Introdução

 

            Este trabalho tem por objetivo apresentar aspectos preliminares de uma pesquisa interessada nos mecanismos de interferência da fala na produção textual escrita de alunos da 3ª série do ensino fundamental, partindo da análise de textos produzidos em classe.  Parte-se do princípio que esses mecanismos permeiam as produções textuais dos alunos sendo, portanto, impossível desvincular totalmente a fala da escrita nessa fase.  Espera-se que os resultados venham contribuir para uma reflexão dos professores de língua materna, no sentido de fazê-los despertar para a diferença entre erro ortográfico e transcrição fonética nesse tipo de texto, passando a observar a oralidade como essencial na construção do texto escrito, favorecendo ao aluno o domínio da língua escrita padrão exigida pela escola, sem desrespeitar seus direitos enquanto falantes da língua.

Para trabalhar com textos infantis e observar que aspectos da oralidade que refletem na escrita da criança nessa fase, torna-se necessário o estudo de algumas propostas sobre a oralidade e sua influência na escrita, uma reflexão sobre o ensino/aprendizagem da língua materna e, principalmente, na maneira como a língua é ensinada na escola. Alguns autores como CASTILHO, 1998; POSSENTI, 1996; SLOBIN, 1980; FURTADO DA CUNHA, 2002; MARCUSCHI, 2001; GERALDI, 1984; CAGLIARI, 1995; MOITA LOPES (1996); entre outros, trabalham nesta linha de pesquisa e apresentam propostas bem delineadas para enfrentamento do problema, buscando uma nova postura para o ensino-aprendizagem da língua portuguesa.

Como ao falar e ao escrever utilizamos os gêneros, torna-se necessário um estudo dos gêneros do discurso (Bakhtin, 1992) para que o professor possa entender melhor a relação com seu aluno na sala de aula de língua materna e proporcionar-lhe o domínio dos gêneros mais usados na vida quotidiana. Através desse domínio o aluno compreenderá as mudanças que ocorrem durante a interação com o outro (ao falar e escrever seus textos) porque escrever e falar de uma forma e não de outra em momentos variados na sua vida quotidiana.

 

Estratégias de argumentação

 

Buscar um significado mais profícuo para a relação da oralidade e sua influência na escrita do aluno de 3ª série do ensino fundamental pressupõe o conhecimento dos trabalhos de alguns estudos na área de lingüística e lingüística aplicada, além de questionamentos sobre a utilização dos mecanismos da fala para a escrita.  A resposta para muitas destas questões exige uma série de reflexões, segundo CAGLIARI (1995) a consciência que a criança tem da linguagem oral se deturpa quando ela entra na escola, uma vez que a escola desconhece esse mecanismo de interferência da fala na escrita. A escola exige tanto do aluno nessa fase, para que o mesmo utilize a língua padrão exigida pela escola (que na realidade não é a mesma língua falada no seu dia a dia) que ele corre o risco de não ser aceito na comunidade lingüística em que vive, portanto, o professor tem que mostrar claramente ao aluno, a diferença entre língua falada e língua escrita nos mais diversos usos, para que ele perceba que a maneira para falar ou escrever de uma forma ou de outra vai depender do contexto no qual ele esteja inserido. Oralidade e escrita são consideradas como parte de um processo indissociável, mas a maneira imprópria como a escola vê a questão da fala, sem valoriza-la nas produções textuais escritas dos alunos nas séries iniciais do ensino fundamental, traz conseqüências graves para o futuro destes, que terão muita dificuldade em entender a escrita da maneira da escola, tornando-se fortes candidatos à evasão escolar. Ao mesmo tempo em que atribui este fracasso à ausência de conhecimentos lingüísticos da escola CAGLIARI (1995, p.31) mostra que  “Se a escola distinguisse claramente os problemas de fala dos problemas de escrita, veria essas escritas como escrita de fala, e feitas com uma propriedade fonética tão grande que chega a ser comovente a consciência que as crianças têm do modo como falam”.           Dessa maneira, faz-se necessário não corrigir tanto a criança nessa fase, mas dar-lhe tempo para que adquira um conhecimento mais sólido sobre a complexidade gramatical da língua. Cabe ao professor propiciar esse acesso à norma culta exigida pela escola, sem desrespeitar a identidade da criança.  Portanto, é nesse particular que se enfatizará o conhecimento do professor, pois ele deve antes de tudo, revestir-se de bases teóricas, cujo repertório de leitura norteará o seu desempenho com os alunos.

