Apresentando
uma notável diversidade em sua composição populacional, sabe-se que o Maranhão
desconhece a si mesmo. Na relação
do Estado consigo mesmo, é comum prevalecerem vários estereótipos, tanto
regionais, como em relação a grupos étnicos, sociais e culturais.
Lingüisticamente, não poderia ser diferente. Certos grupos sociais do Maranhão possuem peculiaridades lingüísticas que ressaltam a riqueza do inventário lexical do Estado. Para estes grupos sociais a língua cumpre um papel de instrumento de identificação social, pois é por meio dela que conseguem interagir culturalmente com a outra parcela da sociedade. Desta forma, a relação existente entre língua, sociedade e cultura torna-se ainda mais evidente:
Para
Benveniste, a questão da relação entre língua e sociedade se resolve pela
consideração da língua como instrumento de análise da sociedade. Ele afirma
que a língua contém a sociedade e por isto é o interpretante da sociedade.
(ALKIMIN, 2001, p. 27).
A cultura popular do Maranhão é rica e diversificada. Dentre as manifestações mais reconhecidas, destaca-se o Bumba-meu-boi, o mais importante evento folclórico do Estado devido às singularidades que o tornam único. Essas singularidades, presentes nos seus ritos, mitos, autos, lendas, personagens, cantos, danças, indumentárias, adereços e instrumentos, perpetuaram, ao longo de três séculos de existência, um vocabulário peculiar.
O léxico do Bumba-meu-boi traduzirá a história, a tradição, a cultura deste grupo social, apresentando-se como rico manancial para investigações lingüísticas.
Atualmente, os estudos geolingüísticos e dialetológicos têm angariado grande impulso no Brasil. Devido à grande necessidade de descrever a realidade lingüística do país, a elaboração de Atlas lingüísticos regionais tornou-se uma via prioritária para o fornecimento de dados que possam compor o ALiB – Atlas Lingüístico do Brasil.
Dentro deste cenário, destaca-se o Projeto ALiMA – Atlas Lingüístico do Maranhão – um projeto geolinguístico e dialetológico que busca resgatar as variantes lingüísticas que compõem a região maranhense.
A princípio, a equipe do projeto buscou informações sobre o falar maranhense, levando em consideração algumas especificidades, a exemplo: as questões culturais, religiosas, agrícolas e outras. Tais questões são de suma importância para a elaboração de questionários que serão aplicados no decorrer das entrevistas in loco para a consecução do Atlas Lingüístico do Maranhão.
Dentre os enfoques culturais considerados pelo Projeto ALiMA, destaca-se a vertente Bumba-meu-boi, que busca investigar as lexias que fazem parte do falar deste grupo social e que, ao ser incluída nas pesquisas do projeto, contribuirá para um melhor entendimento do falar maranhense. Visto que o Projeto tem por um de seus objetivos fazer um mapeamento lingüístico do Estado, o estudo das lexias do universo do Bumba-meu-boi se constituirá numa ampla fonte de pesquisa para a elaboração de materiais didáticos, o que favorecerá uma melhor contextualização da língua no processo ensino/ aprendizagem nesta região.
No seu estágio atual, a vertente Bumba-meu-boi vem elencando algumas das lexias que recobrem tal sistema lexical e, conseqüentemente, alguns questionários específicos já foram elaborados, encontrando-se em fase de aplicação experimental.
Neste contexto, algumas lexias merecem um pouco mais de atenção, pelo fato de serem relativamente desconhecidas por alguns grupos que não freqüentam regularmente as brincadeiras; além disso, algumas despertam interesse devido à sua motivação semântica.
Portanto, para fins de estudo, foram elencadas, no corpus deste trabalho, as lexias: “Amo” e “Cantador”, que serão analisadas passo a passo. Assim, esse trabalho propõe-se a fazer um estudo destas lexias sob o ponto de vista da Dialetologia e da Geolingüística, com prioridades para as diferenças léxico-semânticas. A partir disso, pretende-se contribuir para uma melhor compreensão do falar maranhense, resgatando a valorização da variedade lingüística dentro da sala de aula.
O
trabalho aborda, primeiramente, a relação léxico, sociedade e cultura, na
qual está fundamentado todo o referencial teórico que o sustenta. Em seguida,
apresenta a contextualização histórica do Bumba-meu-boi, sua genealogia, seus
estilos, seu ritual e sua significação na cultura popular. Logo após, analisa
as lexias selecionadas – ponto central do trabalho -
e tece as considerações finais acerca da pesquisa.
