INTRODUÇÃO

 

            A realização fonética das vogais pretônicas constitui, para aqueles que estudam a variedade do português brasileiro, um traço dialetal diferenciador de falares regionais. Assim, para Nascentes (apud Freitas, 2003), as vogais médias pretônicas abertas caracterizam os falares do norte e nordeste, enquanto as médias fechadas marcam os falares do sul e sudeste. 

            Para Maia (1986), a alternância das médias em sílaba pré-acentuada é também uma marca de dialeto social, já que “abrir as vogais” numa cidade da região sudeste/sul pode criar uma imagem de que o falante é imigrante, pobre, sem instrução, etc. Isoladamente, o traço dialetal não gera este efeito, mas ele ajuda a compor um quadro que, freqüentemente, ridiculariza o portador dessa marca dialetal. No entanto, “fechar as vogais” numa cidade do nordeste não é indicativo de que o falante seja um imigrante desempregado ou subempregado. Quando um nordestino privilegia na sua fala, entre outros traços fonéticos, o fechamento da vogal, isso pode ser avaliado pelos conterrâneos como sinal de esnobismo, demonstrando rejeição pela pronúncia típica do nordeste, ou de elegância, correção, entendendo como positiva as relações nordeste/sul.

            Muitos estudos de cunho variacionista já foram feitos na tentativa de descrever o comportamento das vogais médias pré-acentuadas em português. Dentre eles, podemos citar o de Freitas (2003), Pereira (2000), Silva (1991) e Maia (1986), que analisaram a fala de cidades do norte/nordeste e Callou et alli (1991) que estudaram o falar do Rio de Janeiro. Nenhum trabalho, entretanto, foi realizado com o intuito de analisar o comportamento dessas vogais em sílaba pretônica na norma culta de Fortaleza.

            Diante do exposto acima, observamos a necessidade de realizar o presente estudo com o propósito de identificar os fatores lingüísticos (tipo de vogal, distância da vogal em relação à tônica, tipo de segmento tônico, tipo de vogal da sílaba seguinte, natureza morfológica e contexto fônico subseqüente) e sociais (sexo, faixa etária e tipo de registro) que interferem na realização variável das médias e e o (abertura [E::] e fechamento [e::o]) pretônicas no falar culto dos fortalezenses.    

 

1- METODOLOGIA

 

A amostra, constituída de 36 informantes, extraída do corpus PORCUFORT (Português Oral Culto de Fortaleza), representa, em Fortaleza, uma aplicação dos métodos e técnicas do Projeto NURC (Norma Urbana Culta do Brasil).

Todos os informantes, distribuídos eqüitativamente em função do sexo (masculino e feminino), faixa etária (22-35, 36-50 e 51 em diante) e tipo de registro (D2, DID e EF), apresentam as seguintes características:

-         são fortalezenses natos;

-         são filhos de pais cearenses;

-         mantêm residência fixa em Fortaleza;

-         possuem nível superior;

De cada um dos informantes, foi feita a audição de 20 minutos e a transcrição fonética apenas dos itens lexicais com as vogais pretônicas [e], [E], [] e [o]. Decidiu-se excluir as altas [i] e [u] pré-acentuadas- grafia “e”, “o” - por se revelarem uma variante de baixa produtividade nos dados coletados e, também, por não serem estes traços diferenciadores e sim, provavelmente, convergentes entre a pronúncia do sul e do nordeste.  

Sob a perspectiva da Teoria da Variação, calcularam-se a freqüência e o peso relativo dos fatores que condicionam o fenômeno em estudo com o auxílio do pacote de programas VARBRUL de David Sankoff.

 

 

2- ANÁLISE DOS DADOS

           

Das 1675 ocorrências, obtiveram-se 1086 casos de vogais abertas, o que equivale a 65% de aplicação, contra 589 casos de vogais médias fechadas, correspondendo a 35% de não aplicação da regra.

            Obedecendo a ordem de seleção fornecida pelo VARB2000, foram apresentados os seguintes fatores como favorecedores da abertura das vogais: tipo de vogal da sílaba seguinte, contexto fônico subseqüente, sexo, registro, idade, distância da vogal em relação à tônica, tipo de vogal e tipo de segmento tônico. Apenas a natureza morfológica foi considerada irrelevante.

