Tendo
em vista a natureza do evento lingüístico de que fez parte a explanação
deste trabalho, Encontro das Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino (ECLAE),
propusemo-nos refletir sobre nosso objeto de estudo, a antonímia, de uma
forma mais prática que teórica, observando algumas possibilidades de
exploração desse fenômeno léxico-semântico em sala de aula.
Como
nosso propósito é mostrar que o fenômeno em tela pode ser tratado de
maneira dinâmica e criativa, observaremos que pode ser abordado sob os mais
diversos aspectos, sobretudo como recurso literário, estratégia
argumentativa, estratégia referencial com base em inferência e como simples
relação de incompatibilidade de sentidos. Pretendemos, assim, mostrar o
largo quadro de possibilidades de abordagem da antonímia, limitando-nos,
contudo, às postulações teóricas da semântica formal, cuja base
buscaremos na proposta de Lyons (1977).
Embora
partilhemos da idéia de que a língua é dinâmica, concreta e socialmente
afetada pelos falantes, deixaremos de abordar, neste trabalho, aspetos de uma
semântica mais pragmática, que poderiam oferecer uma visão mais
totalizadora do fenômeno em estudo, se levassem em conta as condições de
produção, a intenção do falante e o processo de decodificação, tal como
nos orientam os trabalhos de Austin (1990) e Searle (1969). A razão de
tal ausência, neste trabalho, está no fato de que, sendo uma breve
discussão sobre a abordagem da antonímia em sala de aula, a semântica
formal, por seu rigor, através da análise componencial e das relações
lógicas de (e entre) enunciados, consegue elaborar um estudo entre palavras e
sentenças que proporciona uma idéia mais didática do que vem a ser esse
tipo de relação semântica de oposição de sentidos, que é indistintamente
chamado de antonímia.
São
inegáveis a presença e a importância dos contrários em nossa vida. A
conceituação por contrastes faz-se presente em livros, revistas,
propagandas, manchetes de jornais, no dia-a-dia e sobretudo em nós mesmos. em
nosso dia-a-dia, inclusive, em nós mesmos.O ser humano já nasce introjetado
num universo maniqueísta, que concede tudo positiva ou negativamente. Assim,
desde cedo, captam-se noções como bem e mal, Deus e Diabo, matéria e
espírito, bom e ruim. A propósito, desde o mito da criação do homem, como
uma concepção divina, observam-se a presença e a força dos contrários. O
homem foi expulso do paraíso e passou a viver no inferno do plano da
materialidade. O cristianismo também generalizou as palavras do Deus dos
hebreus: “Quem não está comigo está contra mim”. Filósofos, como
Sócrates, Aristóteles e Heráclitus, também já haviam observado a
tendência que as coisas têm de se bifurcarem.
Para
alguns autores, a categorização de experiências em termos dicotômicos é
uma tendência universal. Para outros, a exemplo de Lyons (1977, p. 220), as
línguas nativas possuem um elevado número de pares de lexemas opostos, o que
leva os falantes a dicotomizar ou polarizar os juízos e as experiências.
Trier (apud Lyons, 1977) chega mesmo a declarar que o contrário se faz
presente na mente do emissor e do receptor durante o ato de enunciação.
Segundo os autores Rychalak et al. (1989), Sócrates e Aristóteles foram mais
além; incluíram os princípios de contrário e de oposto como
modos implícitos de associação de idéias. Observaram ainda que psicólogos
(e filósofos), a partir de pesquisas, não garantiram à
oposicionalidade o status de um processo inerente nas teorias da aprendizagem,
mas a apontaram como traço importante no processo cognitivo dos seres
humanos. Como argumentação, os referidos autores citam, entre outros
trabalhos, um estudo de Kagan (1984) sobre a aquisição da linguagem,
afirmando que a compreensão da oposicionalidade é realizada muito cedo e
facilmente, fato esse que não pode ser justificado apenas pela instrução
dos pais, mas que deve constituir um aspecto intrínseco da atividade mental
humana. Também ressaltaram estudos feios em relação ao uso da linguagem
pelos adultos, cujos resultados demonstraram o papel implícito da
oposicionalidade. Alguns trabalhos citados foram os de Osgood (1952); Brewer e
Lichtenstein (1974); Hampton e Taylor (1985); Westcott (1981); Lamiell (1987).
