Sinopse: Apresentar elementos acerca do papel e das perspectivas da língua portuguesa “em” e “de” Timor Leste, a mais nova nação integrante da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), é a direção que seguem as reflexões adiante.

 

Contra a anuência a ausência a desistência

Contra a Indonésia e a amnésia e a conivência

De um silêncio que é bênção do terror

Venham as sílabas da palavra resistência

Para dizer o nome de Timor.

(Manuel Alegre, “Balada para Xanana e d. Ximenes)

 

1. Preliminares

Situada entre o sudoeste asiático e o Pacífico sul, a 500 km da Austrália, Timor Leste foi colônia portuguesa desde o século XVI, esteve ocupada pelo Japão durante três anos, durante a Segunda Grande Guerra, foi explorada por australianos e cenário da invasão da Indonésia, num incurso que durou de 1975 a 1999.

            Durante duas décadas e meia, com raras oportunidades para empregar a língua portuguesa em quaisquer modalidades, o povo timorense lutou em defesa de seu território e de sua liberdade. São conhecidas as alusões quanto ao uso do português como língua de resistência, sendo citadas diversas inscrições em muros escritas em português, durante a época da resistência, muitas das quais ainda hoje são visíveis, como a que fotografamos em um muro no Distrito de Manatuto:

Na ponta de

minha baioneta

escrevei a história da minha libertação

 

 

 

 

 

 

 

 


                             Junho/2001                   Foto: Regina Brito

            Com a chegada da força de paz internacional e o início da Administração Transitória das Nações Unidas (UNTAET)[1], Timor Leste começou a sair de uma época em que falar português poderia ser sinônimo de morte. Nesse contexto, se no novo país tudo está em reconstrução – das casas à identidade do povo, da organização da Nação ao papel de cidadão – a reintrodução da língua portuguesa reveste-se de papel fundamental de resgate de valores sócio-histórico-culturais:

A opção política de natureza estratégica que Timor-Leste concretizou com a consagração constitucional do Português como língua oficial a par com a língua nacional, o tétum, reflecte a afirmação da nossa identidade pela diferença que se impôs ao mundo e, em particular, na nossa região onde, deve-se dizer, existem também similares e vínculos de carácter étnico e cultural, com os vizinhos mais próximos. Manter esta identidade é vital para consolidar a soberania nacional. (Xanana Gusmão[2])

 

         Em 2001, quando estivemos em Timor Leste, era comum ouvir de timorenses declarações de apego à língua portuguesa. Não foi por acaso que, por decisão do Congresso do Conselho Nacional de Resistência Timorense, em 29 de agosto de 2000, o português foi declarado língua oficial de Timor Loro Sae, nas palavras de Xanana Gusmão: Tendo em mente a nossa história, nós devemos fortalecer a nossa língua materna, o tétum, disseminar e aperfeiçoar o domínio da língua portuguesa e manter o ensino da língua Indonésia.

 

2. A situação lingüística

As dezenas de línguas originais do país pertencem à família das línguas austronésias (ou malaio-polinésicas) ou à família das línguas papuas (ou indo-pacíficas), diversidade lingüística que se explica principalmente pelo fato de Timor ter sido parte de rotas de migrações várias. Como língua integradora dessas línguas, fala-se o tétum, reconhecido oficialmente como língua nacional a partir de outubro de 1981. Essa língua apresenta-se de duas formas: como língua materna de algumas regiões e como forma veicular na generalidade do território. Contudo, antes mesmo da chegada dos portugueses, o tétum já era a língua franca, pois era falada pela tribo dos beloneses, a mais poderosa do lugar. Mais tarde, a adoção do tétum como língua oficial da Igreja Católica de Timor foi, em grande medida, responsável por essa rápida propagação, adoção e efetiva utilização pelos timorenses.

Convém lembrar que o modelo de colonização lusistana, em que se destacam o processo de miscigenação com os timorenses (que levou à assimilação de hábitos), e a conversão ao catolicismo, dentre outros aspectos, contribuíram para a incorporação natural de estruturas sintáticas e de muitos elementos lexicais portugueses às línguas locais.

Indiscutivelmente, a administração colonial privilegiava o português como língua de instrução, ensinada nas escolas (e, naturalmente, veiculando conteúdos da cultura lusa),  que se empregava na modalidade escrita e nas atividades culturais e administrativas. No entanto, isso não impedia que, em termos de comunicação espacial e entre falantes de línguas maternas diferentes, o tétum fosse usado nas situações cotidianas.

De modo geral, portanto, antes dos acontecimentos de 1974-75, a situação lingüística apresentava-se em três níveis: (1) o das línguas locais - veículos de comunicação nas diversas localidades, como o bunak, o kemak, o galole, etc; (2) o da língua veicular – o tétum, funcionando como elemento de integração e conhecida como “tétum praka”, variante do tétum terik gramaticalmente simplificada e mesclada com elementos do português; (3) o da língua administrativa – o português – única língua normalmente escrita, que também exercia uma função integradora, no tocante à camada dirigente e ao ambiente letrado. (cf. Thomaz, 2002: 140-4)

Diversamente do que ocorreu em muitos países na época de descolonização, em 1975, em Timor Leste observava-se uma certa unidade lingüística, garantida, como dissemos, pelo uso do tétum. Além disso, apesar de criticar o colonialismo salazarista, tanto a Fretilin (Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente) quanto a Apodeti (favorável à indexação pela Indonésia) continuaram a valorizar a língua portuguesa como elemento ancestral e integrado na cultura nacional  (Hull[3]: 2001: 37).

