A sugestão para o trabalho com gêneros textuais nas escolas , tanto no nível fundamental como no médio , tem se tornado quase consensual . O tema nunca foi tão debatido nos círculos acadêmicos como nos últimos cinco anos, mas mesmo assim , ainda se fazem necessárias investigações no âmbito da lingüística aplicada que procurem dar conta de como o processo de ensino-aprendizagem de gêneros textuais efetivamente se desenvolve em sala de aula , especificamente no que se refere à produção textual dos alunos .
Com esse objetivo , propusemo-nos a acompanhar longitudinalmente o trabalho de produção textual de alunos de 1ª e 2ª séries do ensino fundamental de escola pública e particular , usando o referencial teórico dos gêneros textuais de base sociointeracionista como direcionamento para nossa pesquisa . O fato de a pesquisa estar ainda em andamento não nos permite dispor de dados suficientes para fazermos generalizações ou tirarmos conclusões precipitadas , pretendemos , portanto , neste momento , levantar alguns questionamentos a respeito do status classificatório da narrativa , e de como a narratividade está presente nos textos produzidos pelas crianças. Pudemos constatar a forte influência que o esquema cognitivo da narrativa exerce na elaboração dos textos escritos , levando-os a apresentarem o que Bonini (2002) denomina de estrutura fundamental da narrativa , mesmo quando o gênero discursivo trabalhado pelos alunos não favorecia propriamente esse tipo de estrutura , como a propaganda , por exemplo .
O discurso narrativo tem recebido bastante atenção por parte de diferentes áreas de estudo . A começar pela retórica clássica , pela literatura , lingüística e também pela psicologia . Resumidamente podemos dizer que o seu conceito evoluiu da noção de gênero , passando pela idéia de estrutura textual até chegar à noção de tipo ou seqüência textual que é atualmente a mais aceita .
As proposições defendidas por Labov e Waletsky (1967) para a caracterização do texto narrativo - introdução , complicação , ação , resolução e conclusão - tiveram uma influência significativa nos estudos seguintes . É importante ressaltar que nenhum outro tipo textual ( argumentação , descrição , exposição , injunção ) foi tão amplamente estudado , havia , de fato , um interesse em estabelecer uma gramática narrativa . E foi esse o interesse maior de Van Dijk (1977) em seus primeiros estudos sobre o conceito de superestrutura cuja noção foi influenciada pela teoria gerativa . Buscava-se o estabelecimento de uma sintaxe , semântica e pragmática narrativas que dessem conta , respectivamente , de suas categorias e regras , explicasse os sentidos atribuídos às regras bem formadas , e por fim identificasse a função e uso das estruturas narrativas ( produção e recepção ) por indivíduos de uma certa sociedade.
Divergindo um pouco desse interesse por uma gramática narrativa , Virtanen (1992) aborda o assunto apresentando uma distinção entre tipos de discurso e tipos textuais . Segundo a autora os tipos de discurso estariam ligados aos propósitos do discurso e afetariam toda a estratégia do texto , enquanto que os tipos de texto estariam ligados às categorias estruturais ( superficiais ) que compõem o texto , associado aos critérios internos . Nesse sentido , então, o tipo textual narrativo é bastante forte , servindo para realizar diferentes tipos de discurso , enquanto que o tipo textual argumentativo está mais restrito ao tipo de discurso argumentativo . Por outro lado , do ponto de vista dos tipos de discurso , ela defende que a argumentação é um forte tipo de discurso . Para Virtanen o discurso é fundamentalmente persuasivo e freqüentemente representado em textos apesar de não se fazerem necessários nele sinais explícitos de argumentação .
Percebe-se , segundo esse ponto de vista , que no nível da composição do texto , a estrutura narrativa estaria presente em diversos tipos de discurso como se fosse um fator organizador , estruturador do texto . Em contrapartida , o discurso argumentativo , uma vez que se relaciona aos propósitos do discurso , estaria vinculado às intenções e objetivos pretendidos pelo autor do texto , e que portanto interfeririam até mesmo na escolha por um determinado gênero textual .