Os
autores Rychalak et al (1989) também confirmaram a hipótese de que a
oposicionalidade desempenha um papel importante na cognição. Através de
quatro experimentos realizados, concluíram que os indivíduos: a) reconhecem
padrões de oposição em significados de palavras e de sentenças; b) são
propensos a usar a estratégia de oposicionalidade na solução de um
problema; c) conseguem aumentar, através da prática, sua habilidade em
transformar significados de sentenças oposicionalmente; d) podem reconhecer
os significados oposicionais de uma sentença tão rápida e acuradamente
quanto podem detectar as possíveis paráfrases dessa sentença. Segundo eles,
isso não prova a existência de uma oposicionalidade implícita no processo
cognitivo humano, mas assegura que ela está inerentemente ligada à
cognição.
Provar
ou não a ligação da oposicionalidade à cognição foge aos objetivos deste
trabalho. É tarefa mesmo de outras áreas do conhecimento, mas são
observações importantes para demonstrar a necessidade de continuidade de
estudos sobre o tema. A nós, nos interessa a relevância da antonímia do
ponto de vista lingüístico, estudando o valor significativo que esse tipo de
relação semântico – lexical desempenha na organização do léxico das
línguas. A propósito, é significativa a observação de Vilela (1979, p.
194):
A
antonímia, em sentido amplo, representa um princípio fundamental na
estruturação léxica: será mesmo impossível a existência duma língua sem
a presença da oposição antonímica. Sem nos aventurarmos a afirmar que se
trata de um fenômeno geral: as línguas conhecidas apresentam a antonímia
como relação semântica fundamental. A língua portuguesa é toda ela
atravessada pela oposição antonímica em diferentes coordenadas e tipos
(...).
Apesar
do importante papel da antonímia no funcionamento da linguagem, esse
fenômeno ainda está por merecer maior atenção da parte dos que se dedicam
ao estudo da linguagem. Longe de ser um tema simplório, é algo relativamente
complexo e representa um traço essencial na estruturação da linguagem.
Especificamente,
sobre antonímia, é relativamente baixo o número de trabalhos propostos. No
português do Brasil, temos ciência de um artigo de Monteiro (1989) em torno
do conceito do termo e o trabalho de Souza (1992), que enfoca o comportamento
semântico de alguns pares de adjetivos antônimos em português. A falta de
uma discussão mais ampla e continuada tem dificultado uma descrição mais
objetiva e mais segura sobre o assunto. Os problemas oriundos de uma
descrição pouco rigorosa sobre os fenômenos lingüísticos de uma dada
língua vão se refletir, naturalmente, em sua gramática. A falta de uma
definição mais rigorosa suscita definições imprecisas, equívocas na
identificação de alguns pares antonímicos. Apesar de muitos professores
brasileiros buscarem um processo contínuo de aperfeiçoamento, ainda há, em
sala de aula, a formulação de exercícios estéreis sobre assunto,
solicitando que o aluno liste, descontextualizadamente, alguns pares de
antônimos. É isso o que se observa em diversas de nossas gramáticas, em
manuais didáticos e até em alguns dicionários especializados, a exemplo do Dicionário
de sinônimos e antônimos, de Francisco Fernandes (1982).
Observemos,
mais detalhadamente, o tratamento dado ao tema em algumas de nossas
gramáticas. Em geral, definem a antonímia como palavras de significação
oposta. Há alguns inconvenientes nessa formulação. Em primeiro lugar,
tal definição não distingue a antonímia de outras relações de contraste.
Em segundo, situa o fenômeno no eixo paradigmático. Essa postura, além de
oferecer um tratamento estático à questão, concebe o léxico como um
conjunto de etiquetas coladas aos entes mundanos.
Na verdade, as relações antonímicas só se realizam plenamente, se contextualizadas. Prova disso é que, como observa Lima (2001, p.158), a oposição de um termo a outro, contextualizadamente, pode originar relações de contraste impossíveis de serem previstas no nível paradigmático e lógico. Quanto à referenciação, é preciso esclarecer que a língua procede a uma reelaboração do mundo e não à sua representação. Como observa Marcuschi (1999), a referência é uma atividade de designação realizada no discurso, entendido este como uma reelaboração mental da realidade influenciada tanto por questões lingüísticas quanto por questões sociais, culturais e históricas.
