INTRODUÇÃO

 

 Tendo em vista a natureza do evento lingüístico de que fez parte a explanação deste trabalho, Encontro das Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino (ECLAE), propusemo-nos refletir sobre nosso objeto de estudo, a antonímia, de uma forma mais prática que teórica, observando algumas possibilidades de exploração desse fenômeno léxico-semântico em sala de aula.

 Como nosso propósito é mostrar que o fenômeno em tela pode ser tratado de maneira dinâmica e criativa, observaremos que pode ser abordado sob os mais diversos aspectos, sobretudo como recurso literário, estratégia argumentativa, estratégia referencial com base em inferência e como simples relação de incompatibilidade de sentidos. Pretendemos, assim, mostrar o largo quadro de possibilidades de abordagem da antonímia, limitando-nos, contudo, às postulações teóricas da semântica formal, cuja base buscaremos na proposta de Lyons (1977).

 Embora partilhemos da idéia de que a língua é dinâmica, concreta e socialmente afetada pelos falantes, deixaremos de abordar, neste trabalho, aspetos de uma semântica mais pragmática, que poderiam oferecer uma visão mais totalizadora do fenômeno em estudo, se levassem em conta as condições de produção, a intenção do falante e o processo de decodificação, tal como nos orientam os trabalhos de Austin (1990) e Searle (1969). A razão de tal ausência, neste trabalho, está no fato de que, sendo uma breve discussão sobre a abordagem da antonímia em sala de aula, a semântica formal, por seu rigor, através da análise componencial e das relações lógicas de (e entre) enunciados, consegue elaborar um estudo entre palavras e sentenças que proporciona uma idéia mais didática do que vem a ser esse tipo de relação semântica de oposição de sentidos, que é indistintamente chamado de antonímia.

 

1 – O  PAPEL DA ANTONÍMIA NO FUNCIONAMENTO DA LINGUAGEM

 

 São inegáveis a presença e a importância dos contrários em nossa vida. A conceituação por contrastes faz-se presente em livros, revistas, propagandas, manchetes de jornais, no dia-a-dia e sobretudo em nós mesmos. em nosso dia-a-dia, inclusive, em nós mesmos.O ser humano já nasce introjetado num universo maniqueísta, que concede tudo positiva ou negativamente. Assim, desde cedo, captam-se noções como bem e mal, Deus e Diabo, matéria e espírito, bom e ruim. A propósito, desde o mito da criação do homem, como uma concepção divina, observam-se a presença e a força dos contrários. O homem foi expulso do paraíso e passou a viver no inferno do plano da materialidade. O cristianismo também generalizou as palavras do Deus dos hebreus: “Quem não está comigo está contra mim”. Filósofos, como Sócrates, Aristóteles e Heráclitus, também já haviam observado a tendência que as coisas têm de se bifurcarem.

 Para alguns autores, a categorização de experiências em termos dicotômicos é uma tendência universal. Para outros, a exemplo de Lyons (1977, p. 220), as línguas nativas possuem um elevado número de pares de lexemas opostos, o que leva os falantes a dicotomizar ou polarizar os juízos e as experiências. Trier (apud Lyons, 1977) chega mesmo a declarar que o contrário se faz presente na mente do emissor e do receptor durante o ato de enunciação. Segundo os autores Rychalak et al. (1989), Sócrates e Aristóteles foram mais além; incluíram os princípios de contrário e de oposto como modos implícitos de associação de idéias. Observaram ainda que psicólogos                 (e filósofos), a partir de pesquisas, não garantiram à oposicionalidade o status de um processo inerente nas teorias da aprendizagem, mas a apontaram como traço importante no processo cognitivo dos seres humanos. Como argumentação, os referidos autores citam, entre outros trabalhos, um estudo de Kagan (1984) sobre a aquisição da linguagem, afirmando que a compreensão da oposicionalidade é realizada muito cedo e facilmente, fato esse que não pode ser justificado apenas pela instrução dos pais, mas que deve constituir um aspecto intrínseco da atividade mental humana. Também ressaltaram estudos feios em relação ao uso da linguagem pelos adultos, cujos resultados demonstraram o papel implícito da oposicionalidade. Alguns trabalhos citados foram os de Osgood (1952); Brewer e Lichtenstein (1974); Hampton e Taylor (1985); Westcott (1981); Lamiell (1987).

