INTRODUÇÃO

 

A publicidade vem se valendo de recursos que merecem ser conhecidos e investigados. Entre esses recursos, temos a polifonia. Este estudo, que ainda se encontra em andamento, tem o propósito de mostrar a polifonia na organização do texto publicitário vista em sua função eminentemente interativa, povoada de diversas vozes que representam convicções, pontos de vista diferentes ou semelhantes acerca do mundo.

O ponto de partida desta nossa pesquisa é a concepção de polifonia que teve sua origem na obra de Bakhtin (1988 - original russo de 1929) e foi adaptada à Lingüística por Ducrot (1987), com o objetivo de pôr em descrença a visão da unicidade do sujeito, quando afirma que os enunciados e, até mesmo as palavras, são também perpassados por mais de uma voz. Pretendemos, nesse trabalho, apresentar os recursos polifônicos utilizados e formalizados, lingüisticamente, na elaboração de textos publicitários, e como esses recursos agem a serviço do anúncio; para isso, recorremos a Kock (1998) quando faz um estudo didático dos recursos polifônicos presentes em diferentes textos.

Nosso corpus é formado por chamadas de peças publicitárias impressas em revistas que utilizam recursos polifônicos de forma explícita e implícita, recursos estes cada vez mais presentes no cotidiano de textos da sociedade letrada atual.

Na análise, conheceremos alguns dos recursos polifônicos utilizados e formalizados, lingüisticamente, na elaboração das chamadas de textos publicitários e como esses recursos agem a serviço do anúncio, participando da construção das intenções nesse gênero textual.

Desta forma estaremos interagindo com esses textos na qualidade de leitor ativo, bem como salientando a importância dos recursos polifônicos na organização do sentido desses textos.

 

2. A LINGUAGEM PUBLICITÁRIA: NOSSO OBJETO DE ESTUDO

 

Sabemos que a linguagem publicitária é essencialmente persuasiva, por ter como finalidade maior vender produtos ou serviços. Para tanto, há a articulação de recursos visuais, verbais, na publicidade impressa, constituindo uma rede de significações e produzindo, na sua recepção, um caráter consumista ou ideológico. Desta forma, podemos dizer que a propaganda provoca uma reação, no caso a compra de um produto, de um serviço, de uma idéia.

A publicidade funciona como discurso mediador entre o produto ou serviço e o consumidor e tem como função principal: construir a imagem do produto e da marca por meio de uma mensagem atraente e recordável.

Porém sabemos que a publicidade é mais do que um mecanismo de venda, é um reflexo de momentos da sociedade, ao espelhar valores morais, éticos, sócio-culturais, o que nos leva a crê na existência de uma superposição de várias vozes, independentes ou subsumidas pela voz do narrador, caracterizando, assim, a presença da polifonia que pode gerar, provocar discussões.

 

3. A POLOFONIA NO DOMÍNIO LITERÁRIO E LINGÜÍSTICO

 

A concepção de polifonia teve sua origem na obra de Bakhtin voltada, sobretudo, para a literatura. Para Bakhtin (1981, p. 6), há textos narrativos literários que se caracterizam, por neles existirem várias vozes.

Porém, o ponto de partida dessa concepção vem da definição da linguagem dada por Bahktin em sua obra Marxismo e filosofia da linguagem (obra publicada pela primeira vez em 1929), quando este diz que toda palavra comporta duas faces - procede de alguém e se dirige a alguém.  A palavra constitui, assim, o produto dessa interação entre o locutor e seu ouvinte, em um processo de interação verbal.

A polifonia postulada por Bakhtin pode ser de vozes conciliadas ou em luta. Ao analisar os romances de Dostoiévski (1981, p. 221), o referido teórico constatou a presença de várias vozes com pontos de vista diferentes acerca do mundo, sobretudo de vozes em luta e totalmente divididas.

Nos anos de 1980, o conceito de Polifonia foi adaptado à Lingüística, por Ducrot, com o objetivo de pôr em descrença a visão da Unicidade do Sujeito, ou seja, de que cada enunciado possui um único autor. Em suas pesquisas, Ducrot (1987) aplica a noção de polifonia a enunciados e até mesmo a palavras, comprovando que esses são também perpassados por mais de uma voz.

