas estereotipadas em termos discursivos e interativos que se realizem o seu início e o seu fim.

            A rigor, como observa Silva (2002), as etapas de abertura e de encerramento que emolduram a interação acabam cumprindo o papel de indicar o momento quando se inicia e finda o corpo da carta.

            O interessante nessa parte das cartas é que o escrevente vai produzindo seu texto baseado numa lógica pragmática (interativa e enunciativa). Pelo diálogo escrito, o produtor procura não só se fazer presente, como também, tornar presente o seu interlocutor. No processo interlocutivo, o escrevente seleciona tópicos discursivos e o modo de verbalizá-lo a fim de constituir a interlocução.

            Do ponto de vista funcional, as etapas e as seqüências discursivas constitutivas da estrutura composicional da carta podem ser descritas, segundo Silva, da seguinte forma:

 

 

  1. Cabeçalho

  2. Exórdio

a)      saudação e vocativo

b)      solicitude e acusação do recebimento da carta

  1. Corpo da carta

  2. Encerramento

a)      pré-encerramento despedida e assinatura

b)      despedida

c)      assinatura

 

 

1.Cabeçalho é o fator contextualizador do evento comunicativo.

Exemplos:

 

Apodí, 06 de maio de 1953.

Natal, 29.03.93.

Encanto (RN) 09 de Junho

São Paulo

2003

 

 

 

2.Exórdio:

 

a) saudação e vocativo: são seqüências discursivas que abrigam rotinas comunicativas que se caracterizam como verdadeiras estratégias interativas; introduzem atividades de interlocução, visam expressar uma atitude de polidez do remetente para o destinatário.

 

 

Saudades de minha querida Benedita

Sinto-me indefinidamente feliz no momento em que te envio estas poucas linhas almejando-te turbilhões de felicidades ao mesmo tempo para cumprir o sagrado dever de saber tuas notícias.                                                                                                 (Carta 2)                                                                                   

 

 

Oi Bá!  tudo bem?

(Carta 6)

 

 

Olá linda! Saudades

(Carta 13)

 

 

b) Solicitude e a acusação do recebimento da carta: espaços discursivos em que são expressos os votos de saúde e paz, os sentimento de saudade, as desculpas pela demora da correspondência, a indicação do recebimento e, muitas vezes, a explicação final da carta enviada. Observa-se aí uma função de natureza pragmática e enunciativa.

 

 

Saudade mil de minha querida Benedita, anjo divinal de meus sonhos

Emocionado de jubilo, venho rabiscar estas linhas mensageiras de minhas notícias e também para demonstra-te os deveres que a gratidão me impõem para contigo. Esse silêncio que se acha entre nós não é motivo de esquecimento, sim as ocupações que me prendem quotidianamente...                                                                                       (Carta 1)

 

 

Oi Bá!

Eu estava louca para saber notícias suas, mas me agüentei e esperei você dar notícias primeiro. Sempre me lembrava de ligar para você, mas dentro de uma coisa e outra acabava esquecendo.

Você demorou pra escrever hem!?!                                                                        

 (Carta 6)

 

 

3. Corpo da carta: Essa etapa de interação define-se como o momento em que o escrevente traz para os interlocutores os mais variados temas, que reportam a cenas do seu cotidiano. Observa-se que nesse momento da interação, o escrevente tende a falar de si mesmo e ou daqueles com quem convive.

            Por meio de perguntas e recursos lingüísticos, o destinatário vai sendo envolvido no que está sendo enunciado, instigado a participar da interação. Isto justifica a diversidade de tópicos apresentado em uma mesma carta.

   

 Aqui estamos todos ansiosos para saber notícias de vocês, pois desde que Ba viajou que não recebemos mais carta de vocês, mamãe pede que roubem um tempinho para escrever para casa, pois ela disse que pediu a Bá que quando chegasse aí escrevesse dizendo como tinha sido a viagem, porque ela ficou um pouco preocupada em saber que Cristiano tinha deixado ela no hospital Santa Clara e o mesmo fica distante da casa de vocês. Mas eu disse à mamãe que Ba já sabe pegar ônibus em qualquer lugar aí, não é isso?