A significação da linguagem desempenhada pelo ser humano é elaborada por seus sentidos ao se relacionar de diferentes maneiras com uma mesma realidade ou com realidades diferentes. Em uma situação de fala, o homem, além de dar nomes e significados a um mundo preexistente, também dá sentidos novos, pois as palavras são flexíveis, são construções culturais com funções de mediar a relação do homem com o mundo.
Nesse processo de interação do homem consigo mesmo, com o seu semelhante e com o mundo físico, social e cultural que o cerca, a língua está configurada como o “reflexo do interrelacionamento entre diferentes realidades lingüísticas e culturais” (ISQUERDO, 2000, p. 66), ou seja, ao mesmo tempo em que a língua é produto da cultura, esta nos chega através da língua, que incorpora as diferentes mudanças sociais e “reflete a história do povo que a utiliza como meio de comunicação.” (ISQUERDO, 2000, p. 66).
A língua nos é mostrada como uma forma de categorizar, organizar e interpretar o mundo. De acordo com Fiorin (2003), a realidade só tem existência para o homem quando é nomeada, ou seja, o léxico é, assim, uma forma de apreender a realidade. “Só percebemos no mundo o que nossa língua nomeia.” (FIORIN, 2003, p. 55). Só conseguimos agrupar os nomes em classes por meio do léxico, o que significa dizer que as palavras criam conceitos e que esses conceitos ordenam a realidade, categorizam o mundo.
O
léxico corresponde ao domínio da língua para se reportar ao universo
referencial, físico e cultural em que se situa o homem. O conjunto de signos
que compõe o léxico confere-lhe um sistema de mundo. Desta forma, a palavra é
uma operação de pensamento, no sentido de que o homem faz das significações
da palavra sua forma de representação, pois cada língua possui em si uma visão
de mundo determinada que se refere ao mundo das coisas que o circundam,
constituindo-se como a dimensão da língua que está em constante evolução.
Com
efeito, é através do léxico, sobretudo, que se realizam a produção, a
reiteração, a transformação e a manifestação dos recortes culturais e da
correspondente ‘visão de mundo’. Uma tensão dialética e um processo de
alimentação e realimentação são sustentadas entre o léxico e os sistemas e
práticas sociais e culturais. (PAIS, 1995, p. 1331).
Em Sapir, cita-se a seguinte reflexão: “O léxico completo de uma língua pode se considerar, na verdade, como o complexo inventário de todas as idéias, interesses e ocupações que açambarcam a atenção da comunidade.” (SAPIR, 1961, p. 45). Desta forma, o léxico de uma língua destina-se a funcionar como um conjunto de símbolos que se referem a dados culturalmente construídos por um grupo social.
A título de diferenciação, cabe salientar que
...o
termo léxico é, então reservado à língua, o termo vocabulário ao discurso.
[...]. O vocabulário de um texto, de um enunciado qualquer de performance
é, desde então, apenas uma amostra do léxico do locutor. (DUBOIS
et al., 2001, p. 364)
Sendo a cultura de um povo correspondente à “soma de saberes acumulados e transmitidos pela humanidade, considerada como totalidade ao longo de sua época” (CUCHE, 1996, p. 21), é por meio de sua cultura própria que cada povo exprime, à sua maneira, um aspecto da realidade, constituindo-se num patrimônio de conquistas artísticas, intelectuais e morais.
Partindo do princípio de que “a cultura é [...] o conjunto do que o homem criou na base das suas faculdades humanas: abrange o mundo humano em contraste com o mundo físico e o mundo biológico.” (CÂMARA, 1972, p. 266), pode-se constatar que a linguagem, utilizada com a finalidade de comunicação entre os membros de uma sociedade, trata-se de um fato cultural. Assim, a língua faz parte da cultura e uma de suas funções é expressá-la, permitindo a comunicação e interação social, o que corresponde à construção de um sujeito ativo que (re)produz o social na medida em que participa ativamente da definição da situação na qual se acha engajado. Nesse caso, o sujeito só existe na interação com o outro e, deste modo, constrói sua identidade.
O intercâmbio cultural na sociedade se processa por meio da língua que, para Câmara (1972), é o resultado dessa cultura e só existe para englobar a cultura, comunicá-la e transmiti-la. A língua, neste caso, é instrumento de interação social, usada para estabelecer relações comunicativas entre os usuários.
