Na poesia de Augusto a ironia é vista de forma melancólica. O eu lírico se envolve em um mundo de tensão, onde deseja conhecer o seu destino, mas, além de se ver imerso em forças que não consegue explicar, a resposta que encontra sobre aquilo que investiga é sempre mórbida e degradante, e por isso infausta. Em vários poemas de Eu e outras poesias há uma preocupação com o destino do homem, a busca por algo que seja superior à vida na terra; no entanto, o homem sempre se depara com uma miséria pior do que a sua própria realidade.Sob o signo do “infausto” essa poesia compõe uma poética da falta, da solidão, da melancolia e da ironia. Esses elementos constituem traços que se repetem e reiteram a idéia de ruína. Esta ruína é também um aspecto caracterizador do sujeito lírico. Há um jogo de imagens que mostra uma ruína exterior que é reflexo da ruína interior. O eu lírico tenta, através dessas imagens de ruína, manifestar o seu caráter de arruinado. Esse aspecto se constitui como um dos traços marcantes da construção poética do infausto e da ironia.
Em poemas como “A ilha de Cipango” (Anjos, 1996, p.282), o eu lírico é marcado pela degradação, como se percebe nesse verso: “Eis-me passeando como um grande verme”; ao comparar-se com um verme indica um rebaixamento, em que se observa a passagem do humano para o infra-humano. Ela tem um caráter notadamente disfêmico, e o primeiro degrau que se desce é o da consciência e da razão. Ou seja, o sujeito lírico se rebaixa de um estado consciente e racional para um estado irracional, no qual adquire o aspecto da figura negativa do verme, que se associa à idéia de baixo, negativo, infausto.O mesmo procedimento ocorre em “Gemidos de arte” (p.261), na primeira estrofe da parte II:
O sol agora é de um fulgor compacto,
E eu vou andando, cheio de chamusco,
Com a flexibilidade de um molusco,
Úmido, pegajoso e untuoso ao tato!
Nele, o rebaixamento do eu lírico à categoria de um “molusco” confirma a ironia disfemística, que caracteriza o homem em degradação e o equipara ao irracional e ao inferiorizado. A ironia é ainda percebida como recusa a qualquer atitude de encantamento, por isto se encaminha em direção ao disfemismo, contrário do eufemismo.
Depreciação e degradação do humano se incorporam na poesia de Augusto dos Anjos sob vários aspectos. Uma dos principais é a representação disfêmica que se estende às partes do corpo, interpretando-as de modo desfavorável, do que decorrem as associações depreciativas. Constitui exemplo de automenosprezo a seguinte passagem, na última estrofe da Parte II de “Gemidos de arte” (p.261):
Eu, depois de morrer, depois de tanta
Tristeza, quero em vez do nome — Augusto,
Possuir aí o nome dum arbusto
Qualquer ou de qualquer obscura planta!
Assim como a primeira estrofe da parte IX de “Os doentes” (p.236 ):
O inventário do que eu já tinha sido
Espantava. Restavam só de Augusto
A forma de um mamífero vetusto
E a cerebralidade de um vencido!
Nesses dois casos o eu lírico manifesta um desejo de total subtração à lembrança dos homens, aspirando à indiferença do elemento natural. Essa despersonalização, oposta ao prestígio histórico associado ao seu nome, coadunar-se-ia melhor com a imagem de um vencido. O termo “Augusto” se refere àquele “digno de respeito, solene, venerando, imponente, sacro e venerado”, ou seja, valores de certa forma ligados ao alto, à glória. No entanto, nos versos em que aparece o termo citado, no contexto da estrofe, têm-se expressões que remetem a valores opostos: “morrer”, “tristeza”, “obscura”, “vetusto” e “vencido”. Essa combinação entre o nome “Augusto” com termos antagônicos sugere ou reitera o caráter irônico do sujeito lírico, que menospreza o significado imponente do seu nome. O aspecto “infausto” está aí implícito.