 Os autores Rychalak et al (1989) também confirmaram a hipótese de que a oposicionalidade desempenha um papel importante na cognição. Através de quatro experimentos realizados, concluíram que os indivíduos: a) reconhecem padrões de oposição em significados de palavras e de sentenças; b) são propensos a usar a estratégia de oposicionalidade na solução de um problema; c) conseguem aumentar, através da prática, sua habilidade em transformar significados de sentenças oposicionalmente; d) podem reconhecer os significados oposicionais de uma sentença tão rápida e acuradamente quanto podem detectar as possíveis paráfrases dessa sentença. Segundo eles, isso não prova a existência de uma oposicionalidade implícita no processo cognitivo humano, mas assegura que ela está inerentemente ligada à cognição.

 Provar ou não a ligação da oposicionalidade à cognição foge aos objetivos deste trabalho. É tarefa mesmo de outras áreas do conhecimento, mas são observações importantes para demonstrar a necessidade de continuidade de estudos sobre o tema. A nós, nos interessa a relevância da antonímia do ponto de vista lingüístico, estudando o valor significativo que esse tipo de relação semântico – lexical desempenha na organização do léxico das línguas. A propósito, é significativa a observação de Vilela (1979, p. 194):

 

A antonímia, em sentido amplo, representa um princípio fundamental na estruturação léxica: será mesmo impossível a existência duma língua sem a presença da oposição antonímica. Sem nos aventurarmos a afirmar que se trata de um fenômeno geral: as línguas conhecidas apresentam a antonímia como relação semântica fundamental. A língua portuguesa é toda ela atravessada pela oposição antonímica em diferentes coordenadas e tipos (...).

 

 

2 – A ABORDAGEM TRADICIONAL DA ANTONÍMIA: ALGUMAS DIFICULDADES

 

 Apesar do importante papel da antonímia no funcionamento da linguagem, esse fenômeno ainda está por merecer maior atenção da parte dos que se dedicam ao estudo da linguagem. Longe de ser um tema simplório, é algo relativamente complexo e representa um traço essencial na estruturação da linguagem.

 Especificamente, sobre antonímia, é relativamente baixo o número de trabalhos propostos. No português do Brasil, temos ciência de um artigo de Monteiro (1989) em torno do conceito do termo e o trabalho de Souza (1992), que enfoca o comportamento semântico de alguns pares de adjetivos antônimos em português. A falta de uma discussão mais ampla e continuada tem dificultado uma descrição mais objetiva e mais segura sobre o assunto. Os problemas oriundos de uma descrição pouco rigorosa sobre os fenômenos lingüísticos de uma dada língua vão se refletir, naturalmente, em sua gramática. A falta de uma definição mais rigorosa suscita definições imprecisas, equívocas na identificação de alguns pares antonímicos. Apesar de muitos professores brasileiros buscarem um processo contínuo de aperfeiçoamento, ainda há, em sala de aula, a formulação de exercícios estéreis sobre assunto, solicitando que o aluno liste, descontextualizadamente, alguns pares de antônimos. É isso o que se observa em diversas de nossas gramáticas, em manuais didáticos e até em alguns dicionários especializados, a exemplo do Dicionário de sinônimos e antônimos, de Francisco Fernandes (1982).

 Observemos, mais detalhadamente, o tratamento dado ao tema em algumas de nossas gramáticas. Em geral, definem a antonímia como palavras de significação oposta. Há alguns inconvenientes nessa formulação. Em primeiro lugar, tal definição não distingue a antonímia de outras relações de contraste. Em segundo, situa o fenômeno no eixo paradigmático. Essa postura, além de oferecer um tratamento estático à questão, concebe o léxico como um conjunto de etiquetas coladas aos entes mundanos.

 Na verdade, as relações antonímicas só se realizam plenamente, se contextualizadas. Prova disso é que, como observa Lima (2001, p.158), a oposição de um termo a outro, contextualizadamente, pode originar relações de contraste impossíveis de serem previstas no nível paradigmático e lógico. Quanto à referenciação, é preciso esclarecer que a língua procede a uma reelaboração do mundo e não à sua representação. Como observa Marcuschi (1999), a referência é uma atividade de designação realizada no discurso, entendido este como uma reelaboração mental da realidade influenciada tanto por questões lingüísticas quanto por questões sociais, culturais e históricas.

