Sempre que lembradas as cantigas trovadorescas galego-portuguesas, a imagem que se nos apresenta mais recorrente remonta às cantigas de amor e às de amigo. Das primeiras, alude-se à influência provençal e a um conjunto de caracteres que influenciaria toda uma tradição lírica posterior: a noção do serviço amoroso (ou vassalagem amorosa, inspirada no modelo hierárquico feudal), a idealização da figura feminina, a coita amorosa etc.
É, aliás, a coita de amor
o tema principal das cantigas de amor, definida como “o sofrimento amoroso do
poeta por causa do amor não correspondido pela mulher”. (VIEIRA, 1987, p.
15). Segundo ainda Vieira, os principais tópicos desenvolvidos nas cantigas de
amor são: “o elogia da dama (sempre infinitamente superior ao poeta), o
‘serviço amoroso’ do poeta, o desprezo da mulher, a ‘coita’ do amor não
correspondido”. (ibid., p. 15. seq.).
Às outras cantigas, atribui-se um caráter mais original da península. Seriam, as cantigas de amigo, mais “genuinamente” portuguesas. Nelas, manifesta-se uma saudosa voz feminina a lamentar a ausência do amigo, seja para si, seja para uma confidente.
Vieira lembra que, na cantiga de amigo,
“ora
como que se estabelece um diálogo entre a cantiga de amor e a de amigo,
justificando-se então a mulher da sua falta de correspondência ao ‘serviço’
amoroso do amigo; ora é a mulher que se queixa da sua ‘coita’ amorosa,
provocada seja pela incorrespondência do amigo, seja pela separação a que os
obrigam diversos fatores, como a guerra, a proibição materna, os trabalhos do
mar.” (ibid., p. 15 seq.).
Vieira lembra ainda que a cantiga de amigo celebra, também, o amor correspondido.
Já o estudo das cantigas de escárnio e mal dizer galego-portuguesas, contraface realista do lirismo medieval lusitano, tem sido relegado, via de regra, a segundo plano, sobretudo em vista de questões moralizantes, que pouco deveriam interessar ao estudo de textos literários. Esquecem, alguns estudiosos, que muitos dos trovadores que compunham as edificantes cantigas de amor ou as saudosistas cantigas de amigo, são os mesmos que compunham boa parte das cantigas de escárnio e mal dizer.
Deste grupo de cantigas, há até bem pouco se lhes destacavam como grande e quase único mérito a documentação histórica e de (maus) costumes da sociedade portuguesa dos séculos XII ao XIV. É certo que a crueza de algumas expressões e imagens mais picantes, e por vezes consideradas obscenas, impediriam um estudo mais aprofundado das cantigas, relegadas ao plano de gênero menor se comparado ao das cantigas líricas, até que Rodrigues Lapa, como já havia feito antes Carolina Michaellis, editou as cantigas a partir de seleção feita nos cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional.
1. RODRIGUES LAPA E A EDIÇÃO DO ESCÁRNIO GALEGO-PORTUGUÊS
Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer, de Rodrigues Lapa, além de estudo introdutório e exegese de um sem-número de cantigas lhes confere o devido valor estético, lhes renova a classificação — a tradicional é quase sempre genérica e redutora — e mostra, ainda, a necessidade premente de novos estudos acerca do escárnio galego-português. Em Lapa, comprova-se que boa parte das cantigas satíricas tem como autores, como dissemos há pouco, os mesmos trovadores que compunham as cantigas líricas. Em leitura mais atenta de Lapa, comprovar-se-á que não há mais espaço para dissociar o escárnio galego-português do conjunto das cantigas trovadorescas galego-portuguesas. Hierarquizá-las, tomando as cantigas líricas como mais bem acabadas e as satíricas como gênero menor, é incorrer em grave erro. Tomá-las em conjunto, ao contrário, é possibilitar novas leituras, ampliar outras, e compreender melhor o universo literário das cantigas.
Interessam-nos estes conceitos à medida que se inserem numa visão ampla da poética trovadoresca, princípio fundamental para uma abordagem do tema.
Lembramos, ainda a título introdutório, a classificação corrente, por demais genérica, e que reduz as cantigas a dois tipos: cantares de escárnio e de mal dizer. As cantigas de escárnio
“son
aquelas que os trobadores fazen, querendo dizer mal dalguen, en dizerlho per
palavras encubertas que ajan dous entendimentos, para lhe-lo non entenderem
ligeiramente; e estas palavras chaman os clérigos equivocatio” (LAPA, 1988,
p. 7).