A
gramática de Cunha & Cyntra (1985), inexplicavelmente, não faz qualquer
referência ao assunto, o que é lamentável. A de Bechara (1992) diz que a
“antonímia é o fato de haver vocábulos com sentidos opostos” e cita,
como exemplo, os pares: vida/morte; crente/descrente. Lembra que uma mesma
palavra pode assumir um sentido favorável e outro desfavorável, a exemplo de
fortuna (boa ou má), sucesso (bem ou mal). Observa, ainda, que a
antonímia, por vezes, surge de fato de uma palavra apresentar valor ativo e
passivo e cita, entre outros exemplos, o verbo alugar: a) dar de aluguel; b)
receber de aluguel.
Pelo
tratamento atribuído à questão nessas duas gramáticas, que, ao lado da
gramática de Lima (1974), constituem três bons compêndios gramaticais,
vê-se a pouca relevância que se tem dado ao estudo da antonímia e a
fragilidade de critérios que se têm empregado para conceituá-la. A
questão, em Bechara, é limitada. A causa dessa visão obliterada está no
fato de não distinguir a antonímia de outras relações de contraste. As
relações de contraste que se estabelecem entre as palavras têm sentidos
diversos; rotular todas de antonímia é cair em reducionismo. Segundo a
orientação de Lyons (1977), não se pode ver, no par vida/morte, um
caso de antonímia, visto que seus
elementos constitutivos não são graduáveis. Também é preciso compreender,
conforme se depreende dos questionamentos de Ilari & Geraldi (2002), que
vida e morte não traduzem propriamente noções contrárias; são, antes,
partes complementares do fenômeno da existência, dois momentos extremos
desse processo: a vida e a morte. Já a gramática de Rocha Lima (1974) revela
a complexidade do assunto. Lembra a possibilidade de um mesmo item lexical
apresentar antônimos diferentes de acordo com os referentes a que se aplicam,
devido ao fato de as palavras carregarem múltiplos sentidos imanentes.
As
dificuldades em torno do conceito de antonímia estão presentes, inclusive,
em dicionários especializados, sejam de termos lingüísticos ou de
antônimos, conforme observa Monteiro (1989). Após buscar o conceito de
antonímia nos dicionários de Fernandes (1982); Alpheu Tersariol (1968);
Borba (1971), que nem sequer registra o verbete; Jota (1981); Câmara Jr.
(1981), o referido autor conclui que os dicionários apresentam “a mais
absoluta falta de critérios norteadores de uma definição válida e coerente”.
Os
semanticistas têm se ocupado mais com a noção de sinonímia do que com a de
antonímia. O próprio nascimento do termo, observa Vilela (1979), foi
criado por analogia à sinonímia e originado pelo francês no século XIX,
embora o conceito seja muito anterior. Refutando a idéia de que a antonímia
é o inverso da sinonímia, Palmer (apud Monteiro, 1989) revela que
esses dois tipos de relação semântica se comportam de formas diversas e
frisa que as línguas podem dispensar os sinônimos, mas não os antônimos. O
fato de o conceito de antonímia não está rigorosa e unanimemente
estabelecido, argumenta Monteiro (1989), advém de tal estado de desinteresse
pelo assunto.
Os
que se dedicam ao tema fundamentam seus estudos nas contribuições da lógica
clássica, extraindo dela os conceitos de contrário e contraditório.
Porém, esses termos têm recebido diferentes interpretações dos
lingüistas. É na interpretação de tais conceitos que reside a raiz de
tantas divergências sobre o assunto, inclusive, as terminológicas.
Através
do resumo das propostas seguintes, é possível vislumbrar as posições
divergentes sobre o tema.
A
proposta de Lyons, por seu rigor
metodológico, ganhou prestígio. Sua análise sobre o fenômeno do
significado leva em conta não só noções paradigmáticas (campo lexical)
como também relações associativas. Para o autor, as relações lexicais,
num dado campo lexical são estabelecidas a partir de uma série de contrastes
existente entre eles. Nesta proposta, contraste é o termo mais amplo,
que engloba todo tipo de relação opositiva: antonímia, complementaridade,
reciprocidade, oposição ortogonal, conjuntos ordenados serialmente,
conjuntos ordenados ciclicamente.
O
que de mais significativo há na proposta de Lyons é o seu rigor, aplicando o
conceito de antonímia a apenas um tipo de contraste: o dos opostos
graduáveis. Alguns lingüísticos, a exemplo, de Monteiro (1989),
condenam essa proposta, julgando-a bastante delimitadora. Mas ainda
nenhuma vez se levantou acusando-a de não ser esclarecedora. É uma teoria
que desfaz muitos equívocos. Contudo, ela não está isenta de problemas. Uma
situação bastante complexa e não resolvida suficientemente é o caso de
alguns pares de opostos que satisfazem a noção de dois tipos de contraste,
como os antipodais, por exemplo, que também podem admitir a variação de
grau (mais atrás, muito adiante).