 A gramática de Cunha & Cyntra (1985), inexplicavelmente, não faz qualquer referência ao assunto, o que é lamentável. A de Bechara (1992) diz que a “antonímia é o fato de haver vocábulos com sentidos opostos” e cita, como exemplo, os pares: vida/morte; crente/descrente. Lembra que uma mesma palavra pode assumir um sentido favorável e outro desfavorável, a exemplo de fortuna (boa ou má), sucesso (bem ou mal). Observa, ainda, que a antonímia, por vezes, surge de fato de uma palavra apresentar valor ativo e passivo e cita, entre outros exemplos, o verbo alugar: a) dar de aluguel; b) receber de aluguel.

 Pelo tratamento atribuído à questão nessas duas gramáticas, que, ao lado da gramática de Lima (1974), constituem três bons compêndios gramaticais, vê-se a pouca relevância que se tem dado ao estudo da antonímia e a fragilidade de critérios que se têm empregado para conceituá-la. A questão, em Bechara, é limitada. A causa dessa visão obliterada está no fato de não distinguir a antonímia de outras relações de contraste. As relações de contraste que se estabelecem entre as palavras têm sentidos diversos; rotular todas de antonímia é cair em reducionismo. Segundo a orientação de Lyons (1977), não se pode ver, no par vida/morte, um caso de antonímia, visto que  seus elementos constitutivos não são graduáveis. Também é preciso compreender, conforme se depreende dos questionamentos de Ilari & Geraldi (2002), que vida e morte não traduzem propriamente noções contrárias; são, antes, partes complementares do fenômeno da existência, dois momentos extremos desse processo: a vida e a morte. Já a gramática de Rocha Lima (1974) revela a complexidade do assunto. Lembra a possibilidade de um mesmo item lexical apresentar antônimos diferentes de acordo com os referentes a que se aplicam, devido ao fato de as palavras carregarem múltiplos sentidos imanentes.

 As dificuldades em torno do conceito de antonímia estão presentes, inclusive, em dicionários especializados, sejam de termos lingüísticos ou de antônimos, conforme observa Monteiro (1989). Após buscar o conceito de antonímia nos dicionários de Fernandes (1982); Alpheu Tersariol (1968); Borba (1971), que nem sequer registra o verbete; Jota (1981); Câmara Jr. (1981), o referido autor conclui que os dicionários apresentam “a mais absoluta falta de critérios norteadores de uma definição válida e coerente”.

 

3 – ALGUMAS PROPOSTAS E NENHUM CONSENSO

 

 Os semanticistas têm se ocupado mais com a noção de sinonímia do que com a de antonímia. O próprio nascimento do termo, observa Vilela (1979), foi criado por analogia à sinonímia e originado pelo francês no século XIX, embora o conceito seja muito anterior. Refutando a idéia de que a antonímia é o inverso da sinonímia, Palmer (apud Monteiro, 1989) revela que esses dois tipos de relação semântica se comportam de formas diversas e frisa que as línguas podem dispensar os sinônimos, mas não os antônimos. O fato de o conceito de antonímia não está rigorosa e unanimemente estabelecido, argumenta Monteiro (1989), advém de tal estado de desinteresse pelo assunto.

 Os que se dedicam ao tema fundamentam seus estudos nas contribuições da lógica clássica, extraindo dela os conceitos de contrário e contraditório. Porém, esses termos têm recebido diferentes interpretações dos lingüistas. É na interpretação de tais conceitos que reside a raiz de tantas divergências sobre o assunto, inclusive, as terminológicas.

 Através do resumo das propostas seguintes, é possível vislumbrar as posições divergentes sobre o tema.

 

– A PROPOSTA DE LYONS

 

 A proposta de Lyons, por  seu rigor metodológico, ganhou prestígio. Sua análise sobre o fenômeno do significado leva em conta não só noções paradigmáticas (campo lexical) como também relações associativas. Para o autor, as relações lexicais, num dado campo lexical são estabelecidas a partir de uma série de contrastes existente entre eles. Nesta proposta, contraste é o termo mais amplo, que engloba todo tipo de relação opositiva: antonímia, complementaridade, reciprocidade, oposição ortogonal, conjuntos ordenados serialmente, conjuntos ordenados ciclicamente.