Na estrofe de “Os doentes” há a redução do humano para o infra-humano: “(...) Restavam só de Augusto/ A forma de um mamífero vetusto/ E a cerebralidade de um vencido!”. Ou seja, o sujeito tem uma consciência sarcástica de sua finitude e de sua insignificância. O vencido é o derrotado, o rendido. Há uma constante referência à deterioração do sujeito lírico, mediante a qual se busca denegri-lo e depreciá-lo. Nota-se que nos dois poemas o nome “Augusto” é expresso de modo explícito e bem visível. Esse recurso remete à duplicação do sujeito – o eu-poeta (o nome Augusto) e o eu-lírico, propriamente dito (a voz no poema). Esse desdobramento converge para um ponto no qual sobressai o aspecto irônico, isto é, o sujeito lírico antagoniza com o outro (Augusto), naquilo em que este remete a valores positivos.
“O homem tratado como coisa” corresponde à categoria de transformação do humano para o infra-humano. Paiva remete a Bérgson (1983, p.36) quando reafirma que sempre rimos quando uma pessoa nos dá a impressão de ser uma coisa. Segundo Paiva, “a zona humana é invadida pela zona do inerte, e o homem é diminuído na sua essência, menosprezado na sua individualidade, indiferenciado na confusão com as coisas”.(1961, p.107). Esse aspecto é percebido na última estrofe de “Gemidos de arte” (p.261):
Sol brasileiro! Queima-me os destroços!?
Quero assistir, aqui, sem pai que me ame,
De pé, à luz da consciência infame,
À carbonização dos próprios ossos!
O que se decompõe em destroços ressalta o aspecto da degradação; isto se dá porque na ironia disfemística é comum o corpo mesmo vivo ser considerado como resquício do que já está morto. Esse aspecto também acontece em “Os doentes” (p.236), nos versos da quarta estrofe da parte V : “E quase a todos os momentos mostra/ Minha caveira aos bêbedos da rua”; e no segundo terceto de “Anseio”(p.345) “Grita em meu grito, alarga-se em meu hausto,/ E, ai! Como eu sinto no esqueleto exausto/ Não poder dar-lhe vida material!” (grifos nossos). Em “Solitário” (p.226), o homem degradado é reduzido ao infra-humano, e assim sofre um processo de coisificação, como podemos observar no segundo terceto:
Levando apenas na tumbal carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!
Os termos “carcaça”, “pergaminho da pele” e “chocalho dos ossos” expressam a ironia disfemística criadora de metáforas que traduzem o rebaixamento do homem à categoria de coisa. Em “Vozes de um túmulo” (p.259) acontece a mesma caracterização como podemos perceber nos seguintes versos (Hoje que apenas sou matéria e entulho /Tenho consciência de que nada sou!). A imagem do homem resumido a “entulho” mostra o envelhecimento do corpo coisificado e arruinado. O rebaixamento não passa de uma das formas de transposição de sentidos, a qual, por sua vez, é apenas um dos meios de se criar o efeito de ironia. Além dos exemplos citados, outro poema que caracteriza a ironia sob a perspectiva da melancolia na poesia de Augusto dos Anjos é “As Cismas do destino” (p.211), como percebemos nos versos abaixo:
Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minha’alma!
Apesar da construção em primeira pessoa, há uma preocupação com o destino da própria humanidade, aparecendo o eu como um somatório de todos os homens. Para Viana,
esse processo de converter o eu em nós é comum em Augusto dos Anjos; ele confirma a amplitude do seu lirismo, que não se confina a temas pessoais, e reflete uma das obsessões mais caras ao poeta: a obsessão de, enquanto indivíduo, converter-se em arauto dos sofrimentos do grupo e, sobretudo, em instrumento regenerador da espécie humana. Liga-se ao seu desejo de ser Cristo para redimir o homem decaído.(2000, p.51).
Não existe a busca do Infinito, porque o homem é um ser finito; esse homem estaria em busca de um vazio, rumo ao indeterminado. Para Solger Apud Kierkegaard (1991, p. 273), “a verdadeira ironia parte do princípio de que o homem, enquanto estiver neste mundo presente, terá que cumprir apenas a sua destinação”. Na parte III de “As Cismas do Destino” (p.211), percebemos este aspecto: o eco particular do “Destino” humano representa a impossibilidade da felicidade, por mais que ela constitua o objeto de uma procura infinda. Assim, lemos na primeira estrofe da referida parte do poema:
Homem! Por mais que a Idéia desintegres,
Nessas perquisições que não têm pausa,
Jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os fenômenos alegres!