 

 

i) Tipo de vogal da sílaba seguinte

           

            Analisando os resultados percentuais e probabilísticos, observou-se que as variantes abertas são, praticamente, categóricas diante de vogal de mesma altura na sílaba imediatamente subseqüente: [E] (96% .94), [] (93% .90) e [a] (88% .77) e diante das não-altas nasais: [ã] (77% .70), [~e] (90% .86) e [õ] (93% .84), configurando-se um caso de harmonização vocálica. Já as variantes fechadas [e] (4% .01) e [o] (10% .03) são as que mais inibem a abertura das vogais. Os demais contextos com traço [+alto]: [i] (.26), [u] (.40), [~i] (.21) e [~u] (.36) também mostraram-se inibidores na aplicação da regra.

            Dessa forma, pode-se dizer, assim como Pereira (2000) e Silva (1991), que estas variantes se encontram em distribuição complementar: médias fechadas antes de vogais fechadas e médias abertas antes de vogais abertas.        

ii) Contexto fônico subseqüente

 

            Quanto à zona de articulação do contexto fônico subseqüente, os índices percentuais e probabilísticos apontaram as bilabiais [p, b, m] (78% .71) como o fator mais relevante, atuando sobre as vogais abertas. O traço do arredondamento dos lábios, comum às consoantes bilabiais e à variante [], foi, provavelmente, o fator que possibilitou esse comportamento.  

            As velares [k, g, h] (75% .57), as linguodentais [t, d, n, l] (66% .55) e as labiodentais [f, v] (64% .54) também mostraram-se favorecedoras das variantes abertas. Os contextos vogal seguinte em hiato (.38), alveodental (.46), palatal (.13) e semivogal (.18) não apresentaram qualquer relevância sobre a aplicação da regra.

 

 

iii) Sexo

 

            O fator sexo, em ordem de importância, foi o terceiro condicionador no processo de abaixamento da vogal pretônica ocupou o primeiro lugar. Pela leitura da tabela abaixo, os homens (.61) favorecem o emprego das vogais abertas [E] e [], ao contrário das mulheres que preferem as realizações fechadas [e] e [o].

 

 

TABELA 01

Efeito do sexo sobre as variantes abertas

 

Fatores

Freqüência

Peso Relativo

Masculino

567/800 = 71%

.61

Feminino

519/875 = 59%

.40

 

 

            Segundo Chambers e Trudgill (1980, p.97), quando ocorre diferenças no comportamento lingüístico de homens e mulheres, significa que há prestígio social associado à regra. Para os autores, nos casos de variação estável, os homens tendem a empregar menos a variante padrão do que as mulheres. Quando está sendo implementado um processo de mudança, são as mulheres que privilegiam mais a forma inovadora. Numa sociedade, em que se espera da mulher um comportamento mais correto que o do homem, espera-se que seu modo de falar seja mais cuidado.

            Considerando que as vogais médias fechadas representam a forma inovadora por constituírem a pronúncia típica da região sul/sudeste, os resultados mostram que as mulheres, assumindo uma atitude conservadora, dão preferência à forma de prestígio, ao contrário do que ocorre com os homens, configurando uma situação típica de variação estável.

            Os resultados da tabela acima confirmam os de Silva e Paiva (1996, p.366) que, ao analisar uma coletânea de estudos sociolingüísticos, conclui que, na maioria das pesquisas realizadas, a variável sexo mostrou-se relevante, sendo que as mulheres destacaram-se no uso das formas lingüísticas padronizadas.

            Esta variável chama a atenção pelo fato de, à medida que aumentava a quantidade de ocorrências no arquivo de dados, as rodadas mostravam que a variável sexo ganhava posições na seleção dos fatores pelo VARB2000. Este comportamento, bem como os resultados probabilísticos apresentados na tabela 01, contraria as conclusões de Pereira (1997, p. 167-8) para o dialeto pessoense.

            Assim também, no dialeto do Rio de Janeiro, Callou et alli (1991, p.74) afirmam que as variáveis sociais (sexo, faixa etária e área geográfica de residência) não exerceram grande influência no condicionamento das médias pretônicas.

 

 

iv) Tipo de registro

 

            Com base nas informações da tabela abaixo, observa-se que há uma correlação entre a variável tipo de registro, selecionada em quarto lugar pelo programa estatístico, e a abertura das vogais, pois à proporção que diminui o grau de formalidade entre os informantes, aumenta a aplicação das variantes abertas: EF (.36), DID (.54) e D2 (.62).