 O que de mais significativo há na proposta de Lyons é o seu rigor, aplicando o conceito de antonímia a apenas um tipo de contraste: o dos opostos graduáveis. Alguns lingüísticos, a exemplo, de Monteiro (1989),  condenam essa proposta, julgando-a bastante delimitadora. Mas ainda nenhuma vez se levantou acusando-a de não ser esclarecedora. É uma teoria que desfaz muitos equívocos. Contudo, ela não está isenta de problemas. Uma situação bastante complexa e não resolvida suficientemente é o caso de alguns pares de opostos que satisfazem a noção de dois tipos de contraste, como os antipodais, por exemplo, que também podem admitir a variação de grau (mais atrás, muito adiante).

 

– A  PROPOSTA DE KATZ

 

 Ao identificar a antonímia como qualquer relação de incompatibilidade de sentido, a proposta de Katz (1972) caminha em sentido inversamente proporcional à de Lyons. O incoerente está em que as relações de incompatibilidade são muito amplas. Na incompatibilidade, a afirmação de um elemento de uma série implica a negação de cada um dos elementos desta mesma série; a negação de um significa a afirmação de cada um dos demais disjuntivamente, segundo o esquema: X = 1, X ≠ 2,3,4 ... (leia-se: X é igual a 1, logo X é diferente de 2, de 3, de 4 ou de qualquer outro elemento constitutivo da série dos numerais cardinais). Exemplo:

 

X é preto  X é não              verde                                              verde 

                                    branco                                            branco    

                                    azul                                                azul

                                    violeta         assim como: X é        violeta         X é  não       

                                    vermelho                                       vermelho             preto

                                    amarelo                                         amarelo

                                    ...                                                   ...

           

 Para Katz, o termo antonímia pode ser aplicado a todo tipo de oposição. Reconhece a existência de antônimos contraditórios (mortal x imortal) e antônimos conversíveis (comprar x vender). Interessante nesta proposta como também na de Lyons é a introdução da noção de escola. Trata-se do reconhecimento de zonas intermediárias entre dois opostos antonímicos. Refletir sobre esta constatação, na linguagem, é importante, porque também nos leva a refletir sobre as conseqüências daninhas do uso intencional da polarização na sociedade.

 

4 – A  ANTONÍMIA EM SALA DE AULA

 

 Já aludimos que o enfoque da antonímia, neste texto, pretende ser mais prático que teórico, vez que seu objetivo é refletir sobre como lidar com a antonímia em sala de aula. Certamente, ainda não conseguimos nos desligar das questões teóricas. Já é hora, então, de relegá-las a  segundo plano e começar a trabalhar com textos. Dada a riqueza da antonímia é possível trabalhá-la a partir de qualquer corpus. Aqui, lançaremos mão de corpus da canção popular, da poesia, do discurso bíblico e do publicitário. Dos múltiplos enfoques possíveis para a abordagem da antonímia, recortamos os seguintes:  a antonímia como estratégia argumentativa e como recurso literário.

 

4.1 – A ANTONÍMIA COMO ESTRATÉGIA ARGUMENTATIVA  

 

  A antonímia tem servido a diversos fins.  Um deles é a definição através de contrastes. Considera-se que a predicação feita a respeito de um termo ganha maior força argumentativa , se lança mão de idéias opostas para realizá-las. Está em jogo, em tal raciocínio, o fascínio gerado pela possibilidade de conciliar idéias opostas. A vantagem da oposição dicotômica, em qualquer definição, reside na economia desta e nos efeitos lingüísticos e não lingüísticos que se podem alcançar, conforme ilustram os exemplos seguintes :

                                         

 

Não queremos o serra à nossa mesa, preferimos a lula.

 

 

 

     “ E , pensando bem, ele [Fabiano] não era um homem : 

                             era apenas um cabra”

                    ( Vidas secas – Graciliano Ramos )

 

 

                  “ Vem, vamos embora/ Que esperar não é saber/

                     Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer”

             (Pra não dizer que não falei das flores – Geraldo Vandré )

 

                                                                       

                                                 ( ... )

                              “O bicho não era um cão,

                                Não era um gato,

                                Não era um rato.

                                O bicho, meu Deus, era um homem”

                                  ( O bicho – Manuel Bandeira )

 

 

                     Test    Drive     Stilo     é    tudo.

                     Stilo. Ou você tem. Ou não tem.