Há na sua teoria três atribuições ao sujeito: a primeira psico-fisiológica, ou seja, uma só pessoa produz o ato ilocutório, da fala; a segunda está relacionada à realização dos atos ilocutórios pelos enunciados (ordem, pergunta, pedido, comentário, posicionamento etc) e a terceira a de ser designado em um enunciado pelas marcas de primeira pessoa.

Para Ducrot (1987, p.180), em um enunciado em que haja uma forma qualquer de retomada de um dito, é visível essas atribuições não serem de um único falante. Como no seu exemplo clássico: Ah! Eu sou imbecil; muito bem, você não perde por esperar, em que a responsabilidade do ato ilocutório, no caso a afirmação, no primeiro enunciado (“Eu sou imbecil”) não é do falante, mas, sim, de um interlocutor que denominou o falante assim.

Desenvolvendo a sua teoria, Ducrot distingue entre estes sujeitos no mínimo dois tipos de personagens denominados por ele de: enunciadores e locutor.

O locutor é “um ser que é (...) apresentado como responsável pelo enunciado (...) é a ele que se refere o pronome eu e as outras marcas da primeira pessoa” (Ducrot, 1987, p.182). Vale ressaltar que há enunciados que apresentam duas marcas de primeira pessoa que se referem a locutores diferentes como em: João me diz: eu virei (Ducrot, 1987, p.185).

E o enunciador? Para Ducrot (op.cit., p.192), enunciadores - no plural – são seres que se expressam através da enunciação, sem que para tanto lhe sejam atribuídas palavras precisas; se eles “falam”, é somente no sentido em que a enunciação é vista como expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não, no sentido material do termo, suas palavras”.

Esse par enunciador/locutor assemelha-se ao par personagem/autor bahktiniano. Constatamos isso quando Ducrot (op.cit., p.193) diz que o autor põe personagens em cena que exercem ações lingüísticas ou extralingüísticas não assumidas diretamente pelo autor, o que se assemelha à ação do locutor que dá existência,  por meio do enunciado, a enunciadores de quem ele organiza os pontos de vista, aderindo a estes ou não.

Como indício da presença dessa multiplicidade de vozes no anúncio, podemos mostrar, como exemplo, a peça publicitária de uma campanha contra a pirataria de software. O anúncio é constituído por um cartaz afixado numa parede, só que este cartaz afixado na parede está impresso em uma página de revista e contém a seguinte chamada:

 

Vacine sua empresa até 16 de novembro para depois não ter de tomar vacina contra raiva. Campanha de vacinação contra a pirataria de software.

 

Há, neste anúncio (Anexo 1), um ponto de vista veiculado em campanhas de vacinação: o combate a um mal, a uma doença que assola o homem ou outro ser no seu aspecto físico. No caso deste anúncio a campanha apresenta uma formalização lingüística diferente. O mal não é uma doença, mas uma ação que deve ser censurada: a “pirataria de software” que ataca as empresas. Mal a ser combatido tal qual uma doença, um vírus; por isso, a vacina e a campanha.

Para a construção do sentido desse anúncio, seus produtores recorreram a vozes de origem diversas, tais como: da medicina, na forma lingüística do verbo no imperativo, em: “Vacine....”; de frase de alerta como essa de campanhas de vacinação de animais domésticos: “ ... para depois não ter de tomar vacina contra  raiva”,  e da informática, com a expressão “pirataria de software” que nos leva a fazer outra leitura e visualizar outras intenções.  Nesse caso, como em tantos outros textos publicitários, não foi possível diferenciar com precisão o locutor do enunciado, porém, sabemos que sempre há um locutor para todo e qualquer tipo de enunciado. E, por ser uma campanha de alerta instrucional supõe-se que o locutor seja o responsável por esta campanha.

O sentido desse enunciado contra a pirataria de software surge, justamente, do agrupamento desses diferentes enunciadores que não identificados com precisão, mas que apresentam estatutos sócio-lingüísticos diferentes. Como diz Ducrot (1987) o sentido presente no enunciado não é mais que o resultado das diferentes vozes que ali aparecem e que contribuem para formalizar lingüisticamente o sentido.

No caso dos anúncios publicitários, o locutor, o responsável pela enunciação, alguém a quem se deve imputar a responsabilidade do enunciado o “eu”, não é marcado. Sendo, portanto, um autor fictício (ou vários) a quem o enunciado atribui a responsabilidade de sua comunicação sem ser propriamente um ser do discurso.