Durante o domínio indonésio, Timor Leste sofreu brutal repressão, como tortura e assassinatos, e exploração, como trabalho escravo e semi-escravo, tendo sido mortos cerca de 300 mil timorenses. Com a política de “destimorização” aplicada, incluiu-se uma nova forma lingüística, traduzida pela imposição da bahasa indonésia (uma variante do malaio) como língua do ensino e da administração, pela minimização do uso do tétum e pela perseguição da expressão em língua portuguesa.

Como resultado, atualmente, em termos lingüísticos, o país se apresenta como um intricado mosaico: além do tétum e das dezenas de outras línguas locais, os timorenses falam a bahasa indonésia e procuram se expressar em inglês e português. Estimativas[4] apontam que as crianças em fase pré-escolar falam tétum (repleto de palavras provenientes do português), os adolescentes e adultos jovens utilizam-se do malaio e a geração com mais de 40 anos fala (ou traz na memória) o português; complementarmente, as pesquisas revelam que o português é falado por 20% da população de 800 mil habitantes. Segundo dados da ONU[5], 70% da população de Timor Leste é analfabeta e apenas cerca de 15% da população fala o português[6].

Embora o tétum seja a língua de comunicação cotidiana, em algumas localidades, como, por exemplo, em Cova Lima (quase fronteira com a Indonésia, onde se fala também o bunak), a língua indonésia aparece com maior amplitude como língua veicular, conforme breve inquérito que realizamos in loco: de 30 timorenses, com idade entre 20 e 35 anos, 6 sabem se expressar (ainda que precariamente) em português, 11 em inglês, 28 em bahasa indonésia e 19 em tétum. Outros casos do uso concomitante de diferentes línguas: em Ainaro[7], onde se fala o nogo-nogo e o mambae - utilizada somente em situação familiar e em especial pelos mais idosos - e que pertence à mesma família do tétum;  em Baucau temos o uaimaa e o makassai; em Lautem, fala-se o falatuko, o makalere e o dagada; em Bobonaro, há o bunak e o kemak; em Manatuto, fala-se o galole; em Viqueque, aparece o naioti, o mediki e o oso-moko; no Oe-Cusse temos o baikenu e assim por diante.

De modo geral, o português[8] aparece, na modalidade oral, truncado, reticente, praticamente construído em uma base lexical, ou seja, os usuários parecem “traduzir” diretamente palavras e categorias do tétum para as possíveis correspondentes portuguesas, sem preocupação com uma sistematização da estrutura morfossintática.

No plano fonético, verifica-se dificuldade na articulação de alguns fonemas específicos do português, revelando interferência do substrato lingüístico local. As confusões mais recorrentes dão-se quanto aos fonemas do português que não encontram oposição fonológica no sistema do tétum ou em outra língua nacional (confusão de /p/, /f/ e /b/, redução das sibilantes e chiantes (/s/, /z/, /∫/ e /∑/). No tocante à escrita, os textos recolhidos e analisados revelam problemas ortográficos, em geral decorrentes de questões relativas à oralidade.

No plano morfológico, dificuldades na declinação dos pronomes, na conjugação verbal e na flexão nominal (notadamente a omissão da marca de plural) - praticamente inexistentes no tétum, nas demais línguas locais ou na bahasa indonésia. No plano sintático, são comuns as impropriedades ligadas à sintaxe da regência, à ordenação frástica, à concordância (também em decorrência de ser categoria inexistente nas demais línguas de Timor) além de substituição do infinitivo pelo presente em formas perifrásticas (como pode fala, por “pode falar”). No plano semântico, são perceptíveis problemas ligados ao desconhecimento dos significados (o que se deve a um domínio vocabular restrito) e à dificuldade de construção de seqüências coerentes.

3. Considerações Gerais

Falar em lusofonia representa uma busca de integração entre unidade/variedade, o reconhecimento de que são muitos os grupos humanos “proprietários” da Língua Portuguesa, assumindo a noção de diversidade cultural como aspecto inerente a esse conceito (Armando, 1994). Neste sentido, o fenômeno lingüístico integra-se à pratica social, à dinâmica comunicativa cotidiana, às necessidades discursivas da comunidade que partilha uma mesma realidade. Assim é que pensamos a reintrodução do português em Timor Leste, (re)construindo a variante do português de Timor Leste. Contudo, fazer projeções acerca do destino do português em/de Timor Leste está na dependência dos caminhos políticos a serem efetivamente percorridos pela nova nação. Se assim for, pode-se vislumbrar que o português reencontrará em Timor Leste o seu espaço como língua de cultura.