Todavia, a lingüística nem sempre se preocupou com os aspectos de natureza social da língua. Foi a partir dos estudos de William Labov (2000) que o campo da sociolingüística foi delimitado, apesar das tentativas de muitos outros estudiosos. Os propósitos de Labov foram descrever a heterogeneidade lingüística e de encontrar um modelo capaz de dar conta da influência dos fatores sociais que atuam na língua.
Nos últimos anos, a sociolingüística tem sido uma área de ampla investigação, com resultados que se refletem desde a descrição das línguas enquanto sistemas, até as decisões políticas e educacionais exigidas pelas questões da variedade lingüística.
Conforme
afirma Tarallo: “em toda comunidade de fala são freqüentes as formas lingüísticas
em variação. [...] e a essas formas de variação, dá-se o nome de
variantes.” (TARALLO, 2001, p. 8). Variantes lingüísticas são, portanto,
diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em uma mesma situação. O estudo de
certos grupos sociais é um fator extremamente importante na identificação
desses grupos. A língua se constitui, desta maneira, num mecanismo de
identidade cultural.
Segundo
Ramos (2002), pode-se, então, concluir que:
A
compreensão da estreita relação que se estabelece entre a tríade léxico/sociedade/cultura
requer que consideremos, por um lado, a língua em suas características
concretas, de uso, no mundo; e, por outro, que observemos como seus usuários se
situam em e se relacionam com a sociedade da qual fazem parte (RAMOS,2002, p.1)
Para
melhor compreender o objeto de estudo deste trabalho, faz-se necessário
comentar, brevemente, algumas questões sobre o Bumba-meu-boi, observando sua
história e seus estilos.
De
acordo com Marques (1999, p. 53) , a primeira referência escrita feita no
Brasil sobre o Bumba-meu-Boi data no jornal
“O Carapuceiro”, de 11 de janeiro de 1840 (Recife), quando o padre
pernambucano Lopes Gama teceu um comentário preconceituoso a respeito da dança,
na qual tinha como figura central o negro.
Naquela época, a brincadeira do Bumba-meu-boi servia para satirizar o clero e outras figuras que representavam o poder, o que deixa ainda mais clara a opressão vivida pelos negros.
A
origem real do Bumba-meu-boi ninguém até hoje conseguiu explicar. Tal origem,
segundo Marques (2003), é pautada em três prováveis versões:
· A versão universal: a presença do boi como elemento mítico em várias culturas, representando humor, virilidade, força, coragem, masculinidade, etc.
· A versão ibérica: a dança do bumba-boi foi influenciada pelas danças espanholas e portuguesas. “[...] vem a influência européia do Bumba-meu-boi, provavelmente do Monólogo do Vaqueiro que o poeta Gil Vicente apresentou em 1502 aos reis de Portugal, ou ainda da famosa Fiesta de La Vaca[1] de São Pablo de Los Montes, na Espanha”. No monólogo de Gil Vicente, o boi apresenta-se como o personagem principal da encenação, divertindo os reis. Havia ainda, nesta mesma época, as corridas de Touro da Festa do Divino Espírito Santo de que, possivelmente, pode ter originado a manifestação no Maranhão.
· A versão brasileira: a festa é associada à relação de poder existente entre senhores e escravos durante o período colonial, possibilitando a crítica por meio da encenação do auto que, a partir do avanço do gado – Ciclo do gado -, expande-se para outras regiões.
Maria do Socorro Araújo ressalta:
A
questão da origem do boi é muito nebulosa, principalmente por que esta
manifestação se realiza em vários estados do país: Amazonas, Pará, Maranhão,
Piauí, Pernambuco, Alagoas, Paraná, Santa Catarina e outros; cada estado com
suas características próprias e com uma coreografia que lhe são peculiares.
(ARAÚJO, 1986, p. 54).
O
que se sabe é que, durante anos, essa brincadeira foi alvo de críticas e
perseguições por parte de alguns órgãos públicos e até da Imprensa, sendo,
muitas vezes, vista como perturbadora da moral, do sossego e dos bons costumes.
Por longos anos, o boi tem resistido, pois seu conteúdo é riquíssimo, representando a maneira de ser, sentir, pensar e agir de um povo que, a cada geração, reelabora tal brincadeira. O enredo, entretanto, permanece o mesmo, apesar da adaptação de novos elementos e novas situações. Isto acontece porque, a cada nova geração, novas alterações são elaboradas sem modificar, contudo, a essência principal do enredo, reproduzindo a realidade diante das condições vividas.