Desta forma, na publicidade - como no exemplo dado por Ducrot de um enunciado (carta) de circulação administrativa - não se sabe quem é o autor efetivo, uma vez que há: uma equipe nas agências que trabalha em função do anúncio, utilizando-se de todos os argumentos para levar o interlocutor à conclusão pretendida pelo dono do produto e, ainda, uma autoridade (ator, atriz, especialista da área etc., que comanda a fala do anúncio). É sobre esse leque de vozes presente nas chamadas das peças publicidade que vamos nos debruçar.

 

4. ANÁLISE DA PRESENÇA DA POLIFONIA NAS CHAMADAS DE PEÇAS PUBLICITÁRIAS IMPRESSAS

 

Ducrot postula a existência de dois tipos de polifonia no enunciado conforme a presença de locutores e enunciadores:

 

a)      Quando se tem mais de um locutor (polifonia de locutores):

Esse tipo de polifonia foi denominado de intertextualidade explicita, por Koch (1998, p.50-1) e corresponde a discursos relatados, citações, referências, argumentações por autoridade etc.

É muito comum a presença deste tipo de polifonia em muitas propagandas como, por exemplo, a do Banco Safra, quando se utiliza da voz de alguém de destaque, no caso de uma autoridade, o Jocob Safra, empreendedor de sucesso no seu campo de atuação:

 

Se escolher navegar

Os mares do sistema bancário,

Construa seu banco

Como construiria seu barco:

Sólido para enfrentar, com segurança,

qualquer tempestade.

                                                 

                                            Jacob Safra

 

e, ainda, para reforçar essa voz, revelando sua importância, se diz que Jacob foi: “eleito o melhor Gestor de Fundos de Investimento de Atacado e o segundo melhor Administrador de Fundos do Brasil”. 

Além deste recurso lingüístico direto, isto é, da própria pessoa depondo sobre o objeto ou pessoa em questão, é comum, nesse tipo de polifonia, expressões com de acordo com..., segundo..., não só... mas também, conforme... etc.

 

b) Quando se tem mais de um enunciador:

 

Segundo Koch (op.cit., p.50-1) esse tipo de polifonia recobre a intertextualidade implícita sendo seu emprego mais ampla, basta que se apresente, no mesmo enunciado, enunciadores que representem perspectivas diferentes, sem necessidade de se servirem de textos efetivamente existentes. Cabe ao interlocutor recuperar essas informações para construir o sentido do texto. É comum na paródia, em certos tipos de paráfrases e na ironia.

Ducrot refere-se a esse último tipo de polifonia – dos enunciadores – como uma “encenação teatral” de enunciadores a quem é atribuída à responsabilidade do ponto de vista expresso no enunciado ou de uma parte dele.

Há na polifonia situações em que o locutor adere e se serve, no seu enunciado, de ponto(s) de vista dos enunciadores; em outras, este se coloca a uma certa distância ou com reserva. Como nos respectivos exemplos das seguintes chamadas de propagandas:

 

A penúltima palavra em celular é digital. A última é motorola

e

A vida de Margarida não é uma novela.

 

Esta última chamada é da propaganda da Hope em campanha contra o câncer.

Na primeira chamada, o locutor concorda, adere ao que já é de praxe: a última palavra é a que vale, ou seja o senso comum é trazido para o discurso, alicerçando o ponto de vista defendido pelo locutor.

Já na segunda, há uma negação, discordância do que é afirmado. Esse enunciado opõe-se a uma opinião: a de que a vida de Margarida é uma novela, já que seu drama é real.

A partir da adesão ou não do locutor aos pontos de vista presentes nos enunciados, Koch (1998) reúne em dois grupos os recursos discursivos e lingüísticos que impõe ao texto o estatuto de polifônico.

No grupo dos que o locutor adere, encontramos a pressuposição, certos tipos de parafraseamento e argumentação por autoridade. E, no outro grupo - os dos recursos em que aparecem pontos de vista com os quais o locutor não concorda – tem-se: a negação, enunciados introduzidos por ao contrário, pelo contrário, aspas de distanciamento, detournement, contrajunção e certos comparativos. Nesta análise abordaremos apenas alguns dos recursos apresentados por Koch (1998, p. 50-1).

Dos recursos enumerados no primeiro grupo, observamos a presença em um anúncio (Anexo 2) do Boticário para uma linha de protetor solar, da adesão por paráfrase na seguinte chamada:

 

Previsão do tempo: muitos anos de pele bonita.