Considerando que as crianças sentem-se desmotivadas nos primeiros anos de escolarização, pois, deparam-se com uma escola totalmente fora de sua realidade lingüística, supervalorizando a língua culta em detrimento de sua variável social, pretende-se através de um estudo mais aprofundado demonstrar que a transcrição fonética que prevalece na maioria dos textos infantis não pode ser considerada como erro ortográfico, pois, estas transcrições fonéticas têm explicação na Lingüística Aplicada, que é uma área de investigação que se preocupa com a resolução de problemas de uso da linguagem como explica MOITA LOPES (1996). Não podemos desvincular o texto escrito da linguagem de quem o escreveu. O embasamento teórico desta afirmação, toma por base os estudos de MUSSALIM e BENTES-Orgs. (2001) que afirmam que os falantes adquirem as variedades lingüísticas que são próprias de sua região, de sua classe social, etc. Portanto, são estas variedades lingüísticas que são passadas para as produções escritas, sendo impossível desvincular totalmente a fala da escrita.

É preocupante quando os professores da língua materna corrigem como erro ortográfico os traços da oralidade que são passados para a escrita dos alunos no início da escolarização, pois estes erros fazem parte do processo natural na construção da escrita.  MARCUSCHI (1993) propõe que para se estudar as relações entre fala e escrita deve-se respeitar o contínuo lingüístico, porque segundo o autor não há dois sistemas lingüísticos na mesma língua, um para a fala e outro para a escrita, enfatizando ainda que nos primeiros anos de escolarização a fala vai ter uma grande influência na escrita. No entanto, nas escolas em geral, diferentes tipos de documentos escritos são apresentados as crianças sem que nenhuma ênfase seja dada à oralidade e sua influência na produção textual.  No ensino de língua materna, deve-se levar em consideração a problemática do aluno e criar maneiras para facilitar seu acesso ao domínio da língua padrão exigida pela escola, sem que isto venha a prejudicar seu desempenho lingüístico e sua criatividade, pois, com a evolução do processo de escolarização, as crianças começam a se apropriar dos aspectos gramaticais da língua que irão influenciar sobre a fala, havendo assim, uma relação mútua entre fala e escrita.  RODRIGUES (1994) apresenta propostas muitas bem delineadas para enfrentamento do problema da oralidade e sua influência na escrita, mostrando que a produção textual escrita significa para muitos alunos um obstáculo no processo de aquisição da língua padrão, uma vez que a língua falada não é trabalhada pela escola, e menos ainda sua presença na escrita dos alunos.

O professor que está atuando na sala de aula de língua materna precisa conhecer os gêneros para situar seu fazer pedagógico. Segundo Bakhtin (1992, p.279), “A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana”. Todas estas esferas, por mais variadas que sejam, estão de qualquer forma relacionadas com a utilização da língua.  Assim, ao estudar qualquer forma de enunciado (oral ou escrito) temos que refletir sobre as condições específicas de qualquer das esferas da atividade humana porque todos os enunciados produzidos estão intimamente ligados ao agir humano, possuindo seu conteúdo temático, seu estilo verbal e sua própria construção composicional que englobam (conteúdo temático, estilo e construção composicional) transformando-se no todo do enunciado.  Estes tipos relativamente estáveis de enunciados que se encontram no interior de cada esfera da atividade humana são para Bakhtin os gêneros do discurso. Portanto, tudo o que é falado ou escrito comporta um repertório variado de gêneros do discurso. (Bakhtin, 1992).  Há uma heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos) que incluem: o diálogo cotidiano, o relato familiar, a carta, a ordem militar padronizada, as declarações públicas, etc. E com estes gêneros relacionaremos também as variadas formas de exposição científica e todos os modos literários.  O autor faz uma distinção entre gêneros de discurso primário (simples) e gêneros de discurso secundário (complexo) mostrando a interdependência entre um gênero e outro enfatizando que durante o processo de sua formação, os gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários sendo os gêneros secundários bem mais elaborados.  A distinção entre estes gêneros tem grande importância na teoria bakhtiniana.

Gêneros primários: os tipos do diálogo oral, linguagem das reuniões sociais, dos círculos, gêneros do cotidiano, linguagem sociopolítica, filosófica, conversa familiar etc.

Gêneros secundários: o romance, o teatro, os gêneros literários, o discurso científico, o discurso ideológico etc.