Para o homem só é possível conhecer a tristeza, pois os fenômenos, enquanto realidades aparentes, não estão ao seu alcance. É sonho do ser humano querer decidir livremente o seu destino, ou até mesmo ter um controle sobre ele; apesar de esse desejo ser mera utopia, ele é paradoxalmente a ilusão mais válida do homem a seu próprio respeito. O homem é colocado à mercê de seu destino, e para ele resta apenas o abandono, o entulho, a ruína, conforme se percebe na última estrofe da mesma parte III:
Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!... És poeira, e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo!
O destino do homem é a morte física, depois do apodrecimento dos tecidos ele voltará ao pó no entanto, depois de morto ele deixará suas marcas negativas, constituindo um pasto amargo para o animal que se alimentar de suas carnes. Na estrofe primeira da parte IV de “As cismas do destino”, os aspectos “demasiados humanos” da tragédia, citados por Frye são configurados na imagem do rei Lear. A comparação que se manifesta nessa estrofe confirma a infausta humanidade do eu lírico:
Calou-se a voz. A noite era funesta.
E os queixos, a exibir trismos danados,
Eu puxava os cabelos desgrenhados
Como o rei Lear, no meio da floresta!
Para justificar a presença do rei Lear nessa passagem, faremos uma breve explanação sobre ele. Ao transformar um rei em homem comum, Shakespeare criou uma das obras primas da dramaturgia mundial. O rei Lear comete um erro de julgamento que o faz passar da felicidade para o infortúnio. Julgando ser hora de passar a carga do poder para os mais jovens, o velho Lear quer abdicar das responsabilidades, mas não dos privilégios e pompas do poder. Para distribuir o reino entre as três filhas, ostensivamente dando um “terço mais opulento” àquela que lhe disser que mais o ama, ele acredita na bajulação das falsas Goneril e Regana e renega a caçula Cordélia, até então sua favorita, porque esta admite que o ama tanto quanto uma filha pode amar um pai. Incapaz de raciocinar, tomado de fúria, ele bane a filha, e divide sua herança entre as outras filhas.Assim, o rei julga boas as filhas más, e má a filha bondosa, erro suficiente para difundir o mal na família, no Estado e em toda a natureza. Cordélia luta para defender o pai, mas é derrotada; Lear, humanizado, fica tão vulnerável quanto ela, e ambos morrem.
Essa é a trágica história de um homem que, com mais de 80 anos, tem de fazer o doloroso aprendizado que o transformará de rei (o poder divino na terra) em homem comum — e nos fará ver quanto ser homem é mais significativo. Segundo a simbologia, o rei é concebido como um eu superior, um ideal a realizar. Sua imagem concentra sobre si os desejos de autonomia de governo de si mesmo, de conhecimento integral, de consciência. Nesse sentido, o rei é, com o herói, o santo, o pai, o sábio, o arquétipo da perfeição humana, e ele mobilizava todas as energias espirituais para se realizar
Em toda a primeira parte da peça, há a insistente figura do Bobo, que é a consciência de Lear, a qual se vai despertando na medida em que o Bobo destila suas ironias. Esse ironista cumpre um papel fundamental de catalisador da irrupção de consciência do sujeito, no caso o rei Lear. O rei, pesado com suas atribuições e posição quase “divinas”, fica impossibilitado de ver a consciência que está encerrada dentro de seu ser. A ironia se ressalta por ser justamente um louco (o Bobo), que consegue ter olhos vívidos para os atos humanos. Entretanto, quando Lear passa a ter a verdadeira consciência de seus atos, o Bobo desaparece, porque sua função irônica se torna desnecessária.
Lear, quando rei, era considerado um deus; a ironia é que, na peça, o caráter divino que ele ostentava é excluído. Depois que as filhas herdam sua riqueza, ele passa a ser um simples homem humilhado e abandonado por elas, exceto por Cordélia, que outrora banira. O rei Lear passa da categoria de supra-humano (rei) para humano (homem comum). Ele é encarado como um homem louco, despido de qualquer dignidade e da auréola sagrada que detinha. A transposição “do supra-humano para o humano” situa o rei num plano que diminui sua realeza, fazendo-o participar da realidade do homem comum, dos sentimentos e dos problemas que afligem a humanidade. Para Frye (1989, p. 233):
o Rei Lear tenta alcançar a dignidade heróica através de sua posição como rei e como pai, e encontra-a em vez disso em sua humanidade sofredora: por isso é no Rei Lear que deparamos o que tem sido chamado a ‘comédia do grotesco’, a paródia irônica da situação trágica.