 

 

TABELA 02

Efeito do tipo de registro sobre as variantes abertas

Fatores

Freqüência

Peso Relativo

EF

344/580 = 59%

.36

D2

364/519 = 70%

.62

DID

378/576 = 66%

.54

 

 

            Dos registros supracitados, o D2 (Diálogo entre Dois Informantes) é o que apresenta o menor grau de formalidade, já que os falantes, sendo, necessariamente, parentes ou amigos, apresentam um alto grau de intimidade. Este tipo de gravação era realizada geralmente na residência de um dos informantes que tinha a liberdade de escolher o(s) tema(s) que nortearia(m) a entrevista, atenuando, consideravelmente, os efeitos negativos causados pela intromissão do pesquisador e do seu gravador no convívio dos informantes. É, nesse contexto de fala, onde as pessoas tendem a ser mais espontâneas, que se encontra a mais alta freqüência e valor probabilístico de realização das variantes abertas

            A EF (Elocução Formal) caracteriza-se por ser, dos três, o registro mais formal, visto que o grau de familiaridade entre os informantes é muito baixo. Neste tipo de gravação, praticamente, só existe um locutor que se impõe aos demais por força do prestígio do locutor junto à comunidade em estudo. A formalidade dos lugares, na sua maioria auditórios universitários, e o público ouvinte aumentam ainda mais o formalismo típico deste tipo de registro. Isso faz com que o EF seja o mais forte inibidor das variantes abertas.

            O DID (Diálogo entre Informante e Documentador) assume uma posição intermediária na escala de formalidade proposta pelo PORCUFORT, pois apresenta características de D2 e EF. De fato, o comportamento deste fator na tabela 02 comprova isso, pois o peso relativo do DID está acima do ponto neutro, mas não chega a se distanciar muito dele. 

            Com a expectativa de que a forma padrão aparecesse com maior evidência entre as mulheres em situações formais, decidiu-se fazer o cruzamento entre as variáveis sexo e tipo de registro. Os resultados confirmaram esta hipótese, já que as mulheres apresentaram a mais alta freqüência de aplicação das variantes fechadas (52%) em registros de fala informal (EF), privilegiando, assim, as formas consideradas de prestígio. Já os homens, independentemente do grau de formalidade da situação (DID: 71%, D2: 73% e EF: 69%), mostraram-se favorecedores das variantes abertas.

 

v) Faixa etária

            Observando a tabela 03, pode-se concluir que, embora os valores percentuais não sejam muito expressivos, é possível afirmar, com base no peso relativo, que os falantes mais jovens da nossa amostra (22-35) são os que mais aplicam a variante inovadora. A partir dos 36 anos, os informantes empregam mais as vogais abertas. Isso se justificaria, em parte, pelo fato de que muitos dos jovens, que compõem a primeira faixa etária, são recém-graduados, que tentam ingressar ou que ingressaram no mercado de trabalho há pouco tempo e, portanto, são mais sensíveis às influências do mercado de trabalho. Já a segunda faixa etária é constituída por adultos maduros, em pleno exercício de sua atividade profissional, e a terceira faixa é composta por indivíduos aposentados ou em final de carreira. Assim, as duas últimas faixas etárias sofrem menos influências do mercado de trabalho.

 

 

TABELA 03

Efeito da faixa etária sobre as variantes abertas

 

Fatores

Freqüência

Peso Relativo

I (22-35 anos)

436/719 = 61%

.40

II (36-50 anos)

266/407 = 65%

.58

III (51 anos em diante)

384/549 = 70%

.58

 

 

            Efetuando o cruzamento entre o sexo e a faixa etária, constatou-se que, à medida que as mulheres se tornam mais velhas, cresce a aplicação das vogais abertas. As mulheres da primeira faixa etária (48%) são as que mais favorecem o fechamento das vogais, confirmando a tese de que as mulheres são mais conservadoras do que os homens e que os mais jovens são mais inovadores. Em qualquer faixa etária, os homens empregam mais as vogais abertas do que as mulheres.

            Embora Pereira (1987, p.168-9), analisando o falar pessoense, afirme que a idade, isoladamente, não desempenhe papel importante na realização das formas [e], [E], [] e [o], ao fazer o cruzamento entre sexo e faixa etária, detecta que as mulheres de 25 a 45 anos são as que menos abrem as vogais. Isso parece confirmar o que foi dito acima.

            Cruzando a faixa etária e o tipo de registro, observou-se que a primeira faixa etária, nas elocuções formais (EF), gravações de maior grau de formalidade, é a que mais favorece a variante de prestígio (48%) e os mais idosos (51 anos em diante), em situações de maior informalidade (D2), são os que mais privilegiam as vogais abertas (77%).

 

           

vi) Distância em relação à tônica

 

Os valores percentuais atribuídos a esta variável não são muito significativos, mas o peso relativo, como mostra a tabela 04, revela que, ao contrário da contígua, a vogal não contígua à tônica favorece as realizações abertas. Isso só reforça os resultados obtidos para a variável tipo de vogal da sílaba seguinte, quando constatou-se que é a altura da vogal vizinha, e não a vogal tônica, que condiciona mais fortemente a abertura das médias pré-acentuadas.

