Este trabalho tem por objetivo apresentar aspectos preliminares de uma pesquisa interessada nos mecanismos de interferência da fala na produção textual escrita de alunos da 3ª série do ensino fundamental, partindo da análise de textos produzidos em classe. Parte-se do princípio que esses mecanismos permeiam as produções textuais dos alunos sendo, portanto, impossível desvincular totalmente a fala da escrita nessa fase. Espera-se que os resultados venham contribuir para uma reflexão dos professores de língua materna, no sentido de fazê-los despertar para a diferença entre erro ortográfico e transcrição fonética nesse tipo de texto, passando a observar a oralidade como essencial na construção do texto escrito, favorecendo ao aluno o domínio da língua escrita padrão exigida pela escola, sem desrespeitar seus direitos enquanto falantes da língua.
Para
trabalhar com textos infantis e observar que aspectos da oralidade que refletem
na escrita da criança nessa fase, torna-se necessário o estudo de algumas
propostas sobre a oralidade e sua influência na escrita, uma reflexão sobre o
ensino/aprendizagem da língua materna e, principalmente, na maneira como a língua
é ensinada na escola. Alguns autores como CASTILHO, 1998; POSSENTI, 1996;
SLOBIN, 1980; FURTADO DA CUNHA, 2002; MARCUSCHI, 2001; GERALDI, 1984; CAGLIARI,
1995; MOITA LOPES (1996); entre outros, trabalham nesta linha de pesquisa e
apresentam propostas bem delineadas para enfrentamento do problema, buscando uma
nova postura para o ensino-aprendizagem da língua portuguesa.
Como
ao falar e ao escrever utilizamos os gêneros, torna-se necessário um estudo
dos gêneros do discurso (Bakhtin, 1992) para que o professor possa entender
melhor a relação com seu aluno na sala de aula de língua materna e
proporcionar-lhe o domínio dos gêneros mais usados na vida quotidiana. Através
desse domínio o aluno compreenderá as mudanças que ocorrem durante a interação
com o outro (ao falar e escrever seus textos) porque escrever e falar de uma
forma e não de outra em momentos variados na sua vida quotidiana.
Buscar
um significado mais profícuo para a relação da oralidade e sua influência na
escrita do aluno de 3ª série do ensino fundamental pressupõe o conhecimento
dos trabalhos de alguns estudos na área de lingüística e lingüística
aplicada, além de questionamentos sobre a utilização dos mecanismos da fala
para a escrita. A resposta para
muitas destas questões exige uma série de reflexões, segundo CAGLIARI (1995)
a consciência que a criança tem da linguagem oral se deturpa quando ela entra
na escola, uma vez que a escola desconhece esse mecanismo de interferência da
fala na escrita. A escola exige tanto do aluno nessa fase, para que o mesmo
utilize a língua padrão exigida pela escola (que na realidade não é a mesma
língua falada no seu dia a dia) que ele corre o risco de não ser aceito na
comunidade lingüística em que vive, portanto, o professor tem que mostrar
claramente ao aluno, a diferença entre língua falada e língua escrita nos
mais diversos usos, para que ele perceba que a maneira para falar ou escrever de
uma forma ou de outra vai depender do contexto no qual ele esteja inserido.
Oralidade e escrita são consideradas como parte de um processo indissociável,
mas a maneira imprópria como a escola vê a questão da fala, sem valoriza-la
nas produções textuais escritas dos alunos nas séries iniciais do ensino
fundamental, traz conseqüências graves para o futuro destes, que terão muita
dificuldade em entender a escrita da maneira da escola, tornando-se fortes
candidatos à evasão escolar. Ao mesmo tempo em que atribui este fracasso à
ausência de conhecimentos lingüísticos da escola CAGLIARI (1995, p.31) mostra
que “Se a escola distinguisse
claramente os problemas de fala dos problemas de escrita, veria essas escritas
como escrita de fala, e feitas com uma propriedade fonética tão grande que
chega a ser comovente a consciência que as crianças têm do modo como
falam”.
Dessa maneira, faz-se necessário não corrigir tanto a criança nessa
fase, mas dar-lhe tempo para que adquira um conhecimento mais sólido sobre a
complexidade gramatical da língua. Cabe ao professor propiciar esse acesso à
norma culta exigida pela escola, sem desrespeitar a identidade da criança. Portanto, é nesse particular que se enfatizará o
conhecimento do professor, pois ele deve antes de tudo, revestir-se de bases teóricas,
cujo repertório de leitura norteará o seu desempenho com os alunos.