Nos trabalhos posteriores de Van Dijk o conceito de superestrutura , entendido como esquema , não se restringe mais ao texto narrativo e não é mais visto como estrutura profunda , mas como recurso top-down que perpassa todo o processamento do texto , seja no tratamento microestrutural ( palavras ou sentenças) ou macroestrutural ( nível da semântica do texto ) .
Segundo
Van Dijk (1978,p.143):
“(...)
a superestrutura
é uma
espécie de
esquema ao
qual o
texto se
adapta . Como esquema
de produção , isto significa
que o
falante sabe: “ agora
contarei um
conto”, enquanto que ,
como esquema
de interpretação , isto
significa que
o leitor não
só sabe
do que
trata o
texto , mas sobretudo , que
o texto
é uma narração.”
Neste trabalho estaremos utilizando a noção de superestrutura empregada por Van Dijk (1978) quando nos referimos à existência de um esquema geral de organização textual que norteia a produção de textos orais e escritos .
Voltando-nos um pouco para a área da Psicologia , nós temos a contribuição de Bruner que mesmo sem ser um teórico da literatura ou da lingüística dedicou especial atenção à narrativa , atribuindo-lhe um papel essencial na própria constituição da natureza humana . Bruner (1997) defende que na comunicação humana , a narrativa é uma das formas mais poderosas de discurso e que a estrutura narrativa é até mesmo inerente à práxis da interação social antes que atinja expressão lingüística . Para ele nós usamos as narrativas para construir a imagem dos outros e de nós mesmos .
De uma certa forma , Brewer (1980) ratifica esse posicionamento quando defende que as estruturas fundamentais do texto provêm de capacidades intrínsecas à natureza do homem como ser racional e de categorias psicológicas anteriores ao texto como espaço , eventos no tempo e nexus lógico. Capacidades essas , portanto , inerentes ao que nós estamos denominando como macro esquema narrativo . O uso deste termo não tem qualquer pretensão classificatória , trata-se mais de um recurso para tentar explicar que os limites da estrutura narrativa extrapolam os domínios da produção textual propriamente dita . A história das civilizações , a nossa cultura e as nossas próprias vidas estão narrativamente organizadas .
Foram desenvolvidas oito oficinas de produção textual com as crianças de 1 ª série de uma escola particular . Como já mencionamos no início,o acompanhamento foi longitudinal , começando no segundo semestre da 1ª série e se estendendo até o primeiro semestre da 2ª série do ano seguinte .
Selecionamos para este trabalho uma pequena amostra , composta exatamente por alunos que demonstraram uma maior dificuldade ou um maior desinteresse pelas produções de texto escrito . Em cada oficina trabalhamos um gênero textual diferente, e de maneira geral , percebemos que havia uma maior facilidade e uma maior disposição para escrever quando o gênero solicitava o uso da estrutura narrativa .
Foi o caso do
gênero carta
de apresentação ,
trabalhado na
primeira oficina , momento em que lhes
entreguei uma
carta onde
eu me apresentava dizendo
o que
fazia , as minhas
preferências e outras
informações sobre
mim . Apesar de
ter sido
a primeira
oficina , ocorrida em
um período
em que
os alunos não
estavam muito
habituados com
a produção
de textos, constatamos
a desenvoltura presente nos
textos quando
comparados a
outros realizados
posteriormente ( como os alunos
estavam em
processo de
aquisição da
modalidade escrita , seria
previsível que
as últimas
oficinas realizadas
demonstrassem um
maior amadurecimento
na produção
de texto )
nos quais
não se
encaixava uma
estruturação narrativa .