     Estou enviando 4.000,00 para você comprar uma roupinha para Helber, acredito que não dá para comprar feita, então compre o tecido e mande que eu mando fazer aqui.

 

     E a greve ainda continua? A escola de Tavares ainda está em greve? E o curso de especialização que você faz, como está? E Chiquinho não sentiu mais crise? Deus queira que não. E Graça mais Zélia, Bia e Ba estão boas?

     E o mais tudo em paz.

     Desejamos tudo de bom a vocês.No momento só.

     Abração de sua mana Francisca                                                                                      (Carta 5)

 

   

 Titia, como vai o Kincas? Tenho certeza que ele está cuidando bem da senhora, tem que está porque confiei a ele a sua guarda. Tia eu acho que a senhora está gostando muito daí, acho que já encontrou muitos amigos e amigas legais e que a senhora não quer mais vir aqui mas por favor eu lê peço venha visitar a gente ao menos uma vez por década.

     Recado do Eugênio:

“ casou tem que ficar em casa, não é aqui que você saia a hora que queria e chegava na hora que dava na telha”.                                                                                                                     (Carta 10)

 

 

 

4. Encerramento do evento

 

a) Pré-encerramento: o escrevente deixa claro para seu interlocutor que o encontro em curso está findando.

 

 

Ba, não demore a me respostar. No momento é só.

Um abração!

Iza.                                                                                                                                        (Carta 5)

 

 

“ Tia, até outra carta a senhora nunca vai sair do meu pensamento”

Um abraço e um beijo bem grande para a senhora.

Tony                                                                                                                                      (Carta 10)

 

 

b)Despedida: é o recurso que formaliza o fecho da carta.

 

 

Mando lembranças para todos.

Estou com muita saudade.

Abraços de Priscilla Raiama                                                            

2003.

Star                                                                                                                                   (Carta 11)

 

 

 

E o mais tudo em paz

Eu e Tavares enviamos abraços a vocês e desejamos tudo de bom.

Helber pede benção e envia beijos.

No momento só.

Abração de sua mana

Francisca                                                       

                                                                (Carta  06)

 

 

c) Assinatura: é a unidade que evidencia a autoria do texto.

 

Abraços do primo

Oliveiros                                                                                                            

 (carta nº 03)

 

 

Por hoje é só.

                                    

                                                                                     (carta nº 09)

 

           

            Através dos exemplos acima citados, podemos observar a plasticidade do gênero carta pessoal, ou melhor, as diversas  formas de se escrever uma carta para um familiar ou amigo.

            De acordo com Marcuschi (2002), não podemos definir um gênero mediante certas propriedades que lhe devam ser necessárias e suficientes. Assim, um gênero pode não ter uma dada propriedade; uma carta pessoal, ainda é uma carta, mesmo que a autora tenha esquecido de assinar o nome no final e só tenha dito no início: querida mamãe. Uma publicidade pode ter o formato de um poema ou de uma lista de produtos de oferta; o que conta é que divulgue os produtos e estimule a compra por parte dos clientes ou usuários.

             É interessante observar que a linguagem, usada nas cartas de antigamente e nas de hoje varia enormemente em função de muitos fatores de natureza social, cultural e lingüística. Como bem diz Carvalho (1998, p.63), citando Victor Hugo:

 

 Uma língua não se fixa nunca. O espírito humano está sempre em marcha, ou melhor, em movimento, e a língua com ele.As coisas são assim. Quando o corpo muda, por que não mudaria o traje? (...) Toda época tem suas idéias próprias, é preciso que ela tenha também palavras próprias para essas idéias. As línguas são como o mar, oscilam continuamente. Que fazer? Isso é fatal. É, pois, inútil querer petrificar a instável fisionomia de nosso idioma sob uma forma dada.