Os gêneros primários transformam-se dentro dos secundários e adquirem uma característica particular, perdendo sua relação imediata com a realidade dos enunciados alheios, inseridas no romance, na réplica do diálogo cotidiano ou na carta pessoal, conservando sua forma e seu significado apenas no plano do conteúdo do romance concebido como fenômeno da vida literário-artística. O que diferencia o romance dos outros fenômenos da mesma natureza e ele ser um enunciado secundário complexo.  É a inter-relação entre estes tipos de gêneros que esclarece a natureza do enunciado, como também o problema da relação mútua entre língua, ideologias e visões de mundo.  Um estudo mais aprofundado da natureza do enunciado e da diversidade dos gêneros nas diferentes esferas da atividade humana é de fundamental importância tanto na área da lingüística quanto na área da filologia.  O autor destaca a relevância do estudo dos gêneros “Uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos vários tipos de enunciados em particular (primário e secundário), ou seja, dos diversos gêneros do discurso, é indispensável para qualquer estudo, seja qual for a sua orientação específica”.(p.282).  Portanto, ao trabalhar com textos infantis, dentro de um contexto lingüístico, não podemos ignorar a natureza do enunciado, dos gêneros do discurso e sua influência em todas as esferas da atividade humana, pois, estas particularidades norteiam qualquer estudo na área da lingüística, uma vez que a língua penetra na vida através dos enunciados concretos e vice-versa.           A língua escrita é marcada pelos gêneros secundários e primários, e sua ampliação incorporada nas diversas camadas da língua popular acarreta em todos os gêneros sejam eles literários, científicos, ideológicos, etc. A aplicação de procedimentos na organização e conclusão do todo verbal e uma modificação do lugar que será reservado ao ouvinte, o que leva a uma reestruturação dos gêneros do discurso.  Em nossos diálogos espontâneos, na nossa comunicação diária com o outro, nas nossas mais diferentes atividades, envolvendo a fala ou a escrita, transitamos entre gêneros do discurso, pois é nesta rede de interações sociais que eles surgem.  Para fazer a definição de um estilo em geral e de um estilo individual é necessário um estudo aprofundado da natureza do enunciado e da diversidade dos gêneros do discurso. O vínculo entre o estilo e o gênero mostra-se claramente quando se trata do problema de um estilo lingüístico ou funcional. Bakhtin mostra a necessidade de um estudo dos estilos lingüísticos:

“Porém para ser correto e produtivo, este estudo sempre deve partir do fato de que os estilos da língua pertencem por natureza ao gênero e deve basear-se no estudo prévio dos gêneros em sua diversidade. Até agora, a estilística da língua ignorou tais fundamentos, daí sua debilidade. Não existe uma classificação comumente reconhecida dos estilos lingüísticos”.  (p. 284)

Fala da ausência de classificação dos gêneros do discurso por esferas de atividade humana e da ausência de diferenciação entre os gêneros primários e secundários. Estes gêneros primários e secundários se encontram num estado de contínua mudança, dentro do sistema da língua (oral/escrita) e refletem toda e qualquer mudança na vida social, englobando a história da sociedade e a história da língua.  O estudo do enunciado e dos gêneros do discurso tem uma importância fundamental para superar as noções simplificadas do fluxo verbal, da comunicação, etc. O autor estuda mais profundamente  o enunciado, em sua qualidade de unidade real da comunicação verbal. De início Bakhtin critica a tradição dos estudos lingüísticos por colocar a função comunicativa da linguagem em segundo plano, privilegiando a função formadora da língua sobre o pensamento, independente da comunicação. Mostra que a escola de Vossler coloca a função dita expressiva para o primeiro plano, fazendo referência as diferentes visões que os teóricos introduzem nesta função (comunicativa da linguagem), enfatizando que ela resume-se à expressão do universo individual do locutor e que a essência da língua resume-se à criatividade espiritual do indivíduo. Segundo Bahktin “É óbvio que a coletividade lingüística, a multiplicidade dos locutores são fatores que não podem ser ignorados quando se trata da língua, mas esse aspecto não é necessário ou determinante quando se trata de definir a natureza da língua em sua essência”. (p.290) Coletividade lingüística é vista aqui como uma espécie de personalidade coletiva.  Do ponto de vista do autor, a fala só existe na forma concreta dos enunciados de um indivíduo. Preocupa-se em mostrar que o discurso se molda sempre à forma do enunciado e que cada enunciado pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma. Apresenta como característica estrutural dos enunciados fronteiras claramente delimitadas. Estas fronteiras do enunciado concreto são determinadas pela alternância dos sujeitos falantes ou pela alternância dos locutores e são compreendidas como uma unidade da comunicação verbal.  Todo enunciado para Bakhtin comporta um começo absoluto e um fim absoluto, ele mostra que antes do início de qualquer enunciado há os enunciados dos outros e depois do final de cada enunciado há os enunciados-respostas dos outros. Apresenta o enunciado como uma unidade real estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes, sendo essa alternância dos sujeitos que traça as fronteiras entre os enunciados nas mais diversas esferas da atividade humana, conforme as mais diversas atribuições da língua e as mais variadas situações da comunicação.