Os outros gêneros trabalhados - em ordem cronológica – foram : propaganda eleitoral (panfleto), notícia informativa sobre a vida de uma personalidade (o presidente Lula) , propaganda de um produto de ampla comercialização , texto informativo tipo verbete de enciclopédia sobre o carnaval , uma receita , a lenda do peixe-boi e um texto de opinião sobre a guerra no Iraque.
É claro que não é mais novidade para todos aqueles interessados em aquisição da linguagem , gêneros e tipos textuais que o discurso narrativo vai sendo assimilado e construído desde os primeiros anos de vida da criança (cf.Perroni , 1992), mas não deixa de surpreender a constatação in loco da dimensão que a influência do esquema narrativo exerce durante a produção de textos escritos .
Apresentaremos como exemplo casos de alunos que na produção de textos opinativos , argumentativos ou expositivos demonstraram maior dificuldade em sua elaboração , em contrapartida nos textos narrativos , a facilidade foi bem visível.
Exemplo 1 ( aluno A )
1ª oficina - Gênero : Carta de apresentação
Tia Regina
O meu nome é Glória, tenho 7 anos
e estudo na Lourdinas . Eu moro no Bessa ,
quando eu saio do colégio eu vou para Santa
Rita para a casa da minha vovó. Eu gosto de
comer chocolate maron e Branco . Eu também
brico de barbie .
2ª oficina – Gênero : Informe noticioso sobre a vida de Lula
Esse homem é lula .
Ele agora é um presidente .
3ª oficina – Gênero : Verbete de enciclopédia
O carnavau
O carnavau é festa popula onde tem gente
bebendo as crianças comedo pipoca com coca-cola.
4ª oficina – Gênero : Lenda do Peixe-boi
A Lenda do peixe-Boi
Era uma vez um padre jesuíta ele tava disendo para os índios parem de comer gente mas um dia um índio desobedeceu e pegou índia pequena e devorou ela aí os índios ficaram muita muita raiva dele e começaram a jogar pedra nele ai pelo um tempo os pescadores acharam um peixe enorme e nigen sabia gem eram quando era noite de lua cheia ele ficava com a cabeça no lado de fora .
5ª oficina - Gênero : Receita
Suco de laranja
5 laranjas
um pouco de água
2 colheres de áçúca
e o suco está pronto
6ª oficina - Gênero : Texto opinativo sobre a guerra no Iraque
A guerra do Estados Unidos contra o Iraque estão matando as pessoas e as crianças .
Exemplo 2 – ( aluno B )
1ª oficina - Gênero : carta de apresentação
Tia Regina meu nome é Márcio Neto
tenho 2 irmão um de 17 e uma menina
de 12 minha mãe se jama Marilia
e meu pai se jama Rui . O que eu mais
gosto de brincar é futebou e também
gosto de desenha .
2ª oficina - Gênero : Informe noticioso sobre a vida de Lula
Ele se chama lula já foi pobre e a gora e nosso
Presidente do Brasil e também fico rico .
Parabéns lula porque
É presidente do Brasil
Márcio Neto
3ª oficina – Propaganda de um propaganda ( amaciante de roupa )
Este amaciante se chama mon bijou . Ele serve para limpá sua roupa
Para limpa
É cheiroso , limpo e bom
Para limpá suas roupas
4ª oficina - Gênero : Verbete de enciclopédia
O carnaval
O carnaval é uma dança Popular , as pessoas pulão ,
gritão e muito mais
5ª oficina - Gênero : Lenda do peixe-boi
Era uma vez os ídios só sabia comer gente e chegou o mestre i comesou a isplica vocêis não podem comer gente , e um ídio desobedeceu e os outros ídios descobrirão e ele começou a correr porque os outros começarão a jogar pedra e o ídio mergulho no rio e ele morreu e virou um peixe boi .
6ª oficina - Receita
pipoca
Ingredientes
Pipoca
mantega
sal
Modo de prepara
paga a pipoca e bota no forno micro ondas .