O infausto caracteriza, então, a poesia de Augusto dos Anjos, que de forma irônica, ácida, e carregada de “humor negro” acentua a melancolia. Percebemos esses traços ainda em poemas como: “Versos íntimos” (p.280) - “Acostuma-te à lama que te espera! “; “Versos a um cão” (p.208) - “Cão! ─ Alma de inferior rapsodo errante!” (...); nos versos 13 e 14: “Latindo a esquisitíssima prosódia/ Da angústia hereditária dos seus pais”; em “Psicologia de um vencido” (p.203) - “Eu, filho do carbono e do amoníaco, / Monstro de escuridão e rutilância, / Sofro desde a epigênese da infância, / A influência má dos signos do zodíaco”.
A ironia infausta presente nos exemplos acima representa aquilo que está em ruína e é preciso resgatar; daí o traço de degradação, de fragmentação. Como lembra Viana (2000, p. 94) “com suas imagens alegóricas, despedaçadas, o que o motiva, basicamente (ao eu lírico), é o anseio de resgatar o homem decaído; é o desejo de “outra Humanidade”.
As marcas da ironia infausta na poesia de Augusto dos Anjos surgem como meio de expressão de elementos contrastantes e paradoxais. Um dos primeiros aspectos a serem analisados é a manifestação do poeta em relação à sexualidade, traduzida numa real negação do erotismo, em função da qual o eu lírico rechaça a figura da prostituta, ao mesmo tempo em que se compraz nas descrições sensuais que ela provoca. Nos versos que aludem ao processo de putrefação dos corpos, por exemplo, revelam um eu poético marcado por uma postura contraditória e paradoxal perante as imagens do corpo morto. Essa reação se destaca como de horror e de prazer, pois há simultaneamente por parte do eu lírico um pavor em relação à imagem do cadáver em decomposição ou das imagens esqueléticas, e um prazer “sádico” causado por essas imagens.
A partir dessa constatação, podemos nos reportar ao estudo de Bataille (1987, p. 53), que traz uma explicação plausível para essa ambigüidade. Segundo o autor de O erotismo, o horror diante dessas imagens de putrefação do corpo relaciona-se com o prazer que elas despertam. Desenvolvem-se reações duplas de fascinação e pavor: por um lado há o repúdio a elas; por outro, o sujeito se mantém preso a tais imagens pela fascinação e “perturbação soberana” que elas causam.
A reação paradoxal de horror e prazer que permeiam os versos de Eu e outras poesias expressa um apelo mórbido e ao mesmo tempo sensual presentes na junção das figuras do homem e do verme. O verme representa o eu lírico; enquanto este nega o erotismo quando se refere ao corpo feminino, o verme afirma esse desejo. É o verme que se alimenta lentamente, num prazer sádico, daquilo que já é morto; é como se ele fosse um desdobramento do desejo do próprio eu lírico. Esse desdobramento se dá através do erotismo anteriormente negado pelo eu poético, e posteriormente continuado pelo verme. Podemos dizer que o verme é o “outro” em que o poeta focaliza o prazer da devoração erótica. Essa idéia lembra a peça Hamlet, de Shakespeare, onde se afirma que “o verme é entre os comedores o monarca supremo. Nós cevamos todas as criaturas para que elas nos cevem, e nós nos cevamos a nós mesmos para os vermes: (...) Eis o fim de tudo”. Similar comparação situa-se no poema “À mesa” (p.346):
Como porções de carne morta... Ai! Como
Os que, como eu, têm carne, com este assomo
Que a espécie humana em comer carne tem!...
Como! E pois que a razão me não reprime,
Possa a Terra vingar-se do meu crime
Comendo-me também!
O sujeito poético se culpa pela devoração das carnes mortas de seus “semelhantes”, no entanto transfere a responsabilidade de comê-las também à “Terra”, ou seja, se culpa por não conseguir ser dominado pela “Razão” e, portanto, dará à “Terra” a oportunidade de se vingar dele, comendo-o também. A imagem de devoração do corpo vista pelo eu poético como uma cena da qual emanam horror e prazer é também apresentada no poema “A meretriz” (p.319). Nele, o poeta julga o destino da prostituta enquanto descreve seu corpo jogado à lascívia. Observamos essas descrições, precisamente, nas duas primeiras estrofes:
A rua dos destinos desgraçados
Faz medo. O Vício estruge. Ouvem-se os brados
Da danação carnal... Lúbrica, à lua,
Na sodomia das mais negras bodas
Desarticula-se, em coréias doudas,
Uma mulher completamente nua!