            Castilho (1998) propõe a integração da língua falada em nossas práticas escolares, pois ela assume um papel de destaque no processo de ensino-aprendizagem. O autor prossegue argumentando que a linguagem é um objeto cientificamente analisável e apresenta três modelos teóricos de interpretação da linguagem humana: língua como atividade mental, língua como estrutura e língua como atividade social. (p. 10):

1.      Teoria da língua como atividade mental: considera a língua como uma capacidade inata do homem, que lhe permite reconhecer as sentenças, atribuindo-lhes uma interpretação semântica ou produzir um número infinito de sentenças, atribuindo-lhes uma representação fonológica.  Uma gramática que assim entenda a linguagem será uma gramática implícita cujo objetivo principal será explicar como as pessoas adquirem uma língua, como elas produzem e interpretam essa língua e como percebem que o interlocutor fala a sua ou uma outra língua.

2.      Teoria da língua como estrutura: postula que as diferentes línguas naturais dispõem de um sistema organizado em níveis que podem ser: fonológico, gramatical e discursivo. 

3.      Teoria da língua como atividade social: de acordo com essa teoria a língua é uma atividade social e é através dela que veiculamos as informações, externamos nossos sentimentos e agimos sobre o outro.  A língua é vista como um conjunto de usos concretos, envolvendo sempre um locutor e um interlocutor que interagem a propósito  de um tópico conversacional previamente negociado.

Resumindo, o autor enfatiza que as duas primeiras teorias se ocupam de enunciados, para cuja apreensão a Sintaxe assume uma grande autonomia em relação à Semântica e a Pragmática.  A terceira teoria, língua como atividade social, postula a língua como um fenômeno funcionalmente heterogêneo, representável por meio de regras variáveis, socialmente motivadas.  A língua é concebida nesta teoria como enunciação, onde a Semântica e a Pragmática se constituem um ponto de partida, sendo a Sintaxe um ponto de chegada.  Nas palavras de Castilho (1998, p.12) “A Lingüística tem oscilado entre esses dois pólos, ora destacando a língua como enunciado – valorizando-se as gramáticas formais, estruturais, gerativas -, ora destacando a língua como uma enunciação – valorizando-se as gramáticas funcionais”.

A indagação lingüística atual tem um entendimento mais rico da linguagem, postulada como um conjunto de usos, cujas condições de produção são de fundamental importância no momento em que se analisa seu produto. A linguagem assim concebida resultou na constituição de uma nova área de estudos, a Pragmática, que tem examinado temas importantes como: os atos de fala, a competência comunicativa conversacional, as pressuposições e as inferências que cercam um ato de fala, a linguagem como ação e argumentação, etc.

A proposta do autor é formulada nos seguintes termos: que se comece por uma observação mais intuitiva da língua como enunciação, para depois desembocar numa observação mais técnica da língua como um enunciado, enriquecendo-se assim a percepção do fenômeno lingüístico mostrando a necessidade de um maior aprofundamento por parte dos professores, que precisarão capacitar-se dos novos temas sobre os estudos da linguagem para melhor compreender a língua como enunciado e a língua como enunciação, visto que esse entendimento permite encarar com mais segurança os problemas lingüísticos suscitados por uma sociedade em mudança.

Assim, o trabalho do professor deve ser subsidiado por uma teoria como a teoria da língua como atividade social, que vê a língua como forma de interação.

Os estudos da língua falada – que são uma das conseqüências da Pragmática – poderão ajudar no aparelhamento científico do professor, de acordo com Castilho (p.13). Não se acredita que a função da escola seja apenas ensinar a língua escrita, a pretexto de que o aluno já aprendeu a língua falada em casa; se os professores de língua portuguesa se concentrassem mais na reflexão sobre a língua que falamos, logo descobririam a importância da língua falada, mesmo para a aquisição da língua escrita.