7ª oficina – Gênero : texto de opinião sobre a guerra no Iraque
Eu não gosto de guerra porque as pessoas morrem , pode até ressusita mas a maioria morrem .
P
A Z
Nós poderíamos apresentar
vários outros
exemplos ilustrativos , mas
todos se
enquadrariam dentro
desta mesma tendência : os
gêneros que
favorecem o
uso da estrutura narrativa
são aqueles
melhor desenvolvidos por estes
alunos . Não se pode
alegar também
que houve
mudanças nas
pré-condições para o trabalho
com determinados
gêneros . As estratégias
de preparação
para a
produção dos
textos foram
basicamente as
mesmas : um debate
oral prévio
sobre o
tema , a leitura
de textos
de apoio ( no
caso da
carta de
apresentação , a propaganda
e a
receita ), e a discussão
sobre acontecimentos
que estavam
em amplo
destaque na
mídia ( as eleições
para presidente , a biografia de
Lula , o período
pré-carnavalesco e
a guerra
no Iraque ).
É claro que , prototipicamente falando , a lenda do peixe-boi representa o único caso típico de um texto narrativo , com uma gramática narrativa , com um conflito , enfim , com todos os requisitos que caracterizam um texto narrativo . E contrariando as expectativas , foi a oficina que menos requisitou um trabalho prévio com os alunos . Contei oralmente a lenda do peixe-boi por duas vezes e em seguida pedi-lhes que fizessem um resumo por escrito .
Em segundo lugar vem a carta de apresentação , que apesar de conter seqüências descritivas , pois é um gênero muito aberto para a ocorrência de outros tipos textuais , enquadra-se naquela estrutura fundamental citada por Brewer proveniente de categorias psicológicas anteriores ao texto como espaço , eventos no tempo e nexus lógico. Os alunos ao se apresentarem , estão fazendo uma narrativa de si mesmos .
O mesmo ocorre com o texto sobre Lula – juntamente com a lenda e a carta , foi um dos mais apreciados pelos alunos – que se propunha a ter um caráter de notícia , aspecto esse que não ficou muito evidente nesses exemplos , também se inclui no macro esquema narrativo . Evidentemente a notícia apresenta uma superestrutura própria (cf. Bonini, 2002) , mas não deixa de ser uma narrativa, assim como o relato biográfico – alguns alunos deram uma caracterização de mini relato biográfico ao texto sobre Lula .
No caso dos textos sobre o carnaval , a guerra no Iraque , a propaganda e a receita , percebemos que os textos destes alunos perderam um pouco da organização estruturadora da narrativa . Ficou mais difícil para eles a produção escrita , mas houve casos em que mesmo na propaganda , uma aluna conseguiu apresentar uma organização narrativa para o seu texto .
Exemplo 3 - Aluno C
Ta na revista uma bara de cereal e bom para come para ficar forte e crecer eu não sei si ela e gostoza mais pela cara e muito , muito gostoza , eu vou pedi para mina mãe .
Não seria possível identificar neste texto um esquema estrutural maior (um macro esquema narrativo ) que permitisse fazer uma releitura do tipo :
Eu vi hoje numa revista na escola uma barra de cereal que é boa para comer , para ficar forte e crescer . Eu não sei se ela é gostosa , mas pela aparência da foto é muito , muito gostosa . Eu vou pedir para minha mãe comprar para mim .
Certamente este é um discurso predominantemente argumentativo , apresenta uma superestrutura argumentativa , mas percebemos em um nível macro estrutural uma organização narrativa para um texto argumentativo . Não se trata de considerar a narrativa apenas como tipo textual , nem como superestrutura , e sim como um fator constitutivo do discurso co-responsável pelas interações sociais .
Finalizamos lembrando que mais do que apresentar conclusões , pretendemos levantar polêmicas e provocar questionamentos . Como dissemos no início do trabalho , nossa pesquisa está em andamento e não dispomos de muitos dados conclusivos . Deixamos uma porta aberta para o aprofundamento da questão.
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