 

 

TABELA 04

Efeito da distância em relação à tônica sobre as variantes abertas

 

Fatores

Freqüência

Peso Relativo

Vogal não contígua

532/768 = 69%

.57

Vogal contígua

554/907 = 61%

.44

 

 

vii) Tipo de vogal

 

A recuada [] (68% .56) é a que mais favorece a realização aberta, sendo imediatamente seguida pela não-recuada [E] (63% e .54). As vogais [e] e [o] mostraram-se inibidoras das formas abertas.

Após cruzar o tipo de vogal com a distância da pretônica em relação à tônica, a não-recuada [E], quando se distancia da vogal acentuada por uma ou mais sílabas, apresentou-se como a maior aliada na abertura das vogais. A anterior [e], vizinha à tônica, é a que mais inibe as realizações abertas.    

 

 

viii) Tipo de segmento tônico 

 

            Confirmando nossas expectativas, a vogal tônica com traço [+ baixo] (82% .58) é a única que favorece as variantes [E] e []. As vogais altas e médias revelaram-se inibidoras das formas abertas.

            Cruzando o tipo de seguimento tônico e a distância em relação à tônica, observou-se que a vogal acentuada com traço [+ baixo] privilegia as formas abertas quando a vogal pretônica se encontra vizinha à sílaba acentuada (81%) e também quando a vogal pré-acentuada está numa posição não contígua à tônica (82%). As altas [i] e [u], em sílaba vizinha à tônica, são as que mais inibem as variantes abertas.    

 

           

CONCLUSÃO

 

            Pode-se concluir, portanto, que os resultados obtidos são previsíveis. Destaca-se, no dialeto estudado, a predominância das variantes abertas [E] e [] em detrimento das médias [e] e [o], que se apresentaram com menos freqüência. A realização destas vogais está, fortemente, condicionada à altura da vogal na sílaba subseqüente.

Evidencia-se que o princípio da harmonização vocálica é, na verdade, o responsável pelo comportamento das pretônicas [e], [E], [o] e [], quando o VARB2000 considera a variável tipo de vogal da sílaba seguinte a mais relevante de todas.

A atuação das variáveis sociais (sexo, tipo de registro e faixa etária) sobre as vogais abertas foi bastante significativa, ao contrário do que verificou Pereira (1997, p. 165-9), no falar dos pessoenses, com relação ao sexo e à idade. Assim também, Callou et alli (1991, p. 74) consideram inexpressivo o papel das variáveis sexo e faixa etária no que se refere ao dialeto do Rio de Janeiro. Isso significa que, na norma culta, os fortalezenses associam a realização das vogais estudadas às atitudes sociais.

 

REFERÊNCIAS

CALLOU, Dinah et alli. Elevação e abaixamento das vogais pretônicas no dialeto do Rio de Janeiro. Organon: 18: 71-78, 1991.

 

CHAMBERS. J. K. & TRUDGILL, P. Dialectology. Cambridge: Cambridge University Press, 1980.

 

FREITAS, Simone. As vogais médias pretônicas /e/ e /o/ num falar do norte do Brasil. In: RAZKKY, A. (org.). Estudos geo-sociolingüísticos do estado do Pará. Belém: 113-126, 2003 - UFPA.

 

MAIA, Vera Lúcia M. Vogais pretônicas médias na fala de Natal. Estudos lingüísticos e literários. Salvador: n. 5: 209-225, 1986 - UFBA.

 

PEREIRA, Regina Celia Mendes. As variáveis sociais no condicionamento das vogais médias pretônicas no dialeto pessoense. In: HORA, D. (org.). Simpósio Nacional de Estudos Lingüísticos (SNEL) I. ANAIS, V.I. João Pessoa: Idéia: 165-174, 1997 – UFPB.

 

___________________________. A harmonização vocálica e a variação das médias pretônicas. MOARA: Belém: 93-111, 2000: UFPB.

 

SILVA, Giselle M. de O. & PAIVA, Maria da Conceição A. de. Visão de conjunto das variáveis sociais. Padrões Sociolingüísticos – Análise de fenômenos variáveis do português falado na cidade do Rio de Janeiro (Giselle M. de O. e Silva & Maria Marta P. Scherre orgs.). Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1996.

 

SILVA, Myrian Barbosa da. Um traço regional na fala culta de Salvador. Organon: 18: 79-89, 1991.