As cantigas de mal dizer “son aquelas que fazen os trobadores descubertamente, e elas encerram palavras que queren dizer mal e non averan outro entendimento senon aquel que queren dizer chããmente”. (ibid., p. 7 seq.). Rodrigues Lapa, propõe nova divisão (ou subdivisão) temática, e sugere que novos motivos poderão ser acrescidos aos que já enumerou, tamanha a riqueza do espólio satírico galego-português.
Lapa enumera seis motivos principais, ainda reconhecendo que o faz por “motivos de simplificação escolar” (LAPA, 1998, p. 8). São eles:
“1)
Deserção dos cavaleiros da Guerra de Granada; 2) Traição dos alcaides de D.
Sancho II; 3) Chacotas a Maria Balteira; 4) O escândalo das amas e tecedeiras;
5) As impertinências do jogral Lourenço; 6) A decadência dos infanções”. (ibid.,
p. 8 seq.)
Das cantigas satíricas medievais galego-portuguesas tudo (ou quase tudo) o que se diz sobre as melodias não passa de especulação. Segundo Graça Videira Lopes, isto constitui “um dos mais sérios problemas que se colocam ao estudo da sátira medieval desta escola trovadoresca”. (1998, p. 29).
Mas Lopes lembra que há vestígios, nos cancioneiros, deste jogo com a música nas cantigas de seguir, cantigas feitas a partir de uma outra. Segundo ainda a mesma autora,
“as duas cantigas explicitamente referidas como ‘de seguir’, ambas do escudeiro João de Gaia, são de facto cantigas satíricas que buscam um efeito suplementar na utilização da música e/ou refrão de, respectivamente, uma cantiga de vilão e uma ‘bailada’ na crítica a um alfaiate feito cavaleiro e a um bispo amigo do vinho”. (ibid., p. 29).
Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani distinguem três tipos de cantigas de seguir:
“o
que se diz requerer menos sabedoria consiste tão-só na apropriação da sua música,
com a ressalva de que os novos versos da estrofe devem ser métrica e
acentualmente equivalentes aos do modelo; numa segunda modalidade, mais
exigente, o novo texto deve também reproduzir as rimas da cantiga imitada; a
terceira modalidade acrescenta à primeira a exigência de que o novo texto deve
(A) reproduzir o sentido de alguns versos da cantiga imitada, ou então (B)
reproduzir a letra ou seu refrão dando-lhe, pelo novo enquadramento estrófico,
outro sentido; a variedade (B), considerada mais difícil, é a mais
apreciada.” (1993, p. 142).
As “letras” das cantigas líricas, aliás, seguem indubitavelmente este padrão repetitivo — sobretudo as cantigas de amigo —, o que poderia levar o leitor, às vezes, a enxergar um único e grande autor coletivo, tamanhas as semelhanças entre cantigas de autores diversos. Um dos princípios formuladores deste tipo de poesia é o paralelismo, que consiste, basicamente,
“na repetição, com cadências fixas, de segmentos textuais e/ou de elementos temáticos, dispostos alternando elementos invariantes (iterados sem modificações) e elementos variantes (submetidos a variações mínimas, de forma e/ou de significado.” (ibid., p. 509).
Nas cantigas satíricas, todo este jogo paralelístico se realiza com menor intensidade, tamanha a liberdade estilística e temática em relação às cantigas de amor e as de amigo. Contudo, não podemos deixar de lembrar todos estes fatos, que se inserem naquela visão ampla da poética trovadoresca a que já aludimos.
À luz de tudo isto, investigaremos duas cantigas que tomam as cantigas de amor como modelo e as subverte, uma pondo a ridículo a coita de amor, transmutada em “coita de comer”, outra, quebrando todas as regras de cortesia, apresentando, segundo Lapa, uma visão de amor mais “natural”, transformando coita de amor em “coito de amor”.
Transcrevemos, abaixo, as duas cantigas, lembrando que os números fora dos parênteses se referem à ordem colocada por Lapa na sua edição (à qual já aludimos) das cantigas.
390 (CBN. 1441; CV 1052)
Moir, eu aqui de gran’ afan
e dizen ca moiro d’ amor,
e averia gran sabor
de comer, se tevesse pan;
e, amigos, direi-vos al:
moir’ eu do que en Portugal
morreu Don Ponço de Baian.
E quantos m’ est’ a mi dit’ an
que
non posso comer d’ amor,
dé-lhis
Deus tan gran sabor
com’ end’ eu ei; e v[e]eran
que á gran coita de comer
quen dinheiros non pod’ aver
de que o compr’, e no lho dan.
Pero Gómez Barroso
155 (CBN. 1519 = CB 392)
Mia senhor, já eu morrerei
en vosso servç, e poren
mi non é com mia morte ben:
por que vos non ficou de mi
filho, por quanto vos servi,
que
mi criássedes poren.