É a meretriz que, de cabelos ruivos,
Bramando, ébria e lasciva, hórridos uivos
Na mesma esteira pública, recebe,
Entre farraparias e esplendores,
O eretismo das classes superiores
E o orgasmo bastardíssimo da plebe!
Na mitologia grega, a simbologia da lua sempre teve um significado importante. Desde o século III a.C., como atesta Mâneton, historiador e poeta didático egípcio de língua grega, o verbo seleneádzein, derivado de Sélene, Lua, significa ‘ser epilético’, ‘ser adivinho’ ou ter uma ‘doença sagrada’. As convulsões do epilético se assemelham às agitações e ‘distúrbios’ daqueles que entravam em êxtase e entusiasmo, isto é, na ‘posse do divino’, sobretudo nos ritos dionisíacos. (Brandão, 2000, pp.75-81). É dessa forma convulsa, de quem está possuída, que a meretriz aparece nos versos: “Desarticula-se, em coréias doudas, / Uma mulher completamente nua!”. As características de êxtase e entusiasmo, relatadas na mitologia, relacionam-se com as sensações de que goza a meretriz: “Bramando, ébria e lasciva, hórridos uivos”.
Na mitologia grega, essa luxúria acontece principalmente pelo poder que a lua tem de fazer propagar a espécie e principalmente da fertilização dos animais e das plantas. Tudo isso provocou desde a mais remota antigüidade um tipo especial de hieros gamos, de casamento sagrado, de caráter impessoal. Segundo Brandão, “trata-se das chamadas hierodulas, literalmente, ‘escravas sagradas’, ou ainda denominadas ‘prostitutas sagradas’ mas sem nenhum sentido pejorativo”. Em relação aos estudos sobre as propagações e feitos que a lua podia transmitir na mitologia, Brandão (2000, p. 75) acrescenta:
em determinadas épocas do ano, sacerdotisas e mulheres de todas as classes sociais uniam-se sexualmente a reis, sacerdotes ou a estranhos, todos simbolizando o homem-Lua, com o único feito de provocar a fertilização das mulheres e da terra, bem como de angariar bens materiais para o templo da deusa (Lua) a que serviam.
No poema “A meretriz”, o corpo da prostituta simboliza a própria volúpia. Em “Na sodomia das mais negras bodas”, há uma alusão ao sexo “proibido”, sugerindo-se que o fim único da sexualidade não é a fecundação; o termo “sodomia” denota o contato libidinoso entre pessoas do mesmo sexo, sem cópula, mas com orgasmo. Os meios religiosos, com seu moralismo intransigente, não aceitam esse tipo de prática. Nas descrições que o eu lírico faz do comportamento da meretriz, as formas aparecem do modo mais sensual possível, só que é uma sensualidade sempre ligada ao macabro ou ao aspecto perverso do sexo. Assim, a reação do eu lírico a essas imagens indica um sentimento ambíguo, ou seja, ao mesmo tempo em que ele condena as ações da prostituta, demonstra um certo comprazimento ao descrever a sensualidade que dela emana.
Na segunda estrofe este aspecto é evidente. Iniciemos pela descrição da cor dos cabelos da meretriz. A expressão “cabelos ruivos” sugere que essa mulher traz na cor de seu cabelo uma certa luxúria. Cromaticamente, a cor vermelha do cabelo intensifica a sugestão erótica. Seus gestos e voz refletem uma gradação em termos de prazer: “bramando, ébria e lasciva, hórridos uivos”. A mulher é descrita no seu aspecto de total entrega; ela não seleciona seus parceiros, recebendo no leito, “esteira pública”/ “Entre farraparias e esplendores”/ “O eretismo das classes superiores” e “.. o orgasmo bastardíssimo da plebe!”. Talvez um dos motivos da revolta do eu poético seja o fato de ela sentir orgasmo, ter prazer ao se entregar a qualquer um, independentemente da classe social.