 

            Essas palavras de Victor Hugo deixam transparecer o flutuamento do léxico como uma característica necessária a todas as línguas. Os tempos atuais têm sido caracterizados por uma mudança cada vez mais rápida de ritmo cada vez mais alucinante (cf. Carvalho, 1998, p. 63) As técnicas, a aparelhagem industrial, as relações interpessoais e os costumes têm sofrido mudanças significativas ao longo do tempo.

            A mudança lingüística, sem dúvida, é um fenômeno que corresponde à necessidade dos falantes ou usuários da língua. Para compreendermos esta questão, basta observarmos a diferença que há entre uma carta pessoal e um e-mail ou entre uma carta escrita nos anos 30 e uma outra atualmente, como comprovam os seguintes trechos de abertura e fechamento de cartas.

 

Saudade mil de minha querida Benedita, anjo divinal de meus sonhos

Emocionado de jubilo, venho rabiscar estas linhas mensageiras de minhas notícias e também para demonstra-te os deveres que a gratidão me impõem para contigo. Esse silêncio que se acha entre nós não é motivo de esquecimento, sim as ocupações que me prendem quotidianamente.

                                                                                                                             (Carta 1.Ano:1935)

 

 

 

Prezada e inesquecível Albaniza para você o meu sincero adeus.

Vou por meio dessas mal traçadas linhas comunicar-lhe que por motivo justo de não poder  conversar... sinto com o coração transpassado das mais profundas saudades e penso que ...o meu coração...nos leva a alguma conferência qualquer.            

                              (Carta 3. Ano 1953)

 

 

Kiara Raissa

Amei a carta.

Eu também estou com muita saudade de vocês.                                                

(Carta 15.Ano:2003)

 

 

Olá, linda!

Desculpe a demora, mas não esqueci a tamanha surpresa, você me escrever. Confesso que adorei. Você falou tanto babado do meu Encanto que adorei. Afinal é a nossa terra natal. Só posso sentir saudades de quem vai está lá esse ano.

                                                             ( Carta 16. Ano:2003)

 

 

            Os trechos das cartas 1 e 15 mostram claramente a mudança lingüística ou, mais precisamente, a variedade lexical  ocorrida no decorrer dos tempos. Certamente expressões como anjo divinal de meus sonhos, emocionado de jubilo e linhas mensageiras de minhas notícias, escritas há 68 anos por um rapaz que envia uma carta a sua namorada, não são usadas nas cartas dos jovens de hoje, assim como, também não se usam mais trechos da seguinte forma: Prezada e inesquecível Albaniza para você o meu sincero adeus (saudação de uma carta escrita em 1953). Esses entornos lingüísticos, bem como expressões de exagero ou hipérbole, foram substituídos por uma linguagem mais prática e enxuta que, ao nosso ver, corresponde à necessidade de uso da língua na modernidade. Dizer apenas Ba, tudo bem? ou simplesmente “Raissa”,  na parte destinada à saudação de uma carta é, certamente, muito mais prático.

            Para Marcuschi (2002), a tecnologia favorece o surgimento de formas inovadoras, mas não absolutamente novas, como é o caso do e-mail que gera mensagens eletrônicas que têm, nas cartas (pessoais, comerciais) e nos bilhetes, os seus antecessores. A linguagem dos novos gêneros torna-se, segundo o autor, cada vez mais plástica, assemelhando-se a uma coreografia.

            Ao analisar seqüências tipológicas no gênero carta pessoal, Marcuschi mostra que os gêneros são uma espécie de armadura comunicativa geral, preenchidos por seqüências tipológicas de base, que podem ser bastante heterogêneas, mas relacionadas entre si.

            Na análise das cartas percebemos uma série de fatores curiosos, como por exemplo, cartas sem data, saudação no corpo da carta, vários tópicos discursivos em um mesmo parágrafo; gênero dentro de outro gênero, no caso um recado assinado por outra pessoa que não é o remetente da carta; exagero de adjetivos e hipérbole nas cartas antigas; brevidade e uso de adesivos e abreviaturas (ex; vc; q/) nas cartas modernas. Percebemos ainda que o grau de intimidade e de espontaneidade é uma marca dos dois tipos de carta: antigas ou atuais.