A festa é uma espécie de ópera popular, cujo conteúdo varia entre os inúmeros grupos de Bumba-meu-boi existentes. Mas, basicamente, desenvolve-se em torno da lenda do fazendeiro que tinha um boi muito bonito e querido por todos e que, além disso, sabia dançar.
Na fazenda trabalhavam Pai Chico, também chamado Negro Chico, Catirina, esposa de Chico, os vaqueiros e os índios. Catirina fica grávida e sente desejo de comer a língua do boi. Pai Chico fica desesperado e, com medo de que Catirina possa perder o filho que espera, resolve roubar o boi do seu patrão. O fazendeiro percebe o sumiço do boi e de Pai Chico; assim, manda os vaqueiros procurá-los, mas eles nada encontram. Então, o fazendeiro pede aos índios que o ajudem na procura.
Os índios partem à procura de Pai Chico e o encontram. Junto do empregado ladrão estava o boi, quase morto. Os índios os levam à presença do fazendeiro que, então, interroga Pai Chico. O patrão descobre o motivo do sumiço do boi e aceita perdoar Chico, apenas se o boi for curado e reviver. Os pajés (os doutores) são chamados para curar o boi e, após várias tentativas, o boi revive, levanta e começa a dançar alegremente.
Segundo Maria do Socorro Araújo:
o
boi representa os acontecimentos que ocorrem na vida do povo e toda a dominação,
não só dos brancos, mas de todos aqueles que têm o poder nas mãos. Assim, o
boi se coloca como crítica à realidade encoberta no dia-a-dia. O boi cumpre
essa tarefa, através de sua música e de seu enredo. (ARAÚJO, 1986, p. 60).
Passada
de geração a geração, a história do Bumba-meu-boi não sofreu grandes
modificações. A dramatização ainda tem como cenário a fazenda onde viviam
Pai Francisco e Mãe Catirina, ambos escravos.
Cada
grupo de boi apresenta seu sotaque, ou seja, o seu estilo que o diferencia dos
outros. Oficialmente, são cinco os sotaques existentes: zabumba, matraca,
orquestra, costa-de-mão e pandeirão, também chamado de baixada ou de Pindaré,
entretanto Marques (2003) afirma que essa é uma questão complexa, pois se
registram até quarenta sotaques diferentes.
O
sotaque é a marca característica da dança e do ritmo daquela região. Cada
grupo pode acrescentar ou retirar instrumentos. [...] É bem provável que
possamos encontrar trinta, quarenta e até cinqüenta tipos de sotaque no Maranhão.
Isto acontece devido à própria variação de ritmo existente. Por exemplo, nos
bois de matraca existe variação de ritmo. Cada grupo bate as matracas e os
pandeirões de maneira diferente, uns mais rápidos, outros mais lentos. [...] O
sotaque é uma marca distintiva, é a identificação interna de cada grupo, o
mesmo acontece com os grupos de orquestra. [...] A variação de ritmos mais do
que a marca distintiva da região é a marca de identidade de cada grupo.
O estilo ou sotaque de zabumba seria o mais primitivo. Atualmente, é o que tem menos adeptos. Possui raízes africanas, o que se faz notar nos trajes, nas toadas, no ritmo e na cadência marcados pelo zabumba, um tipo de instrumento de percussão, também conhecido como bombo, que exprime a pancada e dá nome ao sotaque.
O boi de matraca possui, como base instrumental, as matracas que são espécies de tabuinhas feitas em madeira, as quais, batidas uma na outra, produzem um som que dá cadência às coreografias das índias e dos vaqueiros. Este estilo de boi também é conhecido como Boi da Ilha, por ser um estilo próprio dos grupos da capital, São Luís.
A partir das novas transformações, surgiu o sotaque de orquestra, caracterizado pela luxuosa indumentária e por seus instrumentos sonoros, que dão nome ao sotaque.
O sotaque de pandeirão é oriundo da região da baixada – Pindaré e Viana. Apresenta uma semelhança com os grupos de matraca, devido à utilização dos mesmos instrumentos, contudo diferencia-se pelo ritmo e pelo guarda-roupa.
O sotaque costa-de-mão também é conhecido como sotaque de Cururupu, pois tem, como foco principal, esse município. Não se assemelha a nenhum dos estilos já citados e recebe tal nome porque seus instrumentos, os pandeirões, são tocados com a costa das mãos.