Considerando
que as crianças sentem-se desmotivadas nos primeiros anos de escolarização,
pois, deparam-se com uma escola totalmente fora de sua realidade lingüística,
supervalorizando a língua culta em detrimento de sua variável social,
pretende-se através de um estudo mais aprofundado demonstrar que a transcrição
fonética que prevalece na maioria dos textos infantis não pode ser considerada
como erro ortográfico, pois, estas transcrições fonéticas têm explicação
na Lingüística Aplicada, que é uma área de investigação que se preocupa
com a resolução de problemas de uso da linguagem como explica MOITA LOPES
(1996). Não podemos desvincular o texto escrito da linguagem de quem o
escreveu. O embasamento teórico desta afirmação, toma por base os estudos de
MUSSALIM e BENTES-Orgs. (2001) que afirmam que os falantes adquirem as
variedades lingüísticas que são próprias de sua região, de sua classe
social, etc. Portanto, são estas variedades lingüísticas que são passadas
para as produções escritas, sendo impossível desvincular totalmente a fala da
escrita.
É
preocupante quando os professores da língua materna corrigem como erro ortográfico
os traços da oralidade que são passados para a escrita dos alunos no início
da escolarização, pois estes erros fazem parte do processo natural na construção
da escrita. MARCUSCHI (1993) propõe que para se estudar as relações
entre fala e escrita deve-se respeitar o contínuo lingüístico, porque segundo
o autor não há dois sistemas lingüísticos na mesma língua, um para a fala e
outro para a escrita, enfatizando ainda que nos primeiros anos de escolarização
a fala vai ter uma grande influência na escrita. No entanto, nas escolas em
geral, diferentes tipos de documentos escritos são apresentados as crianças
sem que nenhuma ênfase seja dada à oralidade e sua influência na produção
textual. No ensino de língua
materna, deve-se levar em consideração a problemática do aluno e criar
maneiras para facilitar seu acesso ao domínio da língua padrão exigida pela
escola, sem que isto venha a prejudicar seu desempenho lingüístico e sua
criatividade, pois, com a evolução do processo de escolarização, as crianças
começam a se apropriar dos aspectos gramaticais da língua que irão
influenciar sobre a fala, havendo assim, uma relação mútua entre fala e
escrita. RODRIGUES (1994) apresenta
propostas muitas bem delineadas para enfrentamento do problema da oralidade e
sua influência na escrita, mostrando que a produção textual escrita significa
para muitos alunos um obstáculo no processo de aquisição da língua padrão,
uma vez que a língua falada não é trabalhada pela escola, e menos ainda sua
presença na escrita dos alunos.
O
professor que está atuando na sala de aula de língua materna precisa conhecer
os gêneros para situar seu fazer pedagógico. Segundo Bakhtin (1992, p.279),
“A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e
escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera
da atividade humana”. Todas estas esferas, por mais variadas que sejam,
estão de qualquer forma relacionadas com a utilização da língua.
Assim, ao estudar qualquer forma de enunciado (oral ou escrito) temos que
refletir sobre as condições específicas de qualquer das esferas da atividade
humana porque todos os enunciados produzidos estão intimamente ligados ao agir
humano, possuindo seu conteúdo temático, seu estilo verbal e sua própria
construção composicional que englobam (conteúdo temático, estilo e construção
composicional) transformando-se no todo do enunciado.
Estes tipos relativamente estáveis de enunciados que se encontram no
interior de cada esfera da atividade humana são para Bakhtin os gêneros do
discurso. Portanto, tudo o que é falado ou escrito comporta um repertório
variado de gêneros do discurso. (Bakhtin, 1992). Há uma heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e
escritos) que incluem: o diálogo cotidiano, o relato familiar, a carta, a ordem
militar padronizada, as declarações públicas, etc. E com estes gêneros
relacionaremos também as variadas formas de exposição científica e todos os
modos literários. O autor faz uma
distinção entre gêneros de discurso primário (simples) e gêneros de
discurso secundário (complexo) mostrando a interdependência entre um gênero e
outro enfatizando que durante o processo de sua formação, os gêneros secundários
absorvem e transmutam os gêneros primários sendo os gêneros secundários bem
mais elaborados. A distinção
entre estes gêneros tem grande importância na teoria bakhtiniana.