                              ( Propaganda da FIAT )

 

 

 

4.2 – A ANTONÍMIA COMO RECURSO LITERÁRIO

 

 A literatura, desde cedo, soube explorar a riqueza das relações de oposição de sentido, conseguindo efeitos estéticos surpreendentes. A antonímia, de fato, oferece possibilidades criativas e argumentativas para quem trabalha com a literatura e com a escrita de forma geral. Não é sem razão que muitos autores, das mais diversas escolas literárias, têm se servido dela como argumento para ironizar, satirizar, questionar posturas e valores impostos a uma sociedade e a seus membros. Servem-se dela, também, para refletir sobre si mesmos e sobre as coisas do mundo e para traduzir seus sentimentos, suas ambivalências, seus conflitos internos, enfim, para expressar seus estados d’alma.

 A canção a seguir, de Caetano Veloso, freqüentemente citada em estudos sobre antonímia, ao traduzir, através de antônimos contextuais o estado d’alma de um eu em conflito, em conflito pela impossibilidade de uma relação harmônica com um tu, dado o desencontro entre os anseios e as perspectivas de um e de outro, exemplifica bem o que acabou de ser dito :

 

 

                                              O QUERERES

 

Onde queres revólver sou coqueiro, e onde queres dinheiro sou paixão

Onde queres descanso sou desejo, e onde sou só desejo queres não

E onde não queres nada, nada falta, e onde voas bem alto eu sou o chão

E onde pisas no chão minha alma salta, e ganha liberdade na amplidão

 

Onde queres família sou maluco, e onde queres romântico, burguês

Onde queres Leblon sou Pernambuco, e onde queres eunuco, garanhão

Onde queres o sim e o não, talvez,  e onde vês eu não vislumbro razão

Onde queres o lobo eu sou o irmão, e onde queres cowboy eu sou chinês

 

Ah! bruta flor do querer, ah! bruta flor, bruta flor ...

Onde queres o ato eu sou o espírito, e onde queres ternura eu sou tesão

Onde queres o livre, decassílabo, e onde buscas o anjo  sou mulher

Onde queres prazer sou o que dói, e onde queres tortura, mansidão

Onde queres o lar, revolução, e onde queres bandido  sou  herói

Eu queria querer-te e amar o amor, construir-nos dulcíssima prisão

Encontrar a mais justa adequação, tudo métrica e rima e nunca dor

Mas a vida é real e de viés, e vê só que cilada o amor me armou

Eu te quero (e não queres) como sou, não te quero (e não queres) como és

 

Ah! bruta flor do querer, ah! bruta flor, bruta flor

Onde queres comício, flipper-vídeo, e onde queres romance, rock’n roll

Onde queres a lua eu sou o sol, e onde a pura natura, o inseticídio

Onde queres mistério eu sou a luz, e onde queres um canto, o mundo inteiro

Onde queres quaresma, fevereiro, e onde queres coqueiro sou obus

 

O quereres e o estares sempre a fim do que em mim é de mim tão desigual

Faz-me querer-te bem, querer-te mal, bem a ti, mal ao quereres assim

Infinitivamente pessoal, e eu querendo querer-te sem ter fim

E, querendo-te, aprender o total do querer que há e o que não há em mim

 

 

                                   Eis os antônimos presentes na canção

 

Dinheiro  x  paixão

O anjo  x  mulher

Descanso  x  desejo

Tortura  x  mansidão

Família  x  maluco

Um lar  x  revolução

Romântico  x  burguês

Bandido  x  herói

Leblon  x  Pernambuco

Comício  x  flipper-vídeo

Eunuco  x  garanhão

Romance  x  rock’n roll

O sim e o não  x  o talvez

A lua  x  o sol

O lobo  x  o irmão

A pura natura  x  o inseticídio

Cawboy  x  chinês

Mistério  x  a luz

O ato  x  o espírito

Um canto  x  o mundo inteiro

Ternura  x  tesão

Quaresma  x  fevereiro

O livre  x  decassílabo

Coqueiro  x  obus

A pura natura  x  o inseticídio

Revólver  x  coqueiro

 

 A riqueza desta canção para o estudo da antonímia está na criação inusitada de seus antônimos. É um exemplo significativo, para mostrar que há limitação em compreender o fenômeno apenas como uma relação paradigmática e conceber a língua como algo estático.