A figura da meretriz é constantemente censurada pelo eu lírico, talvez por não ter nenhum valor moral. Ela é concebida apenas como elemento erótico, como corpo destinado a dar prazer a quem a procura. Como enfatiza Viana (1994, p. 72), “condena-se a prostituição por ela não conduzir a coisa alguma ─ ou a fruto algum ─, resumindo-se num prazer estéril.” Assim, na estrofe 4, ela é também atribuída a culpa de não possuir leite para alimentar os filhos, o que por ofício não lhe é possível. A meretriz não possui o poder ou a “pureza” natural de uma mãe para nutrir a prole:
É ela que, hirta, a arquivar credos desfeitos,
Com as mãos chagadas, espremendo os peitos,
Reduzidos, por fim, a âmbulas moles,
Sofre em cada molécula a angústia alta
De haver secado, como o estepe, à falta
Da água criadora que alimenta as proles!
A figura da meretriz é retratada como um ser vulgar, que procura suprir a todos sexualmente. Para o eu lírico, ela possui todos os defeitos possíveis: é “a desgraça de todos os ovários”; é a mulher “funcionária dos instintos”; é a própria “luxúria”; é “urna de ovos mortos”; “a filha do inferno”; é “a que paga com volúpia o crime eterno”. Enfim, as descrições sensuais que surgem no poema configuram uma sensualidade às avessas, em que se destacam as imagens de eliminação do corpo, numa espécie de ritual de morbidez e definhamento corporal que, paradoxalmente, causa um prazer sádico ao eu lírico. Observamos, quanto a isso, este fragmento da a estrofe 18:
É o sublevamento coletivo
De um mundo inteiro que aparece vivo,
Numa cenografia de diorama,
Que, momentaneamente luz fecunda,
Brilha na prostituta moribunda
Como a fosforescência sobre a lama!
O poeta indica o tipo de cenário que define essa “paisagem” mórbida da prostituta. Nele, o termo “diorama” tem uma função essencial, pois indica um quadro cênico de grandes dimensões, pintado em base transparente, no qual por variação da iluminação, quando observado de lugar escuro, se obtém da mesma paisagem efeitos diurnos ou crepusculares. Na estrofe acima, percebe-se o paradoxo de uma “luz fecunda” que “Brilha na prostituta moribunda / Como a fosforescência sobre a lama!”. O contraste entre luz e lama acentua o sarcasmo e a ironia do eu poético, que ao mesmo tempo afirma a similaridade entre lama e prostituta. Percebemos essa similitude uma vez que, simbolicamente, a lama se apresenta como o efeito de um processo involutivo, um início de degradação. Daí é possível que a lama ou o lodo, através de um simbolismo ético, passe a ser identificada com a escória da sociedade (e com seu meio ambiente), ou até mesmo com os níveis inferiores do ser: uma água impura e corrompida – imagem do corpo da meretriz.
No referido poema o que sustenta a ação da prostituta é a volúpia da carne e o desejo da luxúria. Ela é a encarnação de um ser que se entrega ao pecado. O que se percebe é a vitória do erotismo através do pecado, segundo o pensamento cristão, aquilo que é erótico e que faz apelo aos desejos e anseios carnais. A satisfação pelo prazer é produto do pecado, só um pecador se deixa tentar pelo erótico, aqui representada pela prostituição, como percebemo na estrofe 20: “... prostituição, ofídia aziaga” / “cujo tóxico instila a infâmia”. O eu lírico condena a meretriz exaustivamente, sua condenação é fruto do apelo que faz ao erótico, e esse, por sua vez, ao pecado da carne. O eu lírico desfere a imagem do verme como purgador do pecado da meretriz.
Na estrofe 23, o eu lírico antevê o destino da prostituta depois da morte, destaca-se, como um castigo irrecorrível, o conúbio dessa amante inveterada com o seu parceiro final – o verme:
Ser meretriz depois do túmulo! A alma
Roubada à hirta quietude da urbe calma
Onde se extinguem todos os escolhos:
E, condenada, ao trágico ditame,
Oferecer-se à bicharia infame
Com a terra do sepulcro a encher-lhe os olhos!