Ao
identificar a antonímia como qualquer relação de incompatibilidade de
sentido, a proposta de Katz (1972) caminha em sentido inversamente
proporcional à de Lyons. O incoerente está em que as relações de
incompatibilidade são muito amplas. Na incompatibilidade, a afirmação de um
elemento de uma série implica a negação de cada um dos elementos desta
mesma série; a negação de um significa a afirmação de cada um dos demais
disjuntivamente, segundo o esquema: X = 1, X ≠ 2,3,4 ... (leia-se: X é
igual a 1, logo X é diferente de 2, de 3, de 4 ou de qualquer outro elemento
constitutivo da série dos numerais cardinais). Exemplo:
branco
branco
azul
azul
violeta
assim como: X é
violeta
X é não
vermelho
vermelho
preto
amarelo
amarelo
...
...
Para
Katz, o termo antonímia pode ser aplicado a todo tipo de oposição.
Reconhece a existência de antônimos contraditórios (mortal x imortal) e
antônimos conversíveis (comprar x vender). Interessante nesta proposta como
também na de Lyons é a introdução da noção de escola. Trata-se do
reconhecimento de zonas intermediárias entre dois opostos antonímicos.
Refletir sobre esta constatação, na linguagem, é importante, porque também
nos leva a refletir sobre as conseqüências daninhas do uso intencional da
polarização na sociedade.
Já
aludimos que o enfoque da antonímia, neste texto, pretende ser mais prático
que teórico, vez que seu objetivo é refletir sobre como lidar com a
antonímia em sala de aula. Certamente, ainda não conseguimos nos desligar
das questões teóricas. Já é hora, então, de relegá-las a
segundo plano e começar a trabalhar com textos. Dada a riqueza da
antonímia é possível trabalhá-la a partir de qualquer corpus. Aqui,
lançaremos mão de corpus da canção popular, da poesia, do
discurso bíblico e do publicitário. Dos múltiplos enfoques possíveis para
a abordagem da antonímia, recortamos os seguintes:
a antonímia como estratégia argumentativa e como recurso literário.
A
antonímia tem servido a diversos fins. Um
deles é a definição através de contrastes. Considera-se que a predicação
feita a respeito de um termo ganha maior força argumentativa , se lança mão
de idéias opostas para realizá-las. Está em jogo, em tal raciocínio, o
fascínio gerado pela possibilidade de conciliar idéias opostas. A vantagem
da oposição dicotômica, em qualquer definição, reside na economia desta e
nos efeitos lingüísticos e não lingüísticos que se podem alcançar,
conforme ilustram os exemplos seguintes :
Não
queremos o serra à nossa mesa, preferimos a lula.
|
“ E , pensando bem, ele [Fabiano] não
era um homem :
era apenas um cabra”
( Vidas secas – Graciliano Ramos ) |
“ Vem, vamos embora/ Que esperar não é saber/
Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer” (Pra
não dizer que não falei das flores – Geraldo Vandré ) |
( ... )
“O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem”
( O bicho – Manuel Bandeira ) |
Test
Drive Stilo
é tudo.
Stilo. Ou você tem. Ou não tem.
( Propaganda da FIAT ) |
A
literatura, desde cedo, soube explorar a riqueza das relações de oposição
de sentido, conseguindo efeitos estéticos surpreendentes. A antonímia, de
fato, oferece possibilidades criativas e argumentativas para quem trabalha com
a literatura e com a escrita de forma geral. Não é sem razão que muitos
autores, das mais diversas escolas literárias, têm se servido dela como
argumento para ironizar, satirizar, questionar posturas e valores impostos a
uma sociedade e a seus membros. Servem-se dela, também, para refletir sobre
si mesmos e sobre as coisas do mundo e para traduzir seus sentimentos, suas
ambivalências, seus conflitos internos, enfim, para expressar seus estados d’alma.