 

Há, nessa chamada, a retomada das palavras iniciais do serviço de meteorologia: Previsão do tempo e, em seguida, com formalização lingüística diferente o anúncio do resultado da previsão: muitos anos de pele bonita (com o uso do protetor, é claro!).

Poderíamos, também, considerar nessa chamada à presença do discurso científico, do argumento por autoridade, uma vez que se encena a voz de um enunciador com a qual o locutor se identifica, se apóia.

Vejamos agora outros casos de argumento por autoridade. Recurso dos mais usados nas chamadas das propagandas analisadas.

Observemos esse tipo de polifonia na propaganda da Círio, segundo o anúncio, a marca de alimentos mais preferida do italianos. Vamos a ela:

 

Para a Círio, atirar tomate em alguém é considerado uma ofensa gravíssima.

Não se faz isso com um tomate.

 

Há, nesse chamada, a inclusão de um discurso ético, moral: não jogar tomates em ninguém; mas, que, neste caso, é trazido para alicerçar o ponto de vista defendido pelo locutor que é de não fazer isso como tomate. Aqui, o alvo da ofensa não é quem recebe o tomate, mas o próprio tomate.

Neste caso, é interessante observar que a adesão do locutor ao ponto de vista do enunciador, no caso o senso comum – jogar tomate em alguém é uma ofensa para esse alguém - não é total, pois o ofendido será o tomate que, por ser um produto de alta qualidade, não merece esse desfeita.

 

Ainda no grupo da adesão por autoridade temos as propagandas que se utilizam vozes da mídia e da ciência para propagar seus produtos, como no caso da Parmalat (Anexo 3) com a seguinte chamada:

 

Parmalat declara guerra aos inimigos do coração

 

No caso, os inimigos são: o colesterol e os triglicérides.

Ao se utilizar pesquisa científica sobre os Ômega 3, a Parmalat , em anúncio de revista, que tem como suporte uma manchete e matéria de jornal, destaca seu leite por contém esses fatores. Esta chamada-manchete nos dá a impressão de que a Parmalat virou notícia de jornal, sendo um remédio preventivo, conta o colesterol e os triglicérides (inimigos do coração). Há, portanto, uma pluralidade de responsáveis pelo que está sendo enunciado que não é assumido de forma direta pelo locutor, mas de forma indireta por meio do ponto de vista apresentado. Introduzindo-se, assim, uma voz sobre a qual se argumenta, cuja responsabilidade é de um outro: do jornal, meio de comunicação de credibilidade, quando trata de notícia e dos médicos que pesquisaram e classificaram esses fatores como amigos do coração.

E, para finalizar, mais duas propagandas com estruturas semelhantes e que apresentam, também, esse tipo de polifonia a do Banco Real .

 

Quem entra na faculdade merece a nossa confiança e o nosso respeito.

 Além do nosso crédito, claro.

 

 Neste caso trata-se de uma premissa polifonicamente posta no discurso: a de que a faculdade é um lugar de pessoas de valor. Idéia estabelecida pela sociedade. O mesmo processo polifônico ocorre nessa outra chamada do Banco do Brasil:

 

Quem faz o Brasil crescer tem o apoio do Brasil.

 

Ou seja, quem trabalha merece crédito do banco do Brasil.

 

CONCLUSÃO

 

Podemos afirma, mesmo sem uma análise exaustiva, que a propaganda é povoada por muitas vozes, sendo, portanto, um bom exemplo de texto que comprova a existência do fenômeno da polifonia (de locutores e de enunciadores). Porém, esse fenômeno nem sempre está visivelmente marcado e suas intenções explícitas. Cabe a nós, leitores ativos, identificar como o locutor formaliza esse fenômeno povoado de intenções e de recursos lingüísticos que permitem uma maior interação, no caso da propaganda numa inocente solicitude, ao ponto de  persuadir o leitor a se tornar consumido.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Traduzido por Paulo Bezerra. Rio de janeiro: ed. Forense-Univeritária, 1981.

________________. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988.

DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Traduzido por Eduardo Guimarães. Campinas, SP: Pontes, 1987.

_______________. Polifonia y argumentation. Universidade Del Valle – Cali, 1988.

KOCH, Ingedore G. V. A interação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 1992.

__________________. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1998.

Revistas Veja. Ed. Abril: Março de 1998 a 2002.

Revistas Época. Ed. Globo: Janeiro a agosto de 2003.

Revistas Você S. A. Ed. Abril. Janeiro a dezembro de 2001.