            Entretanto, como não será possível analisar todos os aspectos acima mencionados, nem tampouco, as várias cartas analisadas, consideramos mais viável analisarmos uma carta em sua íntegra, destacando especialmente, a questão pragmática do corpo da carta.

 

 

     

Tia Marizete como vai a senhora. Já que a senhora casou tem que ser chamada de senhora. Aqui todo mundo está morrendo de saudades, eu Gizelle, mãe, pai, que por sinal vai mandar um recado no final desta carta.

      Titia, como vai o Kincas? Tenho certeza que ele está cuidando bem da senhora, tem que estar porque confiei a ele sua guarda. Tia eu acho que a senhora estar gostando muito daí, acho que já encontrou muitos amigos e amigas muito legais e que a senhora não quer mais vir aqui mas por favor eu lhe peço venha visitar a gente ao menos uma vez por década.

      Tia, eu queria dizer a você, ou melhor, a senhora que ganhei de meu pai a tão sonhada moto, até que enfim ele comprou no começo deste ano não sei o que deu nele para ficar tão bom pra mim. Estou gostando muito da minha moto, o ano dela é 90. Mais pai quer trocar por uma 91 assim que chegarem nas lojas.  Tia, passei para a oitava série. Estava com medo de ser reprovado no IEC. Pedi minha transferência e não sei se vou estudar em Nova Floresta ou no colégio da Rádio, em Picuí.

      Recado do Eugênio:

“ Casou tem que ficar em casa, não é aqui que você saia a hora que queria e chegava na hora que dava na telha”

                                                     Assina

                                                                     Eugênio

 

Tia, até outra carta. A senhora nunca vai sair do meu pensamento.

Dê um abraço no Kincas para mim.

Um abraço e um beijo bem grande para a senhora.

Tony

Não esqueça de mim.

 

            O texto da carta acima, ou mais precisamente, o corpo desta, nos faz perceber os espaços de negociação criados pelo escrevente ou produtor que, mediante informações contextuais, vê o seu destinatário como co-enunciador que se afigura sincero, confidente e conhecedor de sua vida.

            Quando o produtor diz “... tenho certeza que ele está cuidando bem da senhora porque confiei a ele sua guarda”, por exemplo, podemos observar que ocorre uma interação, a qual é fruto da confiança no destinatário. Na carta, de um modo geral e, sobretudo, nesse enquadre interativo, os segredos são desvelados.

            Como bem diz Silva (2002), no escopo da interlocução estão as ações discursivas: confidenciar, aconselhar, lamentar, solicitar, fofocar, segredar. A autora, a partir da análise de diversas cartas, também observa que no corpo da carta geralmente há um espaço singularmente marcado em que confluem várias informações com características portadoras de propriedades sociais e subjetivas dos participantes.

            Concordamos plenamente com a autora, pois como pudemos observar, a partir da leitura da carta acima, são várias as estratégias interativas usadas por Tony para desenvolver o seu propósito discursivo e estabelecer a interlocução. Após a saudação, ele demonstra uma preocupação em relação à segurança da tia e, ao mesmo tempo, uma confiança no esposo dela. Depois, o produtor faz um pedido para que a tia venha vê-los pelo menos uma vez por década. Além disso, ele conta várias novidades: a compra da moto, a surpresa em relação ao comportamento do pai, a aprovação na 8ª série, o pedido de transferência do colégio e, o mais curioso, é a presença de um recado dentro da carta assinado por Eugênio, pai do escrevente, o que comprova que no gênero carta pessoal, além de diversas seqüências tipológicas presentes (narrativa, expositiva, argumentativa), pode conter um gênero dentro de outro gênero.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            As observações feitas nos levam a crer que os gêneros não apresentam formas lingüísticas estáticas e rígidas, mas maleáveis ou “relativamente estáveis”, conforme defende Bakhtin em artigo intitulado Os gêneros do discurso.