A
canção a seguir, de Caetano Veloso, freqüentemente citada em estudos sobre
antonímia, ao traduzir, através de antônimos contextuais o estado d’alma
de um eu em conflito, em conflito pela impossibilidade de uma relação
harmônica com um tu, dado o desencontro entre os anseios e as
perspectivas de um e de outro, exemplifica bem o que acabou de ser dito :
Onde queres revólver sou coqueiro, e onde queres dinheiro sou paixão
Onde queres descanso sou desejo, e onde sou só desejo queres não
E onde não queres nada, nada falta, e onde voas bem alto eu sou o chão
E onde pisas no chão minha alma salta, e ganha liberdade na amplidão
Onde queres família sou maluco, e onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon sou Pernambuco, e onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez, e onde vês eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo eu sou o irmão, e onde queres cowboy eu sou chinês
Ah! bruta flor do querer, ah! bruta flor, bruta flor ...
Onde queres o ato eu sou o espírito, e onde queres ternura eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo, e onde buscas o anjo sou mulher
Onde queres prazer sou o que dói, e onde queres tortura, mansidão
Onde queres o lar, revolução, e onde queres bandido sou herói
Eu queria querer-te e amar o amor, construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação, tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés, e vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou, não te quero (e não queres) como és
Ah! bruta flor do querer, ah! bruta flor, bruta flor
Onde queres comício, flipper-vídeo, e onde queres romance, rock’n roll
Onde queres a lua eu sou o sol, e onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério eu sou a luz, e onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro, e onde queres coqueiro sou obus
O quereres e o estares sempre a fim do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal, bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal, e eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total do querer que há e o que não há em mim
Dinheiro x paixão |
O anjo x mulher |
Descanso x desejo |
Tortura x mansidão |
Família x maluco |
Um lar x revolução |
Romântico x burguês |
Bandido x herói |
Leblon x Pernambuco |
Comício x flipper-vídeo |
Eunuco x garanhão |
Romance x rock’n
roll |
O sim e o não x o talvez |
A lua x o sol |
O lobo x o irmão |
A pura natura x o inseticídio |
Cawboy x chinês |
Mistério x a luz |
O ato x o espírito |
Um canto x o mundo inteiro |
Ternura x tesão |
Quaresma x fevereiro |
O livre x decassílabo |
Coqueiro x obus |
A pura natura x o inseticídio |
Revólver x coqueiro |
Não
estamos querendo negar a condição de relação substitutiva da antonímia,
estamos tentando apenas ressaltar o caráter dinâmico dessa relação de
sentido, pois está claro que a
muitos dos termos citado na referida canção, descontextualizadamente, não
corresponderia qualquer antônimo.
Houve
mesmo, na literatura, uma época fundamental, a barroca em que o contrário se
tornou expressão máxima, por se prestar à tradução do estado de espírito
conflitante do homem europeu do século XVII. O contrário se tornou a
figura máxima da estética barroca, através da antítese e do paradoxo, por
ser uma forma de categorização da experiência e sobretudo por ser um traço
presente no ser humano. A antonímia foi um princípio poderoso que permitiu
que os autores barrocos expressassem a angústia, a dilaceração, o conflito
e o desequilíbrio do homem europeu seiscentista dividido entre os prazeres
materiais trazidos pela Renascimento e os valores espirituais reimpostos pela
Contra-Reforma.
Os
que desejam trabalhar a antonímia em sala de aula, procurando dar um novo
sentido ao estudo do tema, fugindo de exercícios estéreis sobre antônimos,
não vão precisar empreender muitos esforços para encontrar textos que lhes
possibilitem tal tarefa. A literatura é repleta de textos com antonímia,
independentemente da estética de que fazem parte. É possível, também, como
já frisamos, trabalhar a antonímia a partir de qualquer corpus.
O que não se aconselha é estudá-la imanentemente, em abstrato, sem o
apoio de um texto. Só a partir de um texto é possível reconhecer certos
antônimos, inferir o significado de alguns, conjeturar sobre a
intencionalidade e o valor do emprego de determinados pares antonímicos bem
como refletir sobre as implicações estéticas e sociais de seu emprego.
Vejamos,
respectivamente, um exemplo de antítese e um de paradoxo:
Oração de São Francisco
Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio,
que eu leve o amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver discórdia,
que eu leve a união;
Onde houver dúvida,
que eu leve a fé;
Onde houver erro, que eu leve a verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, Fazei que eu
procure mais
Consolar, que ser consolado;
Compreender, que ser compreendido;
Amar, que ser amado.
Pois, é
dando que se recebe,
É perdoando que se é perdoado,
E é morrendo que se vive
para a vida eterna.