![]() |
Gêneros primários: os tipos do diálogo oral, linguagem das reuniões sociais, dos círculos, gêneros do cotidiano, linguagem sociopolítica, filosófica, conversa familiar etc. |
![]() |
Gêneros secundários: o romance, o teatro, os gêneros literários, o discurso científico, o discurso ideológico etc. |
Os gêneros primários transformam-se dentro dos secundários e adquirem uma característica particular, perdendo sua relação imediata com a realidade dos enunciados alheios, inseridas no romance, na réplica do diálogo cotidiano ou na carta pessoal, conservando sua forma e seu significado apenas no plano do conteúdo do romance concebido como fenômeno da vida literário-artística. O que diferencia o romance dos outros fenômenos da mesma natureza e ele ser um enunciado secundário complexo. É a inter-relação entre estes tipos de gêneros que esclarece a natureza do enunciado, como também o problema da relação mútua entre língua, ideologias e visões de mundo. Um estudo mais aprofundado da natureza do enunciado e da diversidade dos gêneros nas diferentes esferas da atividade humana é de fundamental importância tanto na área da lingüística quanto na área da filologia. O autor destaca a relevância do estudo dos gêneros “Uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos vários tipos de enunciados em particular (primário e secundário), ou seja, dos diversos gêneros do discurso, é indispensável para qualquer estudo, seja qual for a sua orientação específica”.(p.282). Portanto, ao trabalhar com textos infantis, dentro de um contexto lingüístico, não podemos ignorar a natureza do enunciado, dos gêneros do discurso e sua influência em todas as esferas da atividade humana, pois, estas particularidades norteiam qualquer estudo na área da lingüística, uma vez que a língua penetra na vida através dos enunciados concretos e vice-versa. A língua escrita é marcada pelos gêneros secundários e primários, e sua ampliação incorporada nas diversas camadas da língua popular acarreta em todos os gêneros sejam eles literários, científicos, ideológicos, etc. A aplicação de procedimentos na organização e conclusão do todo verbal e uma modificação do lugar que será reservado ao ouvinte, o que leva a uma reestruturação dos gêneros do discurso. Em nossos diálogos espontâneos, na nossa comunicação diária com o outro, nas nossas mais diferentes atividades, envolvendo a fala ou a escrita, transitamos entre gêneros do discurso, pois é nesta rede de interações sociais que eles surgem. Para fazer a definição de um estilo em geral e de um estilo individual é necessário um estudo aprofundado da natureza do enunciado e da diversidade dos gêneros do discurso. O vínculo entre o estilo e o gênero mostra-se claramente quando se trata do problema de um estilo lingüístico ou funcional. Bakhtin mostra a necessidade de um estudo dos estilos lingüísticos:
“Porém para ser correto e produtivo, este estudo sempre deve partir do fato de que os estilos da língua pertencem por natureza ao gênero e deve basear-se no estudo prévio dos gêneros em sua diversidade. Até agora, a estilística da língua ignorou tais fundamentos, daí sua debilidade. Não existe uma classificação comumente reconhecida dos estilos lingüísticos”. (p. 284)
Fala da ausência de classificação dos gêneros do discurso por esferas de atividade humana e da ausência de diferenciação entre os gêneros primários e secundários. Estes gêneros primários e secundários se encontram num estado de contínua mudança, dentro do sistema da língua (oral/escrita) e refletem toda e qualquer mudança na vida social, englobando a história da sociedade e a história da língua. O estudo do enunciado e dos gêneros do discurso tem uma importância fundamental para superar as noções simplificadas do fluxo verbal, da comunicação, etc. O autor estuda mais profundamente o enunciado, em sua qualidade de unidade real da comunicação verbal. De início Bakhtin critica a tradição dos estudos lingüísticos por colocar a função comunicativa da linguagem em segundo plano, privilegiando a função formadora da língua sobre o pensamento, independente da comunicação. Mostra que a escola de Vossler coloca a função dita expressiva para o primeiro plano, fazendo referência as diferentes visões que os teóricos introduzem nesta função (comunicativa da linguagem), enfatizando que ela resume-se à expressão do universo individual do locutor e que a essência da língua resume-se à criatividade espiritual do indivíduo. Segundo Bahktin “É óbvio que a coletividade lingüística, a multiplicidade dos locutores são fatores que não podem ser ignorados quando se trata da língua, mas esse aspecto não é necessário ou determinante quando se trata de definir a natureza da língua em sua essência”. (p.290) Coletividade lingüística é vista aqui como uma espécie de personalidade coletiva. Do ponto de vista do autor, a fala só existe na forma concreta dos enunciados de um indivíduo. Preocupa-se em mostrar que o discurso se molda sempre à forma do enunciado e que cada enunciado pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma. Apresenta como característica estrutural dos enunciados fronteiras claramente delimitadas. Estas fronteiras do enunciado concreto são determinadas pela alternância dos sujeitos falantes ou pela alternância dos locutores e são compreendidas como uma unidade da comunicação verbal. Todo enunciado para Bakhtin comporta um começo absoluto e um fim absoluto, ele mostra que antes do início de qualquer enunciado há os enunciados dos outros e depois do final de cada enunciado há os enunciados-respostas dos outros. Apresenta o enunciado como uma unidade real estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes, sendo essa alternância dos sujeitos que traça as fronteiras entre os enunciados nas mais diversas esferas da atividade humana, conforme as mais diversas atribuições da língua e as mais variadas situações da comunicação.