            Novas teorias apontam para o ensino da língua Portuguesa pautada em uma reflexão sobre a língua como atividade, não apenas como estrutura. Muitas propostas que enriqueceriam o ensino da língua materna são lançadas, mas estão longe de chegar a quem realmente interessa, que são os professores que estão atuando hoje no ensino da língua portuguesa, que realmente precisam desta contribuição para inovar e motivar seus alunos.

            Possenti (1996, p.33) apresenta dois fatores para uma visão mais adequada do fenômeno da linguagem:

·        Todas as línguas variam: não existe nenhuma sociedade ou comunidade na qual todos falem da mesma maneira.

·        A variação lingüística é o reflexo da variação social: como em todas as sociedades existe diferença de status ou de papel entre indivíduos ou grupos, estas diferenças se refletem na língua.

Segundo o autor não existem línguas imutáveis, elas mudam sempre, por exemplo, o português veio do latim e o latim de onde veio? Se as línguas mudam, fica claro porque os falantes desconhecem certas formas lingüísticas: estas formas não são mais usadas quando eles se tornam falantes.  Se não são usadas, não são ouvidas nem faladas, por isso não podem ser aprendidas.

      Enfatiza a necessidade de não haver preconceito quanto à utilização da formas lingüísticas mais recentes, tratando-se de aceitar que se utilizem nos textos escritos formas lingüísticas mais informais, (o que não quer dizer aceitar todas), que,em geral, consideramos aceitáveis apenas na fala. Nas palavras do autor “A razão é que estas formas, na verdade, são hoje as corretas, são elas que constituem a língua padrão, porque já são faladas e escritas pelas pessoas cultas do país – coisa que eles eventualmente não se dão conta”(Possenti, 1996, p. 41).

            Como afirma Furtado da Cunha (2002, p. 62) “O exame da prática educativa em nossas escolas revela que o ensino de português continua muito atrelado à orientação normativo-prescritiva, o que acentua ainda mais a distância que separa a língua escrita da língua que utilizamos em nossa comunicação diária.” Enfatiza que há uma supervalorização da língua escrita em detrimento da língua falada, com o risco de desmotivar os alunos e deixá-los na dúvida se o português ensinado na escola é o mesmo que eles usam diariamente nas suas interações cotidianas.

            A autora apresenta a Lingüística Funcional como uma alternativa para orientar o trabalho do professor porque a perspectiva funcional enfatiza o discurso e as funções da língua no uso diário.  Propõe que seja deixada de lado a atitude preconceituosa contra as formas lingüísticas mais informais, inclusive na escrita, uma vez que elas são usadas tanto na fala quanto na escrita pelas camadas mais cultas da comunidade lingüística.  Sugere que os professores de língua materna levem em conta o conhecimento lingüístico do aluno - a conversação - para atingir a norma culta ou o dialeto padrão, através de uma abordagem funcionalista da língua.

 

Elementos de análise

Para concretização deste trabalho foram coletados 60 textos e sorteados para serem analisados 20. Os alunos pertencentes a uma faixa etária de 9 a 10 anos, dos sexos masculino e feminino, de uma escola pública sendo alunos da 3ª série do ensino fundamental. As marcas da oralidade na escrita foram classificadas a partir de uma adaptação de CAGLIARI (1997, p. 138-145) tais como transcrição fonética, uso indevido de letras, hipercorreção, modificação da estrutura segmental das palavras, juntura intervocabular e segmentação, forma morfológica diferente, uso indevido de letras maiúsculas e minúsculas, problemas sintáticos e repetição.

Apenas um texto entrará como exemplo, visto tratar-se apenas de um resumo.

Texto nº 20 (copiado do original do aluno) grifo meu

01 A cachueira encantada  ( título)

 

02   Era uma vez uma cachueira muito bonita

03   e alta, que atraia todos os tipos de animais para

04   perto dela.

05   A água daquela cachueira era pura e cristalina e

06   todos os animais do bosque bebiam água lá,

07   mas mesmo assim a água daquela cachueira  não

08   acabava.

09   A cachueira encantada era chamada assim

10    por qausa da sua belesa, porque a água nuca acabava

11    e porque de noite as águas dela brilavam e

12    iluminavam  todo o bosque.

13    Mas no outro bosque avia bichos muto mals e

14    perversos que viviam atrás de poluir a água pura e

15    cristalina da cachueira.

16    um  dia 3 animais daquele bosque do mal foram

17    no bosque da cachueira encantada levando 3 baldes

18    de lixo para despejar na cachueira encantada e

19    quando eles estavam perto da cachueira encantada

20    todos os animais do bosque pularam em cima

21    deles e amararam eles com umas cordas bem groças

22    e nigem nunca mais   encomodou a cachueira

23    encantada.