 Não estamos querendo negar a condição de relação substitutiva da antonímia, estamos tentando apenas ressaltar o caráter dinâmico dessa relação de sentido, pois  está claro que a muitos dos termos citado na referida canção, descontextualizadamente, não corresponderia qualquer antônimo.

 Houve mesmo, na literatura, uma época fundamental, a barroca em que o contrário se tornou expressão máxima, por se prestar à tradução do estado de espírito conflitante do homem europeu do século XVII. O contrário se tornou a figura máxima da estética barroca, através da antítese e do paradoxo, por ser uma forma de categorização da experiência e sobretudo por ser um traço presente no ser humano. A antonímia foi um princípio poderoso que permitiu que os autores barrocos expressassem a angústia, a dilaceração, o conflito e o desequilíbrio do homem europeu seiscentista dividido entre os prazeres materiais trazidos pela Renascimento e os valores espirituais reimpostos pela Contra-Reforma.

 Os que desejam trabalhar a antonímia em sala de aula, procurando dar um novo sentido ao estudo do tema, fugindo de exercícios estéreis sobre antônimos, não vão precisar empreender muitos esforços para encontrar textos que lhes possibilitem tal tarefa. A literatura é repleta de textos com antonímia, independentemente da estética de que fazem parte. É possível, também, como já frisamos, trabalhar a antonímia a partir de qualquer corpus.  O que não se aconselha é estudá-la imanentemente, em abstrato, sem o apoio de um texto. Só a partir de um texto é possível reconhecer certos antônimos, inferir o significado de alguns, conjeturar sobre a intencionalidade e o valor do emprego de determinados pares antonímicos bem como refletir sobre as implicações estéticas e sociais de seu emprego.

 Vejamos, respectivamente, um exemplo de antítese e um de paradoxo:         

  Oração de São Francisco

Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.
Onde houver
ódio, que eu leve o amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o perd
ão;
Onde houver disc
órdia, que eu leve a união;
Onde houver d
úvida, que eu leve a fé;
Onde houver erro, que eu leve a verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a esperan
ça;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, Fazei que eu procure mais
Consolar, que ser consolado;
Compreender, que ser compreendido;
Amar, que ser amado.
Pois,
é dando que se recebe,
É perdoando que se é perdoado,
E
é morrendo que se vive para a vida eterna.

 Citamos esse texto por um exemplo prototípico de antítese. Como é um texto bastante conhecido, é possível que tenha uma boa acolhida pelos alunos, pode até ser contado. É importante lembrar que tornar como meta apenas a identificação de uma relação de contraste pode não ser algo significativo. O trabalha a ser desenvolvido com a antonímia  depende da série em que leciona o professor e de seus propósitos.

 Nesse texto, por exemplo, poder-se-ia lidar com a antonímia sob diversos aspectos, entre eles: averiguar se a relação de contraste que se estabelece entre os termos é de natureza semântica única ou diversa; discutir se há, efetivamente, ações contrárias em todos os pares; observar se a relação de oposição de sentido que se estabelece entre os pares tem a mesma tipologia; a partir da adjetivação possível a alguns pares, discutir sobre a importância da noção de escala e do perigo da polarização; observar como se dá a distribuição da antonímia pelo inventário aberto do léxico português, buscando apreender as especificidades dos pares de substantivos opostos no referido texto (Por que nenhum par desses substantivos é concreto ou primitivo? Que comportamento semântico-gramatical devem ter os substantivos (e também os adjetivos e os verbos) para que sejam passíveis de oposição lexical antonímica?); cogitar a importância da relação entre campo lexical e escolha dos termos constitutivos dos pares em oposição; analisar a possibilidade de um dos termos dos pares em contraste servir com inferência para a apreensão do  significação do outro.

 O mesmo procedimento analítico, além de outros, pode-se aplicar à canção a seguir:

              Monte Castelo

Ainda que eu falasse a língua dos homens. 
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.
É só o amor, é só o amor. 
Que conhece o que é verdade. 
O amor é bom, não quer o mal. 
Não sente inveja ou se envaidece.
O amor é o fogo que arde sem se ver; 
É ferida que dói e não se sente; 
É um contentamento descontente; 
É dor que desatina sem doer.
Ainda que eu falasse a língua dos homens. 
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder.
É um estar-se preso por vontade. 
É servir a quem vence, o vencedor; 
É ter com quem nos mata a lealdade. 
Tão contrario a si é o mesmo Amor.
Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem. 
Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face.
É só o amor, é só o amor. 
Que conhece o que é verdade.
Ainda que eu falasse a língua dos homens. 
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.