Castilho (1998) propõe a integração da língua falada em nossas práticas
escolares, pois ela assume um papel de destaque no processo de
ensino-aprendizagem. O autor prossegue argumentando que a linguagem é um objeto
cientificamente analisável e apresenta três modelos teóricos de interpretação
da linguagem humana: língua como atividade mental, língua como estrutura e língua
como atividade social. (p. 10):
1.
Teoria da língua como atividade mental: considera a língua como uma
capacidade inata do homem, que lhe permite reconhecer as sentenças,
atribuindo-lhes uma interpretação semântica ou produzir um número infinito
de sentenças, atribuindo-lhes uma representação fonológica.
Uma gramática que assim entenda a linguagem será uma gramática implícita
cujo objetivo principal será explicar como as pessoas adquirem uma língua,
como elas produzem e interpretam essa língua e como percebem que o interlocutor
fala a sua ou uma outra língua.
2.
Teoria da língua como estrutura: postula que as diferentes línguas
naturais dispõem de um sistema organizado em níveis que podem ser: fonológico,
gramatical e discursivo.
3.
Teoria da língua como atividade social: de acordo com essa teoria a língua
é uma atividade social e é através dela que veiculamos as informações,
externamos nossos sentimentos e agimos sobre o outro.
A língua é vista como um conjunto de usos concretos, envolvendo sempre
um locutor e um interlocutor que interagem a propósito
de um tópico conversacional previamente negociado.
Resumindo,
o autor enfatiza que as duas primeiras teorias se ocupam de enunciados, para
cuja apreensão a Sintaxe assume uma grande autonomia em relação à Semântica
e a Pragmática. A terceira teoria,
língua como atividade social, postula a língua como um fenômeno
funcionalmente heterogêneo, representável por meio de regras variáveis,
socialmente motivadas. A língua é concebida nesta teoria como enunciação, onde a
Semântica e a Pragmática se constituem um ponto de partida, sendo a Sintaxe um
ponto de chegada. Nas palavras de
Castilho (1998, p.12) “A Lingüística tem oscilado entre esses dois pólos,
ora destacando a língua como enunciado – valorizando-se as gramáticas
formais, estruturais, gerativas -, ora destacando a língua como uma enunciação
– valorizando-se as gramáticas funcionais”.
A
indagação lingüística atual tem um entendimento mais rico da linguagem,
postulada como um conjunto de usos, cujas condições de produção são de
fundamental importância no momento em que se analisa seu produto. A linguagem
assim concebida resultou na constituição de uma nova área de estudos, a Pragmática,
que tem examinado temas importantes como: os atos de fala, a competência
comunicativa conversacional, as pressuposições e as inferências que cercam um
ato de fala, a linguagem como ação e argumentação, etc.
A
proposta do autor é formulada nos seguintes termos: que se comece por uma
observação mais intuitiva da língua como enunciação, para depois desembocar
numa observação mais técnica da língua como um enunciado, enriquecendo-se
assim a percepção do fenômeno lingüístico mostrando a necessidade de um
maior aprofundamento por parte dos professores, que precisarão capacitar-se dos
novos temas sobre os estudos da linguagem para melhor compreender a língua como
enunciado e a língua como enunciação, visto que esse entendimento permite
encarar com mais segurança os problemas lingüísticos suscitados por uma
sociedade em mudança.
Assim,
o trabalho do professor deve ser subsidiado por uma teoria como a teoria da língua
como atividade social, que vê a língua como forma de interação.