Finalizando, recorremos às palavras de Hull:

Se Timor-Leste deseja manter uma relação com o seu passado, deve manter o português. Se escolher outra via, um povo com uma longa memória tornar-se-á numa nação de amnésicos, e Timor-Leste sofrerá o mesmo destino que todos os países que, voltando as costas ao seu passado, têm privado os seus cidadãos do conhecimento das línguas que desempenharam um papel fulcral na gênese da cultura nacional. (Hull, 2001: 39)

 

Referências

 

BRITO, R.H.P. de (2002) “A língua adormecida: o caso Timor Leste”. In: Cadernos 9º.  Congresso Brasileiro de Língua Portuguesa. São Paulo, IP-PUC.

CARRASCALÃO, J. (2000) “Painel sobre a Lusofonia” – VIII Fórum da AICEP. www.aiecep.pt/versao_texto/noti_indi_2000-06_02.hrml [cap. 25/06/2001].

FORGANES, R. (2002) Queimado queimado, mas agora nosso! Timor: das cinzas à liberdade. São Paulo, Laborial Editorial.

HULL, G. (2001) Timór-Lorosa’e - Identidade, Lian no Polítika Edukasionál (Timor-Leste - Identidade, Língua e Polística Educacional). Lisboa, Instituto Camões.

THOMAZ, L. F. (2002) Babel Loro Sa’e. O problema lingüístico de Timor-Leste. Lisboa, Instituto Camões.

www.jornaldigital.com – [p. capt. 16/04/2001]

www.cplp.org/noticias/ccegc/di7.htm [p. cap. em 03/08/02].


[1] Lembremos, aqui, do brasileiro Sérgio Vieira de Mello (Alto Comissário para os Direitos Humanos da ONU), representante maior das Nações Unidas em Timor Leste durante o período de administração transitória. Pela excelência da administração do então território, Vieira de Mello foi enviado especial da ONU no Iraque no pós-guerra com os Estados Unidos. Foi morto em atentado no dia 19 de agosto de 2003, enquanto trabalhava no seu escritório, no prédio das Nações Unidas, em Bagdá.

[2] Alocução do Presidente Xanana Gusmão, proferida em Brasília, no dia 1 de agosto de 2002, durante a  IV Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. www.cplp.org/noticias/ccegc/di7.htm [p. cap. em 03/08/02].

[3] O lingüista australiano Geoffrey Hull é um dos maiores especialistas em tétum e línguas nativas do Timor, além de árduo defensor da oficialização da língua portuguesa em Timor-Leste.

[4] Jornal Digital – Notícias dos Países de Língua Portuguesa (www.jornaldigital.com) – [p. capt. 16/04/2001].

[5] Escrevendo as páginas do futuro. Relatório de quatro anos de atividade. Programa Alfabetização Solidária. Jan/1997 – dez/2000. DF, p. 40.

[6] Conforme atesta Thomaz (2002: 90): Se aos alfabetizados que falam, lêem e escrevem o português juntarmos os analfabetos que melhor ou pior o falam, obteremos, quando muito, uma percentagem de 15 a 20 % da população total

[7] Cabe aqui um registro: em visita à escola primária de Ainaro, mantida pela Igreja Católica, encontramos  4 salas, com uma média de 40 alunos por classe, com faixa etária variando entre 4 e 10 anos, num espaço físico quase nunca superior a  6 m2 .  As crianças recebem noções de Língua Portuguesa utilizando material enviado por Portugal. O acesso às salas dos alunos maiores de 10 anos não foi possível no momento. Contudo, pudemos conversar com alguns desses alunos e apuramos que freqüentam aulas de língua portuguesa, tétum, bahasa indonésia e inglês. A bahasa indonésia, língua na qual foram alfabetizados, é utilizada como língua-instrumento para o ensino sistematizado do tétum (trabalhado apenas oralmente) e para a chamada "reintrodução" ou “revitalização” do português. Procura-se falar o inglês por toda a parte, por indivíduos de diferentes faixas etárias, mas em especial pelos jovens, seduzidos pela presença maciça dos estrangeiros, detentores de alto poder aquisitivo e símbolos de melhor  condição de vida.

[8] A descrição apresentada leva em conta falantes do português com idade superior aos 35 anos e é resultado parcial de análises que realizamos como lingüista do “Alfabetização Comunitária em Timor-Leste” (Projeto brasileiro conhecido como “Alfabetização Solidária”). Tal participação levou-nos a um levantamento bibliográfico e possibilitou-nos a realização de pesquisa in loco (junho/2001 – seleção de alfabetizadores e agosto/2001 – curso de capacitação). Gravamos entrevistas com candidatos a alfabetizadores e com a população em geral (de diferentes faixas etárias, profissões e sexo). Analisamos, ainda, textos produzidos pelos candidatos, no processo seletivo, e durante a capacitação, pelos alfabetizadores, além de outros elementos coletados (letras de músicas, receitas culinárias, jornais, anúncios publicitários, fotos com inscrições e cartazes).