Sempr’ en mia mort’ adevinhei
que avia a morrer por vós,
e a morrer avemos nós;
mais por que non fiz — e m’ end’ é mal —
un filho vosso natural,
que achasse conselh’ en vós?
Filh’ a que leixass’ o que ei
quisera-m’ eu, senhor, fazer,
que fosse voss’, e defender-
lo-íades por meu amor;
ca, pois eu por vós morto for,
que
ben mi podedes fazer?
Gil Pérez Conde
A primeira cantiga, de Pero Gómez Barroso, é a que põe a ridículo a coita de amor. Nela, o trovador se indigna, como vimos, com os que estão a dizer que ele morre de amor, quando o seu problema está, literalmente, “mais embaixo”, no estômago mais precisamente. Ele está, na verdade, a morrer de fome e não de amor.
A cantiga transporta algumas expressões das cantigas d’amor com muita graça e engenho (como, por exemplo, o “gran afan”). É curiosíssima a aproximação que a cantiga faz entre o afã de comer e o afã de amor, aqui confundidos, embora saibamos as verdadeiras razões do “gran afan” do trovador. Confundem-se também a indignação do eu-lírico com os que o cercam com a indignação que por vezes encontramos nas cantigas de amor, lá expressa na coita d’amor, quando muitas vezes o trovador chega a perguntar à sua senhor, entre resignado e magoado: “que mal vos fiz?”. A cantiga de Barroso possui versos octossílabos, rima aguda, oxítona e esquema rímico ABBACCA. No terceiro verso da segunda estrofe, para que o consideremos octossílabo, deveremos considerar o vocábulo “Deus” como dissílabo.
Rodrigues Lapa tenta explicar, na cantiga, a referência a Don Ponço de Baian, supondo que seja aceitável que “D. Ponço de Baião morreu à míngua de comer: não diremos por penúria, mas talvez por doença” (ibid., p. 249), já que se tratava de magnata português da 1ª metade do século XIII.
Já a cantiga de Gil Pérez Conde trata, como coloca Lapa, de uma visão de amor mais “natural”, em que o trovador ignora todas as regras de cortesia e mesura e parece verdadeiramente angustiado com a idéia da própria morte sem que lhe fique um descendente, um herdeiro.
O encadeamento dos versos é notável, sobretudo do terceiro e quarto versos, em que a forma composta verbal aparece dividida, seccionada, talvez como o estado de ânimo do trovador, dividido entre uma visão de amor mais ideal e outra mais real, em que a equação das cantigas d’amor, daquele amor desinteressado, parece se subertida por inteiro com a pergunta final “que ben mi podedes fazer?” ou, noutras palavras, “ que vantagem poderei tirar do seu amor?”.
Lapa reconhece que, na cantiga de Conde, o
“interesse fundamental reside na intenção parodística em face do conteúdo da cantiga d’amor e na menção daquele filho, que devia resultar de suas relações com a senhora, idéia escandalosa e profundamente humana, que não encontraremos em nenhuma das canções trovadorescas” (ibid., p. 112).
A cantiga de Conde tem versos octossílabos, rima oxítona, aguda, e esquema rímico ABBCCB.
Não devemos tomar, nestas paródias, exemplos acabados de grande rebeldia ou afronta à ordem vigente. Mesmo nas cantigas de amor não temos um quê de “inversão” de valores? Não pintam, as cantigas de amor, a possibilidade de um amor extra-conjugal?
As paródias atiravam sua mordacidade e irreverência até mesmo a Deus, duramente criticado ou rebaixado à condição humana (ou humanizada) em algumas delas.
Não devemos esquecer, finalmente, que são, estes textos, como bem nos lembra George Duby, “obras literárias (que) tinham por objetivo divertir; por conseguinte, transportavam a ação para fora do habitual, do cotidiano, do vivido”. (2001, p. 115).
Portanto, leiamos as cantigas com o prazer redobrado de quem redescobre, a cada nova leitura, a extrema habilidade e talento dos trovadores, poetas de ontem e de sempre.
DUBY, Georges. Eva e os padres: damas do século XII. Trad. Maria Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
LANCIANI, GIULIA & TAVANI, Giuseppe. Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa.Trad. José Colaço Barrairus e Artur Guerra Lisboa: Caminho, 1993.
LAPA, M. Rodrigues. Cantigas d’escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medievais galeo-portugueses. Edição crítica comemorativa. Porto: João Sá da Costa, 1998.
LOPES, Graça Videira. A sátira nos cancioneiros medievais galego-portugueses: sátira, zombaria e circunstância no cancioneiro geral de Garcia de Resende. 2 ed. Lisboa: Estampa, 1998.
VIEIRA, Yara Frateschi. Poesia medieval: Literatura portuguesa. São Paulo: Global, 1987. (Coleção literatura in perspectiva).