Os
estudos da língua falada – que são uma das conseqüências da Pragmática
– poderão ajudar no aparelhamento científico do professor, de acordo com
Castilho (p.13). Não se acredita que a função da escola seja apenas ensinar a
língua escrita, a pretexto de que o aluno já aprendeu a língua falada em
casa; se os professores de língua portuguesa se concentrassem mais na reflexão
sobre a língua que falamos, logo descobririam a importância da língua falada,
mesmo para a aquisição da língua escrita.
Novas teorias apontam para o
ensino da língua Portuguesa pautada em uma reflexão sobre a língua como
atividade, não apenas como estrutura. Muitas propostas que enriqueceriam o
ensino da língua materna são lançadas, mas estão longe de chegar a quem
realmente interessa, que são os professores que estão atuando hoje no ensino
da língua portuguesa, que realmente precisam desta contribuição para inovar e
motivar seus alunos.
Possenti (1996, p.33) apresenta dois
fatores para uma visão mais adequada do fenômeno da linguagem:
·
Todas as línguas variam: não
existe nenhuma sociedade ou comunidade na qual todos falem da mesma maneira.
·
A variação lingüística é o
reflexo da variação social: como em todas as sociedades existe diferença de
status ou de papel entre indivíduos ou grupos, estas diferenças se refletem na
língua.
Segundo
o autor não existem línguas imutáveis, elas mudam sempre, por exemplo, o
português veio do latim e o latim de onde veio? Se as línguas mudam, fica
claro porque os falantes desconhecem certas formas lingüísticas: estas formas
não são mais usadas quando eles se tornam falantes.
Se não são usadas, não são ouvidas nem faladas, por isso não podem
ser aprendidas.
Enfatiza a necessidade de não
haver preconceito quanto à utilização da formas lingüísticas mais recentes,
tratando-se de aceitar que se utilizem nos textos escritos formas lingüísticas
mais informais, (o que não quer dizer aceitar todas), que,em geral,
consideramos aceitáveis apenas na fala. Nas palavras do autor “A razão é
que estas formas, na verdade, são hoje as corretas, são elas que constituem a
língua padrão, porque já são faladas e escritas pelas pessoas cultas do país
– coisa que eles eventualmente não se dão conta”(Possenti, 1996, p.
41).
Como afirma Furtado da Cunha
(2002, p. 62) “O exame da prática educativa em nossas escolas revela que o
ensino de português continua muito atrelado à orientação
normativo-prescritiva, o que acentua ainda mais a distância que separa a língua
escrita da língua que utilizamos em nossa comunicação diária.” Enfatiza
que há uma supervalorização da língua escrita em detrimento da língua
falada, com o risco de desmotivar os alunos e deixá-los na dúvida se o português
ensinado na escola é o mesmo que eles usam diariamente nas suas interações
cotidianas.
A autora apresenta a Lingüística
Funcional como uma alternativa para orientar o trabalho do professor porque a
perspectiva funcional enfatiza o discurso e as funções da língua no uso diário.
Propõe que seja deixada de lado a atitude preconceituosa contra as
formas lingüísticas mais informais, inclusive na escrita, uma vez que elas são
usadas tanto na fala quanto na escrita pelas camadas mais cultas da comunidade
lingüística. Sugere que os
professores de língua materna levem em conta o conhecimento lingüístico do
aluno - a conversação - para atingir a norma culta ou o dialeto padrão, através
de uma abordagem funcionalista da língua.
Para
concretização deste trabalho foram coletados 60 textos e sorteados para serem
analisados 20. Os alunos pertencentes a uma faixa etária de 9 a 10 anos, dos
sexos masculino e feminino, de uma escola pública sendo alunos da 3ª série do
ensino fundamental. As marcas da oralidade na escrita foram classificadas a
partir de uma adaptação de CAGLIARI (1997, p. 138-145) tais como transcrição
fonética, uso indevido de letras, hipercorreção, modificação da estrutura
segmental das palavras, juntura intervocabular e segmentação, forma morfológica
diferente, uso indevido de letras maiúsculas e minúsculas, problemas sintáticos
e repetição.
Apenas
um texto entrará como exemplo, visto tratar-se apenas de um resumo.
Texto nº 20 (copiado do original do aluno) grifo meu
01
A cachueira encantada ( título)
02
Era uma vez uma cachueira muito bonita
03
e alta, que atraia todos os tipos de animais para
04
perto dela.