Citamos
esse texto por um exemplo prototípico de antítese. Como é um texto bastante
conhecido, é possível que tenha uma boa acolhida pelos alunos, pode até ser
contado. É importante lembrar que tornar como meta apenas a identificação
de uma relação de contraste pode não ser algo significativo. O trabalha a
ser desenvolvido com a antonímia depende
da série em que leciona o professor e de seus propósitos.
Nesse
texto, por exemplo, poder-se-ia lidar com a antonímia sob diversos aspectos,
entre eles: averiguar se a relação de contraste que se estabelece entre os
termos é de natureza semântica única ou diversa; discutir se há,
efetivamente, ações contrárias em todos os pares; observar se a relação
de oposição de sentido que se estabelece entre os pares tem a mesma
tipologia; a partir da adjetivação possível a alguns pares, discutir sobre
a importância da noção de escala e do perigo da polarização; observar
como se dá a distribuição da antonímia pelo inventário aberto do léxico
português, buscando apreender as especificidades dos pares de substantivos
opostos no referido texto (Por que nenhum par desses substantivos é concreto
ou primitivo? Que comportamento semântico-gramatical devem ter os
substantivos (e também os adjetivos e os verbos) para que sejam passíveis de
oposição lexical antonímica?); cogitar a importância da relação entre
campo lexical e escolha dos termos constitutivos dos pares em oposição;
analisar a possibilidade de um dos termos dos pares em contraste servir com
inferência para a apreensão do significação
do outro.
O
mesmo procedimento analítico, além de outros, pode-se aplicar à canção a
seguir:
Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.
É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
O amor é bom, não quer o mal.
Não sente inveja ou se envaidece.
O amor é o fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder.
É um estar-se preso por vontade.
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata a lealdade.
Tão contrario a si é o mesmo Amor.
Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem.
Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face.
É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.
A
escolha desse texto também se deu por sua popularidade lidar, em sala de
aula, com textos conhecidos influi positivamente em sua acolhida. Monte
Castelo, como vemos, dialoga, afirmativamente, com um soneto camoniano e
com um trecho de primeira epístola do apóstolo Paulo aos coríntios. O
paradoxo, ao unir as idéias díspares, acentua o tom conflituoso expresso
pelos antônimos.
Fora da literatura, também encontramos bons exemplos do emprego da antonímia, como no texto a seguir:
Existem muitos bancos virtuais.
Só um é Real.
Abra sua conta
|
A
antonímia é um fenômeno importante no funcionamento da linguagem e na
categorização da experiência. Não obstante tal significância, o tema
ainda não foi suficientemente estudado. Apesar dos esforços de alguns
semanticistas, sua complexidade ainda não permitiu uma descrição mais
consensual. A delimitação do conceito de antonímia, para uns, representados
por Lyons, é bastante restrito e aplicado a apenas um tipo de contraste; para
outros, os da linha de Katz, é extremamente amplo e igualado a qualquer tipo
de incompatibilidade semântica.
Na
maior parte de nossas gramáticas e de nossos dicionários, essa divergência
de posturas quanto à delimitação do conceito de antonímia converte-se em
confusão. Conceitos imprecisos, lacunosos, equívocos quanto à
classificação de determinados tipos de contraste e subjetividade permeiam o
tratamento oferecido à questão. Esse estado de coisas provoca uma
conseqüência mais grave: a idéia de que a antonímia é um conceito pouco
relevante para a compreensão do universo semântico da língua. Daí a pouca
reflexão sobre o assunto em sala de aula, quando é estudado, e a forma
estéril de sua abordagem.
Não
se está perdendo de vista, aqui, a complexidade da questão. O que se está
enfatizando é a necessidade de se empreender maior esforço para o
oferecimento de uma descrição mais adequada e menos confusa nos manuais que
se destinam ao ensino da língua materna no Brasil. Justamente por reconhecer
a complexidade do assunto, procurando deixar de lado as facetas
idiossincráticas que lhe são relativas, excluímos, deste texto, dados
significativos que poderiam possibilitar uma noção mais global do tema, como
a intenção do falante e a situação de enunciação, a fim de oferecer uma
visão mais objetiva do fenômeno em enfoque.
Claro
está que a questão permanece aberta, exigindo a continuidade de estudados.
Objetivamos, com este trabalho, apenas demonstrar o papel de destaque da
antonímia no funcionamento da linguagem e chamar a atenção para a
importância da exploração das riquezas do fenômeno em sala de aula, de
modo que possa vir a ser redescoberto
tanto pelos professores quanto pelos alunos. Tomara que consigamos!
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