O Bumba-meu-boi sofre alterações, sobrevive. Contudo, tais adaptações são significados novos, dados a uma nova realidade que se apresenta dia-a-dia.
A variedade de ritmos, de estilos, de interpretações e leituras no/do Bumba-meu-boi possibilitam que seu lugar na cultura popular do Maranhão seja de destaque, categorizando-o como a dança-mãe do folclore maranhense.
As
lexias “Amo” e “Cantador” serão analisadas sob o ponto de vista semântico
da brincadeira do Bumba-meu-boi, objetivando, sobretudo, identificar a natureza
da motivação que as determina e a relação que se estabelece com a realidade
cultural em que se inserem os usuários das formas em questão.
O
universo da festa do Bumba-meu-boi registra a lexia “Amo” como sendo aquele
que representa o senhor de engenho, o latifundiário, o criador, o coronel.
Muitas vezes é o que canta, sendo sua função principal determinar e dirigir a
brincadeira. Dentro da hierarquia de papéis existente, o amo assume uma posição
tirânica, uma vez que é aquele que manda, toma as decisões sem a menor
discussão com os outros integrantes do grupo.
Amo
é o dono da fazenda e do touro. É o poder, a força, a arbitrariedade às
vezes. [...] Usa apito e com ele disciplina e ordena o conjunto, além de impor
ritmo à apresentação. (AZEVEDO NETO, 1997, p. 79)
A
acepção “Amo” vem do latim e data do século XIII, com o significado de
dono de casa, senhor, patrão. (FERREIRA, 2001). Era, na verdade, um tratamento
dado antigamente aos soberanos pelos cortesãos, sendo, pois, aquele que chefia
e dá as ordens. [2]
A
sociedade, nesta época, se articulava de modo feudal e, no Brasil, o sistema
colonial estava em pleno vigor. Nas senzalas, os negros se organizavam de modo a
festejarem e, ao mesmo tempo, criticarem seus senhores, seus amos.
O
amo era o dono do boi roubado e, por conseguinte, da fazenda, lugar onde
trabalhavam negros e índios. O senhor e patrão, agora, é personagem da
brincadeira, assumindo, se não as mesmas funções, a mesma posição: a de
comando e organização da brincadeira, com o cuidado para que tudo saia de
acordo com o planejado, tomando decisões e se responsabilizando pelo grupo.
Do
latim “cantatore”, a lexia “cantador” data do século XVI, com a
significação: “aquele que executa com a voz um trecho musical.” (CUNHA,
1996, p. 148). No Bumba-meu-boi, é aquele que canta, que tira as toadas. Tal
termo remete a uma motivação semântica diferente de “cantor”.
Aquele
tem caráter mais popular, ou seja, o cantador é o poeta capaz de improvisar as
toadas, não é um músico profissional, é o indivíduo que canta livremente,
por respeito a uma tradição ou pela simples sedução que a brincadeira lhe
provoca. O cantador de Bumba-meu-boi tem uma capacidade natural que lhe confere
tal atributo. Além disso, possui uma relação de devoção ao santo. Assim,
quem é cantador, canta para São João, pois este é um atributo doado por São
João.
Em
alguns bois de sotaque de zabumba, por exemplo, o de Vila Passos, o cantador
recebe também a designação de “cabeceira”, por ser aquele que lidera,
fazendo uma associação com cabeça, comando.[3]
Observa-se,
portanto, que tal acepção sofreu, além do processo de derivação associado
à designação “cantor”, uma adaptação do ponto de vista semântico, pois
o cantador não só canta, como também lidera o grupo.
A relação que existe entre língua e sociedade é inquestionável, pois essa relação é a base da constituição do ser humano. “A história da humanidade é a história dos seres organizados em sociedade e detentores de um sistema de comunicação oral, ou seja, de uma língua.” (ALKIMIN, 2001, p. 21). Desta forma, a relação sociedade e língua não deveria estar ausente das reflexões sobre o fenômeno lingüístico, pois indivíduo e sociedade só ganham existência pela língua, que é a manifestação concreta da faculdade humana de simbolizar. “É pela utilização da língua, que o homem constrói sua relação com a natureza e com outros homens” (ALKIMIN, 2001, p. 26)
O
estudo do léxico se apresenta como uma fonte importante para estudo da sociedade e da cultura, pois retém informações
sobre as formas e as fases da organização social.