05
A água daquela cachueira era pura e cristalina e
06
todos os animais do bosque bebiam água lá,
07
mas mesmo assim a água daquela cachueira
não
08
acabava.
09
A cachueira encantada era chamada assim
10
por qausa da sua belesa, porque a água nuca acabava
11
e porque de noite as águas dela brilavam e
12
iluminavam todo o bosque.
13
Mas no outro bosque avia bichos muto mals e
14
perversos que viviam atrás de poluir a água pura e
15
cristalina da cachueira.
16
um dia 3 animais daquele
bosque do mal foram
17
no bosque da cachueira encantada levando 3 baldes
18
de lixo para despejar na cachueira encantada e
19
quando eles estavam perto da cachueira encantada
20
todos os animais do bosque pularam em cima
21
deles e amararam eles com umas cordas bem groças
22
e nigem nunca mais encomodou
a cachueira
23
encantada.
A repetição aparece de
modo muito freqüente, pois como podemos observar neste texto, a continuidade
temática foi mantida na produção textual escrita da criança a partir de uma
palavra do próprio título do texto.
Constatou-se que a palavra cachueira
(cachoeira) é repetida dez vezes como uma forma de dar continuidade ao texto,
refletindo o esforço da criança no sentido de desenvolver um tema, numa fase
em que ela não adquiriu um vocabulário mais extenso para enriquecê-lo com
elementos coesivos. Dos vinte textos analisados treze deles apresentaram repetição
de itens lexicais de forma bastante acentuada.
Transcrição
fonética |
Uso
indevido de letras |
Forma
morfológica diferente |
Repetição |
cachueira (cachoeira)L1 |
belesa
(beleza) L 10 |
nuca (nunca) L 10 |
Cachueira (cachoeira) L 1, 2, 5,
7, 9, 15, 17, 18, 19 e 22 |
causa (causa) L 10 |
|
muto (muito) L 13 |
|
brilavam (brilhavam) L 11 |
|
mals
(maus) L 13 |
|
avia (havia) L 21 |
|
|
|
amararam (amarraram) L 21 |
|
|
|
nigem (ninguém) L 22 |
|
|
|
encomodou (incomodou) L 22 |
|
|
|
Na fase inicial da pesquisa, tinha-se a mera percepção de que os textos
dos alunos eram permeados de traços da oralidade.
No decorrer da análise é que se revelou a riqueza de detalhes de que são
portadores os textos infantis e quanta influencia tem a oralidade na escrita
nessa fase. De acordo com a fundamentação teórica que apóia esta pesquisa,
as transcrições fonéticas classificam-se como um processo normal na fase de
aquisição da escrita, pois, isso se passa numa idade em que as crianças não
possuem ainda discernimento para empregar regras gramaticais corretamente.
Portanto, sendo a escola o lugar onde o aluno tem contato com os mais diversos
tipos de linguagem oral e escrita, pergunta-se: a quem cabe o papel de
proporcionar ao aluno um conhecimento dos vários tipos de gêneros? Uma vez
que, o aluno não domina este tipo de conhecimento? Espera-se que através da
interação do professor com seu aluno na sala de aula ele seja capaz de
perceber sua maneira de falar e saber que influência tem essa fala nos textos
escritos, assim, a concepção que o professor tem da língua irá influenciar
as ações futuras de seus alunos, para isso, deve haver uma continuidade do que
o aluno traz de seu meio e o que
ele vai aprender na escola.
BAKHTIN,
Mikhail. “Os gêneros do discurso” in Estética da Criação Verbal.
São Paulo, SP: Martins Fontes, 1992. p.
278-326.
CAGLIARI,
Luiz Carlos. Alfabetização e lingüística. 8. ed. São Paulo, SP:
Scipione, 1995. 189 p.
CASTILHO,
Ataliba T. de. A língua falada no ensino de português. São Paulo:
Contexto, 1998.
FURTADO
DA CUNHA, M. A. Contribuições da lingüística funcional ao ensino de português
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GERALDI,
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MARCUSCHI, Luiz Antonio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001. 133 p.
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44ª Reunião anual da SBPC, São Paulo, SP: 1993. 150.p. (mimeografado)
MOITA
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social e educacional dos processos de ensino/aprendizagem de línguas. Campinas,
SP: Mercado de letras, 1996. p. 22-23.
MUSSALIM,
F. BENTES (orgs.). Introdução à lingüística. domínios e fronteiras.
2. ed. vol. I. São
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POSSENTI,
Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas:
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