 

 A escolha desse texto também se deu por sua popularidade lidar, em sala de aula, com textos conhecidos influi positivamente em sua acolhida. Monte Castelo, como vemos, dialoga, afirmativamente, com um soneto camoniano e com um trecho de primeira epístola do apóstolo Paulo aos coríntios. O paradoxo, ao unir as idéias díspares, acentua o tom conflituoso expresso pelos antônimos.

 Fora da literatura, também encontramos bons exemplos do emprego da antonímia, como no texto a seguir:

 

 

            Existem muitos bancos virtuais.

                                                               Só um é Real.

                                    Abra sua conta

 

 

 Por razão de ordem técnica, não conseguimos expor essa peça publicitária em sua totalidade, como deveria ser feito. Perdoem-nos a lacuna, pois sabemos que, no texto publicitário, linguagem verbal e não verbal se relaciona harmonicamente, para dar a idéia do todo. Nessa peça publicitária sobre o Banco Real, a relação antonímica concede à nomeação (Banco) Real uma força maior, através da predicação conseguida como termo Real. A posição ocupada pelos termos virtuais e Real como também a ambigüidade sugerida pelo último acentuam o contraste, a distinção entre o Banco Real e os demais. O importante é chamar a atenção para o uso intencional das oposições presentes no texto (muitos x só um; virtuais x Real) e para o emprego de toda a linguagem verbal  (o valor do verbo ser, por exemplo) e não verbal (a pontuação e as imagens – que tivemos de suprimir do referido texto.).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

 A antonímia é um fenômeno importante no funcionamento da linguagem e na categorização da experiência. Não obstante tal significância, o tema ainda não foi suficientemente estudado. Apesar dos esforços de alguns semanticistas, sua complexidade ainda não permitiu uma descrição mais consensual. A delimitação do conceito de antonímia, para uns, representados por Lyons, é bastante restrito e aplicado a apenas um tipo de contraste; para outros, os da linha de Katz, é extremamente amplo e igualado a qualquer tipo de incompatibilidade semântica.

 Na maior parte de nossas gramáticas e de nossos dicionários, essa divergência de posturas quanto à delimitação do conceito de antonímia converte-se em confusão. Conceitos imprecisos, lacunosos, equívocos quanto à classificação de determinados tipos de contraste e subjetividade permeiam o tratamento oferecido à questão. Esse estado de coisas provoca uma conseqüência mais grave: a idéia de que a antonímia é um conceito pouco relevante para a compreensão do universo semântico da língua. Daí a pouca reflexão sobre o assunto em sala de aula, quando é estudado, e a forma estéril de sua abordagem.

 Não se está perdendo de vista, aqui, a complexidade da questão. O que se está enfatizando é a necessidade de se empreender maior esforço para o oferecimento de uma descrição mais adequada e menos confusa nos manuais que se destinam ao ensino da língua materna no Brasil. Justamente por reconhecer a complexidade do assunto, procurando deixar de lado as facetas idiossincráticas que lhe são relativas, excluímos, deste texto, dados significativos que poderiam possibilitar uma noção mais global do tema, como a intenção do falante e a situação de enunciação, a fim de oferecer uma visão mais objetiva do fenômeno em enfoque.

 Claro está que a questão permanece aberta, exigindo a continuidade de estudados. Objetivamos, com este trabalho, apenas demonstrar o papel de destaque da antonímia no funcionamento da linguagem e chamar a atenção para a importância da exploração das riquezas do fenômeno em sala de aula, de modo que possa vir a ser  redescoberto tanto pelos professores quanto pelos alunos. Tomara que consigamos! 

 

 

REFERÊNCIAS

 

BORBA, Francisco da silva. Introdução aos estudos lingüísticos. 9.ed. São Paulo:Nacional,1986.

CARVALHO, Nelly. Publicidade: a linguagem da sedução. 3.ed. São Paulo : Ática, 2002.

CRUSE, D.A. Lexical Semantics. Cambridge: Cambridge university Press, 1987.

DUBOIS, Jean et al. Dicionário de lingüística. 10.ed. São Paulo : Cultrix, 1998.

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