Analisando-se
o fato de que todo indivíduo nasce e vive imerso na cultura de sua família, de
seu grupo, a sua linguagem, naturalmente, expõe aspectos dessa cultura. Conseqüentemente,
o estudo das unidades lexicais utilizadas pelos brincantes ou “boieros” para
nomear personagens, cantos, instrumentos e outros elementos que fazem parte dos
ritos, mitos, autos, lendas e danças do Bumba-meu-boi, evidencia fortes marcas
do falar maranhense, o que permite contribuir para o estudo das variedades lingüísticas
apresentadas no Maranhão.
As
lexias que foram analisadas mostram aspectos de uma cultura popular que,
atualmente, tem sofrido grandes alterações em decorrência da modernização e
da própria mudança de mentalidade por parte de muitos organizadores da
brincadeira. Não há dúvidas de que o Bumba-meu-boi atual recria situações
do passado, ainda que com outros elementos de referência, frutos da própria
experiência moderna. A brincadeira, entretanto, permanece e é repassada de
geração a geração, assumindo matizes diferentes de acordo com cada ano e com
a natureza de cada sotaque.
Na
esfera da linguagem do Bumba-meu-boi, convivem, embora com intensidades muitas
vezes diferentes, lexias que representam o caráter conservador da língua e
aquelas que são produtos da inovação lingüística. A simples verificação
de fatos como estes pode orientar uma reflexão sobre o trabalho dialetológico
que, além de registrar a língua em uso, documenta formas lingüísticas
utilizadas pelos falantes de um determinado grupo social ou cultural em uma época
e espaço determinados.
Por
conseguinte, mediante o resgate e o registro dessas lexias, resgatam-se e
registram-se também aspectos específicos da linguagem de um grupo que
evidencia manifestações da implicação língua-cultura-sociedade no âmbito
do léxico.
Ainda
que em proporções pequenas, acredita-se que esse trabalho conseguirá motivar
o interesse pelas investigações lingüísticas no domínio do léxico.
Legitimamente, a linguagem do Bumba-meu-boi não aparece como algo abstrato,
distante da realidade maranhense, mas sim ligada à vida do povo em toda a sua
sublimação, revelando facetas que, por vezes, passam despercebidas.
Desta
maneira, torna-se relevante o patrimônio lexical da língua portuguesa e o
poder da cultura popular na criação de novos sentidos e de novos termos,
sempre tão significativos. A decisão por estudar apenas a manifestação
cultural do Bumba-meu-boi no Maranhão, sem compará-la com outras manifestações
e nem mesmo com sua expressão em outras regiões do Brasil, justifica-se em função
do objetivo específico do Projeto ALiMA – descrever a realidade lingüística
do Português do Maranhão.
Além
da contribuição em pesquisas sobre o conhecimento da realidade lingüística
do Maranhão, espera-se que este estudo permita o conhecimento da língua e de
suas variantes, ajudando a escola a lidar com o grave problema da variação
lingüística, oferecendo caminhos para o combate à estigmatização, à
discriminação e ao preconceito relativos ao uso da língua.
Considerando
o caráter multidialetal do Português do Brasil, recorre-se aos estudiosos,
professores, gramáticos, autores de livros-texto para que as novas produções
de livros didáticos, tanto para o ensino fundamental quanto para o ensino médio,
sejam preparadas dentro dessa nova perspectiva da língua, valorizando o falar
maranhense.
É
digna de registro a necessidade de que futuros estudos, nesta área de investigação,
sejam desenvolvidos, com o objetivo maior de desvendar questões que nesse
trabalho foram evidenciadas.
ALKIMIN, Tânia Maria. Sociolingüística. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (Org.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2001. p. 21-47
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Conceição de Maria de Araújo (Coord.). Projeto Atlas Linguístico do
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SAPIR, Edward. Lingüística como ciência. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1961.
[1] A Fiesta de La Vaca é uma festa muito parecida com a comédia encenada no Bumba-boi. (MARQUES, Ester. Entrevista concedida a Ludmila Portela Gondim (fita mag.). São Luís, 2003.
[2]
Tendo, provavelmente, a brincadeira sofrido influências a partir do ciclo
do gado (Séc. XVII), é natural que muitos termos apresentem estreita relação
com os termos da Idade Média.
[3] A lexia “cabeceira” só foi encontrada no sotaque de zabumba (Boi de Vila Passos). A justificativa dada pelo informante para o uso dessa lexia se dá pela própria associação à cabeça, comando; não sabendo, portanto, explicar o porquê de tal associação.