            Para Bakhtin (2000: 279), todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua e esta se efetua em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou de outra esfera da atividade humana. Nas palavras do autor, a riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa.

            Com efeito, as grandes transformações tecnológicas, industriais, e o próprio modo de viver das pessoas evoluíram, de forma que os gêneros se expandiram ganhando um novo espaço.

            Acreditamos que isso tenha ficado claro em nosso estudo. Com efeito, a linguagem, e mais precisamente, o léxico acompanharam as mudanças ocorridas no interior dos estudos lingüísticos e da própria sociedade.     Argumentando em favor desta questão, veja-se o seguinte trecho de uma carta escrita em 2003, na qual a escrevente diz: quero saber os babados do Encanto, Encanto é sua terra natal. A expressão babado, neste caso, significa fofoca, a qual  é bastante utilizada atualmente, na linguagem popular de diversos falantes, sobretudo, na dos jovens no interior do Nordeste e, certamente, não fazia parte do vocabulário de uma carta escrita nos anos 50. Em tal época, priorizava-se, como já foi dito, os entornos lingüísticos, como demonstra a seguinte passagem. “... com o coração transpassado das mais profundas saudades penso que o meu coração... nos leva a alguma conferência qualquer”.  O termo conferência, no contexto desta carta escrita em 1953 significa diálogo, conversa. Além dos exemplos citados, também podemos perceber diferenças lexicais marcantes nos trechos Você quer realizar o sacramento do matrimônio comigo? (carta escrita em 1953) e “Raissa ... eu não gostei da história em que você fala da possibilidade pra mim ficar com esses trastes, isso é impossível, prefiro ficar encalhada (Carta escrita em 2003, por uma adolescente)”

            Nesses últimos trechos podemos comparar a diferença existente entre o significado das expressões sacramento do matrimônio nos anos 50 e ficar, nos dias de hoje, podendo talvez até confrontar a consistência e a durabilidade dos relacionamentos amorosos naquela época e a efemeridade e “vulgaridade” dos relacionamentos atuais.

            Por fim, constatamos que, em função da importância dos gêneros no âmbito dos estudos da linguagem, é crucial que o processo de ensino-aprendizagem da língua seja marcado por um trabalho de análise e produção de textos pertencentes a diversos gêneros, formais e informais, em todos os contextos e situações da vida cotidiana. È essa a idéia básica que se encontra nos PCN. È fundamental que o aluno, em sala de aula, tenha acesso aos mais variados tipos de gênero: carta, notícia jornalística, romance, bilhete, cardápio, receita culinária, outdoor, aviso, resumo, etc. E que na concepção desses gêneros predominem a ação prática, sócio-histórica e funcional de cada texto lido, discutido ou produzido em uma situação real de comunicação.

            No caso específico da carta, se faz necessário que se priorize não apenas o seu aspecto formal e estrutural, mas o seu aspecto enunciativo e pragmático. Só assim, ao nosso ver, o trabalho com a escrita poderá derrubar as barreiras que foram criadas ao longo do tempo entre a linguagem do aluno na escola e na sua vida cotidiana. Acreditamos que é no prazer de se produzir uma carta, um aviso ou um convite que o aprendiz passa a compreender a importância da natureza dialógica e interacional da linguagem, no convívio social do seu dia a dia.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CARVALHO, Nelly. Neologismos na imprensa. In: OLIVEIRA, Ana M. e ISQUERDO, Aparecida. As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia. Campo Grande: UFMS, 1998.

MARCUSCHI, Luis. A. Gêneros textuais: o que são e como se constituem. UFPE - Recife, 2000.

_____. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In DIONÍSIO, Ângela P. e BEZERRA, Maria Auxiliadora. Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

SILVA, Jane Quintiliano. Um estudo sobre o gênero carta pessoal: das práticas comunicativas aos indícios de interatividade na escrita dos textos. Belo Horizonte: UFMG, 2002.