            A repetição aparece de modo muito freqüente, pois como podemos observar neste texto, a continuidade temática foi mantida na produção textual escrita da criança a partir de uma palavra do próprio título do texto.

            Constatou-se que a palavra cachueira (cachoeira) é repetida dez vezes como uma forma de dar continuidade ao texto, refletindo o esforço da criança no sentido de desenvolver um tema, numa fase em que ela não adquiriu um vocabulário mais extenso para enriquecê-lo com elementos coesivos. Dos vinte textos analisados treze deles apresentaram repetição de itens lexicais de forma bastante acentuada.

 

Transcrição fonética

Uso indevido de letras

Forma morfológica diferente

Repetição

cachueira (cachoeira)L1

belesa  (beleza) L 10

nuca (nunca) L 10

Cachueira (cachoeira) L 1, 2, 5, 7, 9, 15, 17, 18, 19 e 22

causa (causa) L 10

 

muto (muito) L 13

 

brilavam (brilhavam) L 11

 

mals (maus) L 13

 

avia (havia) L 21

 

 

 

amararam (amarraram) L 21

 

 

 

nigem (ninguém) L 22

 

 

 

encomodou (incomodou) L 22

 

 

 

 

Considerações finais

 

            Na fase inicial da pesquisa, tinha-se a mera percepção de que os textos dos alunos eram permeados de traços da oralidade.  No decorrer da análise é que se revelou a riqueza de detalhes de que são portadores os textos infantis e quanta influencia tem a oralidade na escrita nessa fase. De acordo com a fundamentação teórica que apóia esta pesquisa, as transcrições fonéticas classificam-se como um processo normal na fase de aquisição da escrita, pois, isso se passa numa idade em que as crianças não possuem ainda discernimento para empregar regras gramaticais corretamente. Portanto, sendo a escola o lugar onde o aluno tem contato com os mais diversos tipos de linguagem oral e escrita, pergunta-se: a quem cabe o papel de proporcionar ao aluno um conhecimento dos vários tipos de gêneros? Uma vez que, o aluno não domina este tipo de conhecimento? Espera-se que através da interação do professor com seu aluno na sala de aula ele seja capaz de perceber sua maneira de falar e saber que influência tem essa fala nos textos escritos, assim, a concepção que o professor tem da língua irá influenciar as ações futuras de seus alunos, para isso, deve haver uma continuidade do que o aluno traz de seu meio  e o que ele vai aprender na escola.

 

Referências

 

BAKHTIN, Mikhail. “Os gêneros do discurso” in Estética da Criação Verbal. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1992.  p. 278-326.

CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e lingüística. 8. ed. São Paulo, SP: Scipione, 1995. 189 p.

CASTILHO, Ataliba T. de. A língua falada no ensino de português. São Paulo: Contexto, 1998.

FURTADO DA CUNHA, M. A. Contribuições da lingüística funcional ao ensino de português In. BRITO, C. M. C.; TEIXEIRA, E. R. (Org.). Aquisição e ensino-aprendizagem do português. Belém: EDUFPA, 2002. p. 61-80.

GEBARA, Éster, ROMUALDO, Jonas de Araújo, ALKAMIN, Tânia M. A lingüística e o ensino da língua materna. In GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula: Leitura & produção. 2. ed. cascavel: Assoeste, 1984. p. 25-29.

GERALDI, João Wanderley.  Concepções de linguagem e ensino de português In: GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula: Leitura & produção. 2. ed. cascavel: Assoeste, 1984. p. 41-48.

MARCUSCHI, Luiz Antonio.  Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001. 133 p.

______.  O tratamento da oralidade no ensino de língua.  44ª Reunião anual da SBPC, São Paulo, SP: 1993. 150.p. (mimeografado)

MOITA LOPES, Luis Paulo da. Oficina de lingüística aplicada: A natureza social e educacional dos processos de ensino/aprendizagem de línguas. Campinas, SP: Mercado de letras, 1996. p. 22-23.

MUSSALIM, F. BENTES (orgs.). Introdução à lingüística. domínios e fronteiras.  2. ed. vol. I.  São Paulo: Cortez, 2001. p. 34

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: ALB/Mercado de letras, 1996. (Coleção Leituras do Brasil).

RODRIGUES, Maria das Graças Soares. Algumas marcas da oralidade na produção textual escrita de alunos de 4ª e 5ª séries.  Recife, PE: UFRN, 1994. 142 p. (Tese, Mestrado em Lingüística).