Observamos uma ligação entre os fenômenos do erotismo e da morte, através da figura da meretriz, que encarna a lascívia, e de sua eroticidade além-túmulo. O aspecto desagregador da morte, aliado a uma negação do erotismo, reforça a violência e o caráter destruidor do impulso erótico. A meretriz, vinculada à figura do cadáver, caracteriza-se por um erotismo impreciso e difuso que nesse momento aparece repetidamente mais distante da concretização explicitamente sexual. Com um erotismo distante, irônico, Eros faz-se expressar através do movimento de Tânatos: “Oferecer-se à bicharia infame”/ “Com a terra do sepulcro”. O corpo da meretriz deixou de ser um corpo vivo, desejado por todos. No processo de putrefação, o corpo é matéria vil que será transformando em cinza e pó; ainda assim, continuará sequioso de prazer.
A eroticidade ou sensualidade é na meretriz produzida às avessas, como definimos anteriormente. Esse erotismo é fruto do sadismo do eu lírico, que faz a mulher ser condenada à trágica sentença de aniquilamento pela “bicharia infame”. O trabalho de manuseio e devoração das carnes é um trabalho da “bicharia”, à qual nenhum obstáculo limita. O poeta lança ao verme o prazer que ele não pôde concretizar; se antes culpava a meretriz por todas as atitudes “luxuriosas”, vota ao verme “infame” a culpa de prolongar o erotismo. O verme se apossa e se nutre do corpo que não foi possível ao eu lírico possuir. O paradoxo do prazer macabro é caracterizado pela idéia do verme como uma espécie de alter ego do poeta. O primeiro representa o prolongamento do segundo.
A figura da meretriz implica uma sensualidade paradoxal para o poeta; ao mesmo tempo em que lhe causa asco, leva-o a buscar o prazer. Configura-se um erotismo negro, numa conjugação da morte com a vida. A prostituta é duplamente possuída. Em vida, possuída por todos, sem distinção de classe social; na morte, seu corpo é possuído pelo verme, que o devora sofregamente. Como a prostituta, o verme não faz nenhuma distinção entre suas “vítimas”, sendo indiferente à classe social: ao verme cabe a tarefa de eliminar a carne, purificando-a para uma nova vida.
O eu lírico transfere para o verme o mesmo asco que tinha pela prostituta, porém parece comprazer-se com os detalhes de volúpia e horror que percebe no verme em sua devoração fúnebre, conforme se depreende das descrições que aparecem na última estrofe do poema: “Sentir a língua aluir-se-lhe na boca”/“E com a cabeça sem cabelos, oca...”/ “Na horrorosa avulsão da forma nívea”/ “Dizer ainda palavra de lascívia...”. O desdobramento erótico entre o homem e o verme aparece também no poema “O Deus-Verme” (p.209), cujo contraste é visível: o verme é “Filho da teleológica matéria...”, simultaneamente divino e humano, e não faz distinção entre classes: “Na superabundância ou na miséria”. O verme confirma seu caráter paradoxal ao representar a putrefação na simbologia da morte que é vida, pois ele é a força vital que nasce e prolifera da carne morta e apodrecida. Putrefazer-se significa, genericamente, de acordo com a etimologia da palavra, cair na podridão. Mas o simbolismo é o mesmo: ir da morte ao renascimento para uma outra vida. Essa vida nova, que se segue à putrefação, é concebida na maior parte dos casos como uma vida superior ou como uma vida sublimada. Ou melhor, indica a transmutação de uma existência material em uma existência ideal.
No poema, o verme “vive em contubérnio com a bactéria,”/ livre das roupas do antropomorfismo”. Esse poder que possui o verme é o que causa admiração ao eu poético. É como se o verme viabilizasse as atitudes “mórbidas” que não podem ser realizados pelo eu lírico. O verme “Almoça podridão...”; “Janta hidrópicos”. O realce de paradoxo se acentua no poema quando se enuncia que o verme “janta hidrópicos”, ao conferirmos o termo “hidrópico” que é aquele que, quanto mais água toma, mais tem sede. “Nada é mais seco que um hidrópico”.(Longino, 1996, p. 47). O homem que padece desse mal, (quanto mais bebe água, mais tem sede), parece ser um castigo por tão incomensurável delito. O eu lírico joga com as palavras criando essa figura paradoxal para revelar seu olhar inclemente frente aos atos humanos; nada mais é do que um eu que tenta desvelar as vicissitudes humanas pelo que a humanidade possui de mais decadente e degradante. No entanto, a idéia paradoxal que o verme representa é evidente: ele é o símbolo da vida que renasce da podridão e da morte.
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